Morte no Jantar
- Não entendo porque você me inclui nos teus encontros, Julia - disse o irritado Glauco, a dirigir.
Julia retocava o batom.
- Eu ia ficar sozinha com Arnaldo, Sueli e a filha, Glauco? Você me deixaria sozinha? - perguntou, sardônica.
- Deixaria.
E ficaram um minuto em silêncio. Glauco parou o carro. Sinal vermelho.
- Você sabe o quanto eu odeio as conversas da Sueli - começou. - Eles são cheios da grana e ela vive a reclamar. Quando Arnaldo começa a beber, inicia suas piadas repetidas. Acho detestáveis suas piadas sem graça que você tanto força a risada sem entender uma vírgula...
- Ele é meu chefe, Glauco - ela disse. - E...
- E tem mais: como aquela filha deles nunca vi igual...
- O que tem?
- Nunca ri. Não se move. Fica lá parada, sem esboçar uma reação, a me encarar por todo jantar - disse. Hesitou. - A gente poderia ligar para eles agora desmarcando e voltar pra casa ou ir ao teatro. Há uma peça sensacional no Centro.
- Não, Glauco. Não é legal fazer desfeitas...
E chegaram ao restaurante. Glauco não parava de reclamar e Julia, naquele instante, observava-se no espelho direito do carro para ver se lhe faltava algo a retocar.
Ao entrar, depararam com o trio do outro lado, perto da janela. O ambiente era tranquilo e sereno. Um clima familiar. Poucas pessoas preenchiam as mesas vizinhas. Glauco cochichou algo à Julia:
- Repare o vestido horroroso da Sueli - disse.
- Pare, Glauco...
- Ela sempre tem péssimos gostos.
Mesmo com a razão, Glauco aquietou-se. Aproximaram-se da mesa e fizeram suas devidas mesuras. Conversaram um bocado sobre a vida. A menina permanecia calada. Não era tão menina assim. Tinha lá seus dezesseis ou dezessete anos. Calada feito uma pedra. Arnaldo já contava piadas para Glauco que fingia prestar atenção enquanto Sueli lamuriava sua vida à Julia. Enquanto isso, a garota pegou algo de sobre a mesa e pareceu guardá-lo consigo. Glauco reparara que ninguém reparou e que tampouco a garota reparara em sua reparação. Confuso, porém necessário. Dali uns minutos, ela levantou-se e cortou seu silêncio:
- Licença, irei ao banheiro - pronunciou.
O pai apenas assentiu com a cabeça. A mãe nem sequer ouviu. Glauco acompanhava a garota com os olhos - a reparar seu andar pueril, mesmo com corpo de mulher. Meia hora passou-se e Glauco já estava bêbado com a quantidade de vinho tomado. Arnaldo parecia estar no auge de suas piadas sem nexo. As mulheres riam sabe-se lá de quê. E a garota? Tão irrelevante que ninguém reparou sua ausência. Até que uma senhora já idosa levantou-se doutra mesa e encaminhou-se lentamente ao banheiro. Não que alguém no restaurante houvera percebido o andar da mulher, porém é necessário incrementar o discurso.
Assim que entrou, deu um grito de horror. O som do desespero e da cólera vibrava e expelia-se de sua garganta. Ninguém ali entendeu o motivo do escândalo. Tampouco alguém levantou-se para ver o que ocorrera.
- Deve ser outra barata - disse um garçom, a rir.
- Pelo grito, aposto que é rato - completou outro.
Estavam ambos enganados. A mulher saiu aos prantos e tremendo de dentro do banheiro.
- Uma pessoa... - disse, sôfrega. - Uma menina está morta no banheiro.
Seus pés desenhavam no chão marcas de sangue. Sueli deu um grito:
- Filha? - perguntou. Levantou-se. Desesperou-se. - Filha? Arnaldo, cadê nossa filha?
- Ela havia ido... - parou e pensou um pouco antes de concluir. - ao banheiro...
Sim, caro leitor. O objeto guardado era uma faca. A menina cortou sua garganta defronte ao espelho. Prejuízo ao dono do restaurante, pois a maioria dos clientes saiu sem pagar. Dali um tempo, a ambulância foi chamada. Descobriram que ela ainda vivia. Porém, não por muito. Ao pisarem no hospital, uma infecção em decorrência da hemorragia foi o suficiente para estragar a noite de Sueli e Arnaldo.
Ainda no restaurante, Julia parecia incrédula.
- Coisas da depressão - disse para si mesma em voz alta. - Estava aqui num instante, aparentemente feliz, no outro não estava mais.
Glauco, insensível de praxe, apenas enfiou a colherada de seu sorvete na boca.
- Ela apenas conseguiu estragar o jantar - disse.
Julia pareceu não ouvir o que Glauco disse ou não quis respondê-lo.
- O ser humano é um animal muito estranho - continuou a refletir de forma audível.
- Sabe de uma coisa, Julia? - interrompeu Glauco.
- O quê?
- Além de estragar a noite - que já não estava tão boa -, a menina fez outra coisa...
Como quem esperasse uma conclusão, Julia apenas franziu o cenho.
- A conta ficou para nós pagarmos - e sorriu ironicamente.