O Mentecapto
Quando ele abriu a porta, o cenário adentro estava bastante escuro. Ele tateou a parede à esquerda e por fim encontrou o interruptor. Com a luz, apareceram os rústicos móveis, amadeirados mognos, daquele hotel que estava a cair aos pedaços. As cortinas escarlates, embora um pouco empoeiradas, davam um charme distinto ao quarto. A imensa cama era bastante antiga e, acoplada a ela, havia um espaço com um mármore, para assentar o café da manhã e um rádio - além de botões que serviam para acender ou apagar as luzes ou ligar a tevê que ficava defronte à cama, ao alto.
Contígua ao quarto, havia um banheiro. Curiosamente, o quarto de banho tinha duas janelas: uma que era virada para uma parte morta do edifício onde estava localizado; a outra para dentro do próprio quarto: se alguém estivesse a tomar banho, quem estivesse no quarto poderia ver através do vidro, sob a tevê, a outra pessoa a duchar-se.
Ela deu um sorriso conveniente a Osvaldo e começou prontamente a se despir. Ele, finalmente, fechou a porta.
- Não tenha pressa - disse-lhe. - Pedirei um vinho...
- Não precisa - redarguiu ela, num átimo. - Tenho outro cliente às dez!
Fez-se um breve silêncio. Na parede entre a porta do banheiro e o vidro que dava para ver a pessoa banhar-se do outro lado havia um pequeno banquinho. Osvaldo sentou-se ali, a ver aquela mulher impenetrável despir-se. Fuçou o bolso do paletó, sacou dali de dentro um maço de cigarros e tirou um.
- Fuma?
Ela não fez menção de escutar; ou simplesmente não quis responder. Desfez o penteado enquanto ele acendia o cigarro com um fósforo.
- Quanto é que você cobra?
- Setenta a hora.
- Te pago dois mil - disse ele, a novamente enfiar a mão no mesmo bolso de onde sacara o maço de cigarros e a jogar por sobre a cama várias notas de cem e cinquenta.
A mulher parecia não acreditar no que estava a ver. Os sobrolhos soerguidos a fitar aquelas várias notas sobre a cama enquanto ainda brigava para desabotoar a saia apertada.
- Eu demoro quase uma semana para tirar isso... - comentou ela, mais para si mesma que para que Osvaldo ouvisse.
- Aí está: vinte e oito horas pagas.
Quando ela voltou a si e guardou as notas em sua bolsa, caso o cliente viesse a mudar de ideia, perguntou-lhe:
- E você? Não vai se despir?
- Eu? Para quê?!
- E por que me trouxe aqui e me pagou tudo aquilo?
- Tenho minhas razões; acalme-se e sente-se aí. Relaxe. Quer ouvir rádio? Gosta de música clássica? Ravel, Liszt, Cimarosa? - deu a si próprio um leve tapinha à testa. - Ah, claro! Como posso exigir música clássica de uma... profissional do sexo, não é? Claro, se estivéssemos na França ou na Itália do século XIX, certamente o saberia. Aliás, acho que você seria uma cortesã de luxo naquele século. Por que cobra, assim, tão barato? Digo, você deve ter uma autoestima bem baixa para cobrar tão barato. Sei que está um pouco maltratada devido a essas rugas, mas isso é falta de sono. Você dorme bem à noite? Então, não quer ligar o rádio? Já que não sei se gosta de música clássica, que tal ouvir um jazz? Muito monótono e triste, não? Ou um samba! Apesar de eu não estar em um clima propício para samba. Você não fala nada? Digo, parece triste; o que passa? Você tem marido? Família? Como é ser puta e ter de encarar a família? Desculpe, eu deveria ter dito prostituta. Ou como antes: profissional do sexo. Mas eu acho isso um pouco hipocrisia, sabe? Profissional do sexo... Você tem filhos? Eu não posso ter filhos. Sou oco. Sabe como é, né? Estéril, improdutivo, vazio. Minha mulher? Fugiu com um africano para Londres faz dois anos. Dizia que não me aguentava. Sempre falei bastante. Minha mãe pensava que eu ia ser animador de televisão. Ainda bem que eu estudei, hein? Sou professor. O salário não é lá essas coisas, mas como eu sou sozinho... Meus amigos estão viajando. Devem ganhar bem, pois estar viajando em pleno junho? Ou devem estar atolados de serviço. Vou pedir um vinho, você bebe? Ou um conhaque? Uísque arde meu estômago. Não bebo faz muitos anos. O silêncio
deste lugar é perturbador, não? Eu só ouço a minha voz. E vendo você com esse olhar penetrante e esses olhos assombrosos. O que é que você tem?
- Tédio - finalmente redarguiu a mulher. Fez-se um súbito silêncio. Osvaldo percebeu que a causa daquele tédio era o seu falar. Osvaldo queimou a ponta dos dedos do cigarro que ele nem sequer havia fumado. De tanto que Osvaldo falou, o fogo acabou por consumir todo o tabaco.
Ofendido, ele levantou a voz:
- Te paguei para me ouvir e - nesse instante ele averiguou as horas no relógio de pulso - ainda nos restam vinte e sete horas e trinta e dois minutos.
- Estou começando a reconsiderar tal proposta - replicou a mulher. - Você é muito chato, aborrecedor; um mentecapto!
Súbito, ele levantou-se. Teatralmente, desatou o nó de sua gravata e tirou-a do pescoço. A mulher pensou que ele fosse tentar seduzi-la. Porém, seu vislumbre aos poucos tornou-se horror: Osvaldo envolveu a gravata, por duas vezes, em seu fino pescoço. Ela não teve tempo de gritar, pois ele violentamente desferiu-lhe um murro que fê-la zonzear. Ele apertava a gravata sobre o pescoço da mulher com impetuosa raiva. Nem minha mãe me chamava por mentecapto, exclamou ele, pensativamente, sem saber bem a acepção em si da palavra. Não demorou muito para que ela morresse.
Osvaldo tomou de volta a gravata, arrumou-a no pescoço com a ajuda do espelho do banheiro e lavou o rosto - pois quando enraivecia-se, suava bastante. Ao observar sua própria imagem no espelho, sorriu para ela com cumplicidade. Entrou novamente no quarto, vasculhou a bolsa da mulher: além das várias notas que ele lhe havia pagado, havia batons, lápis de olhos, pó de arroz, brincos e outras bijuterias baratas.
Ademais das notas, enfiou alguma outra coisa no bolso. Ligou o rádio e vasculhou as várias estações. Tocava Gnossiennes de Satie: uma das músicas preferidas de Osvaldo. Ele sentou-se ao banco novamente, acendeu um outro cigarro e, a sentir o som do piano daquela triste melodia, vislumbrou o corpo da mulher morta.