A Alergia

Estava ela a observar a movimentação lenta dos notívagos na sacada do quarto. Opictórico noturno inspirava-lhe a exercer sua melhor função: a pintura. Lá dentro, ora a fitá-la lá fora, com os cabelos a balouçar ao sabor do vento, ora a dedicar sua atenção às palavras de Jane Austen, ele, sentado em um divã, decadente como um personagem simbolista, molhava as pontas dos dedos com saliva e virava as páginas com irremediável preguiça.

- Sabe o que é estranho, Vladimir - disse Rute, a se virar -, a noite é muito mais bela

que o dia!

- Por que acha essa bobagem, querida?

- Porque inspiro-me mais no período noturno; há uma aura diferente, há mais sensibilidade!

- Sinto nada com a noite - replicou o decadente Vladimir. - Tampouco com o dia. O ócio sempre me acomete; e isso não me entedia como a outros. Não sei. Parece que nasci para isso! Nasci para o luxo, para a extravagância...

- Para isso precisa-se ir à labuta!

- Já para isso... Olha, não é que eu não queira. Só que não ajusto-me a função alguma!

Se o faço, é de forma forçosa e isso enche-me de rugas. A relação entre ambos não era boa. Conviviam há trinta e cinco anos juntos e nunca se amaram verdadeiramente. Quando em vez se apeteciam entre si, pois muitas idiossincrasias eram idênticas; porém, como percebe-se pela inclinação às atividades laborais, Rute sempre fora mais aplicada que Vladimir. Pensava ele que sua função era apreciar a existência sob o regozijo proporcionado pelo ócio; pensava ela que a labuta

engrandecia o homem - principalmente as funções dedicadas às artes.

- Estou cansada - exclamou ela, a adentrar o quarto. - Cansada de você e dessa falta de

objetividade. Nossa relação não progride. Estamos há quase quarenta anos juntos - exclamou Rute, a ser sempre afeita às elipses e às hipérboles.

- Mas o que eu posso fazer, meu amor? - inquiriu-se ele mais a si mesmo que a ela, a esboçar cinismo.

- Que amanhã você se levante e passe a fazer algo de útil - exclamou. - Que arrume um emprego!

Vladimir arqueou os sobrolhos. Jamais a vira falar de modo tão rude e autoritário. Jamais esperaria isso de uma geminiana, contudo.

Os dois se encaravam. Havia uma rispidez descomunal entre seus olhares. Uma guerra estava selada. Rute saíra para dar umas voltas. Ao passar por uma praça, avistou alguns vagos a conversar e a fumar maconha. Adentrara uma venda e comprara uns doces. A vingança de Rute viria naquela madrugada. Todas as noites fazia chá e o tomava acompanhada do companheiro. Eram sempre filmes de neorrealismo italiano ou dirigidos por Ingmar Bergman. A Vladimir não lhe

acometia a possibilidade de comer algo distinto. Seu corpo não tolerava amendoins. Violentamente reagia aos alimentos. A sabê-lo, Rute viu-o agonizar após comer - e não se recordar da enfermidade - incontáveis paçocas.

Rute viu-o debater-se e desfalecer até o último resquício de vida. Não conseguiu evitar um sorriso de júbilo ao vê-lo morto.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 07/06/2023
Código do texto: T7807786
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