Os mistérios (microconto).

Idas, lonjura, entremontanhesca — o vilarejo. Foi numa noite, três caçadores voltavam, às altas horas, para o lar, quando enxergaram uma mancha rastejante. Era branca. Fizeram formação, dois mirando, um chegando; quando o mais velho tocou, viu que era uma pessoa, mulher, nua. Foram, os outros, para acudir. Carregaram-na, mas sem resposta alguma: ela desfalecida, era apenas burbúrios internos, de cada um, e vãs discussões entre eles. Na porta da delegacia, sob a luz fraquíssima do único poste, puseram numa cadeira frente a fachada; eis a surpresa: era um homem, mancebo.

— Oxe, diabo...

Continuava de olhos fechados, de rosto dolente de cansaço. Arrumaram uma manta marrom, de couro, para ele. O delegado não estava, partiram, resolvendo que se virasse ao acordar (ou quem primeiro nele chegasse). A discussão se perpetuou até a encruzilhada: mas não era mulher? Certamente: sentiram seus seios, seu corpo; era mulher, inteira. No céu, o luzente vigilante ia em fino rastro nos olhos de embriaguez astigmatística.

Pela manhã, quando o delegado, junto com dois policiais, chegaram lá, viram um bebê coberto pelos tecidos grossos.

— Deus! Misericórdia!

Virou caso sério, de reunião. À tarde a população se aglomerara n'avenida principal para ouvir o absurdo: — Alguém sem o mínimo de coração abandonou esse recém-nascido em plena madrugada!

Ninguém se acusou, nem os caçadores perceberam qualquer coisa. No final, sucedeu que a criança ficaria com senhor Alfra, viúvo há uns meses, perdido a esposa em caso de parto; ficara sem mulher e sem filho. Uma bondade da população, que concedeu esse consolo: — Deus é bom, eis aí teu filho...

Alfra o levou para casa, com mil planos. Deitou o filho em sua cama imensa e observou seu descansar, tanto que dormiu, sem nem sentir, em pé, a noite toda; imagem do devoto mais devotado frente ao santo. Na manhã, porém, já não havia criança, para o desespero dele. A cama estava manchada de um grosso amarelado. Quando foi à varanda, lá estava uma senhora, de muita idade, a qual nunca viu na vida.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 25/06/2023
Código do texto: T7821959
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