O Primeiro Pedaço de Bolo
Embora a festa estivesse cheia, os convidados rissem desmesuradamente sob a música que tocava, os familiares confraternizassem e as crianças brincassem pelos corredores e quintal da casa, Cristina não estava feliz. A todo momento dirigia-se à porta, abria as cortinas das janelas a mirar através dos vidros e fazia ligações não correspondidas. Sentia-se angustiada a debutante.
- Eu acho que ele não vem – reclamou à mãe, Marília, que colocava algo dentro da geladeira.
- Seu pai virá, Cristina – redarguiu a mãe, a sorrir. – Você sabe que é um homem misterioso!
O tio da menina, Otávio, irmão de seu pai, Osmar, acercou-se após ouvir o diálogo entre a sobrinha e a ex-cunhada.
- Seu pai é assim mesmo – falou, a bebericar a cerveja. – É afeito às surpresas!
Nesse ínterim, os segundos, os minutos e as horas se passavam e nada do pai da debutante. Fazia um ano e meio que não via o pai, mas de acordo com Marília, depois de um diálogo sério que tivera com o ex-marido, sua presença na festa ocorreria. Assegurou à menina durante semanas de que seu pai far-se-ia presente naquela ocasião – custasse a ele o que custasse.
Cristina tentou distrair-se a ter com suas colegas de escola. Marília observava o descontentamento da filha, embora se sentisse impotente para ajudá-la ou acolhê-la.
A mãe havia se separado de Osmar fazia quase cinco anos. Depois de uma traição que descobrira entre Otávio e sua secretária particular, houve um hiato no diálogo entre os dois. Osmar, contudo, nos primeiros meses fazia questão de buscar Cristina a cada quinze dias. Porém, devido à demanda de trabalho, as buscas tornaram-se espaçadas: de quinze dias a um mês; de um mês a três meses; de três meses a um ano etc.
Houve momentos de cólera por parte de Cristina – que afirmava que toda aquela desunião e desestruturação da família era por culpa de Marília. A mãe chegou a ir ao psicólogo e, com poucos resultados, passou a frequentar um psiquiatra que lhe medicava constantemente.
Entretanto, pensou que pelo menos para o aniversário da filha o pai se faria presente. Embora no dia em que fora ter com ele uma charla, volvera à casa com os olhos lacrimejantes e bastante possessa. Guardara em seu quarto um saco preto de lixo.
Ao perceberem o atraso imenso por parte do pai, assim mesmo cantaram parabéns. Cristina fingia estar feliz diante dos familiares. Marília fizera um esforço para convidar os pais do ex-marido, seu irmão e os sobrinhos dele. A única pessoa que faltava era Osmar.
Terminada a cantoria de parabéns, Cristina cortou dois pedaços. O primeiro, dedicou ao pai ausente. O segundo à mãe – que pareceu desconfortável ao receber o segundo pedaço, mas fingiu-se satisfeita. Ela mesma, aliás, recolheu o pedaço de bolo do ex-marido e colocou-o à geladeira para oferecer-lhe à hora que chegasse.
Mais tarde, todos os presentes reuniram-se à sala para vislumbrarem os presentes ganhos por Cristina. A menina começou a abrir um por um: primeiro, os das colegas de escola: ganhara vestidos, camisetas, livros; a seguir, dos familiares: alguns brinquedos, maquiagem, mais roupas; dos avós maternos, ganhara brincos novos; dos paternos, um casaco para o frio. Ela se pretendia bastante receptiva com os regalos. A mãe lhe regalara um relógio. Cristina abraçou-a, a murmurar-lhe:
- Meu pai é quem deveria ganhar um relógio – exclamou.
Marília volveu a dizer:
- Ele se fará presente!
A mãe pediu a todos que esperassem, que não fossem embora, que havia a surpresa final. Cristina esperançou-se. Será que a mãe e o pai haviam combinado algo? Desde o dia em que Marília fora ter com Osmar, a matriarca parecia bastante feliz. Será que voltariam a relacionar-se e que os dias de bonança e paz entre aquelas famílias finalmente se selariam? O clima de esperança instaurou-se no rosto de todos. Todos viam a comoção nos olhos de Cristina que estava a esperar tão desesperadamente a chegada se seu pai.
Marília desceu as escadas munida de uma enorme caixa cujas faixas escarlates a adornavam. Ela passou por alguns convidados com o caixote, a manuseá-lo com cuidado e destreza. Repousou-o sobre a mesa da sala de jantar ao lado do bolo de aniversário da filha.
- Não o abra ainda – exclamou à filha.
Então, Marília dirigiu-se à cozinha, abriu a porta da geladeira e de dentro do refrigerador tirou o pedaço de bolo. Tornou à sala de estar e colocou o bolo sobre a mesa. Estava muito sorridente. Percebia o ar de contentamento dos familiares e, principalmente, de Cristina. Sorria à filha como se a tivesse enganado perfeitamente. Deu-lha um sorriso cúmplice, resplandecente. O tio, Otávio, acercou-se da sobrinha. Nada sabia dos planos de Marília, mas na iminência da chegada do irmão, queria estar próximo à Cristina.
- Vamos, filha – irrompeu o silêncio Marília -, abra o presente de seu pai!
A menina arqueou os sobrolhos com surpresa. Certamente ele far-se-ia presente. Era tudo um plano entre ele e sua mãe! Como puderam eles enganá-la de tal forma? As mesmas surpresa e impressão foram unânimes entre os convidados.
Cristina acercou-se do presente. Em seguida, desatou o nó das fitas escarlates que o envolviam e abriu a caixa. Franziu o cenho a perceber um saco preto de lixo em seu interior. Horrorizada, Cristina deu um grito.
- Ofereça o primeiro pedaço de bolo ao seu pai, filha – propôs Marília, a sorrir de contentamento e satisfação.
Cristina desmaiou. A cabeça de Osmar estava totalmente ensanguentada, com os olhos cadavéricos e a expressão de horror dentro da sacola. O sangue já havia coagulado. O cheiro podre começou a exalar. Otávio, ao ver o conteúdo, vomitou o que havia comido. Outros convidados também começaram a regurgitar. Houve gritaria e correria de todos os lados. Apenas Marília – cuja sanidade mental não estava muito boa – sentia-se satisfeita com o seu feito: trouxera Osmar à festa da filha.