No Caminho das Caravanas
– Então, como se sente hoje o nosso herói?
A jovem enfermeira cumprimentou-me desta forma ao entrar sorridente no quarto. Há pouco, quatro badaladas fizeram-se soar no relógio da parede bem em frente ao leito que por oito dias me abriga. Meu nome é Josh Burn. Não fosse a paisagem tranquila, que através da janela me é dado contemplar, não sei se suportaria a lentidão e o tédio destes enormes ponteiros. A lembrança do que passei, somada àqueles dias intermináveis, me deprime profundamente. Atravessar quilômetros de um terreno árido e assassino, enfrentar a fome e a sede e um incomparável medo da morte. Passei por tudo isso na mais difícil batalha da minha vida. Se fosse um pouco mais ousado. Se tivesse utilizado a coragem no lugar da covardia ou a atitude firme no lugar da indecisão, talvez não me encontrasse agora sobre este leito solitário a maldizer minha sorte.
Era, porém, a manhã de um dia especial por ser dedicado às visitas. Qual não foi minha surpresa quando, finda a frase da enfermeira, surge na porta Roger, meu melhor amigo. Viera de Nova York a Boston especialmente para esta visita. Sei do sacrifício que devia estar fazendo ao largar seus incontáveis afazeres de um grande empresário que é. Era esta uma a mais entre as inúmeras provas de amizade que Roger me fornecera durante a vida. Não contive as lágrimas ao abraçá-lo. Sentado no leito, olhava em seus olhos que demonstravam ternura, mas também um pouco de piedade. As enormes sobrancelhas de Roger eram o seu traço principal quando ele sorria, como fazia agora. Elas se expandiam, tomando grande parte da testa. Roger era só simpatia.
– Ora! Mas este não é o melhor jeito de receber o amigo que há tanto tempo não o vê – disse num tom carinhoso, apertando-me o ombro e dando uma sacudidela como para transmitir-me ânimo. A um pedido seu e vendo quão bem eu me movimentava, permitiu-nos a enfermeira uma saída do quarto. Levantei-me com cuidado, pois tinha engessados uma perna e um braço, e sentei-me em uma cadeira de rodas. Meu amigo agradeceu e, dispensando a moça, conduziu-me para fora. Tomamos um longo corredor e fomos para um jardim na parte de trás do prédio. Havia ali outros pacientes junto as suas visitas. O gramado era amplo, com algumas cadeiras que iam e vinham conduzidas entre as árvores espaçadas. O clima de fim de tarde era ameno e o sol incidia suave sobre o verde das plantas e a água dos chafarizes. Roger encostou a cadeira a um dos bancos e sentou-se. Assim, de frente um para o outro, podíamos conversar tranquilam ente.
– Temos mais de meia hora – disse, olhando em um pequeno relógio que tirou do bolso da calça. – Porque saiu de Boston e veio arranjar esta aventura neste fim de mundo? – Estávamos em Kansas City.
– Você sabe que eu não tinha mais alternativas após o incêndio em minha fazenda; estive à beira da falência. Você conheceu o delegado de Blue Springs? Sempre foi de minha inteira confiança e o que me propôs era irrecusável na situação em que me encontrava.
– Concordo com o que diz. Porem, não desconhecia o perigo representado pelo trabalho das caravanas. Reconheço que o transporte de ouro entre aquelas cidades é o que há de mais lucrativo atualmente e por levar em conta o grande risco.
– Nosso erro maior foi não ouvir o Frank e concordar com Tracy no meio do caminho quando sugeriu que pegássemos aquele atalho. E o pior é que sabiam dos ataques que já ali haviam ocorrido. E, para nossa desgraça, fomos enguiçar logo naquele trecho.
– Sei que é duro para você, mas quer contar como tudo aconteceu?
– Conduzíamos ouro em boa quantidade. A provisão era mais do que suficiente para os dois dias até alcançarmos Riverside. Enquanto concertavam a roda, afastei-me do grupo, levado pela beleza esfuziante do lugarejo. Havia um lago bem a nossa frente e que não era pequeno. Levava comigo algumas garrafas vazias; lembro que me sentei à beira deste lago. Foi quando, ao lançar o olhar para trás, alertado pelo galope louco de um bando de índios, joguei-me atrás de uma moita e passei a mero espectador da terrível cena que não sai da minha cabeça. Eles eram dezenas a brandir suas lanças e, em fúria e algazarra, atacaram e trucidaram um a um meus companheiros. Cinco vidas, cinco esperanças disseminadas em um piscar de olhos. E o mais triste é que ocorreu diante da minha visão alarmada e impotente. Eu estava entre o lago atrás de mim e alguns pinheiros que me davam certa proteção. Precisei continuar esc ondido a temer por minha sorte pois, finda a carnificina, ainda dois sujeitos permaneciam ali, após a debandada dos outros. Eles eram de alguma tribo desconhecida para mim. Os enormes penachos esverdeados sobre as cabeças raspadas na nuca e ambos os braços carregados de braceletes coloridos indicavam um grupo de temíveis guerreiros. Além disso, ostentavam, em várias partes do corpo, especialmente no peito e nas costas, pinturas no tom avermelhado e preto. Suas lanças eram de um dourado peculiar, porém, mais curta do que o normal. De repente, um deles virou-se e começou a caminhar na direção em que eu me encontrava. Por sorte, os pinheiros eram abundantes e ficavam em nível superior ao do lago. Eu estava abaixado à margem da água quando o selvagem se aproximou. Não tinha como me esconder. Estávamos menos do que dez metros um do outro. A única arma que eu carregava era uma faca presa à cintura. Ele brandiu a lança. Foi então que mergulhei no lago, certo de que encontraria a morte espetado pelas costas, mas tal não ocorreu. Segui nadando desesperado e, sem olhar para trás, alcancei a outra margem. O cansaço era tal que nada mais queria além de permanecer sentado e reaver meu fôlego.
O que me deixou surpreso, mas não menos amedrontado, foi perceber que não havia mais perseguição. A visão tornara-se difícil agora devido à distância, mas podia ver que nem mesmo a carruagem se encontrava por lá. Por certo, pensei, foram-se, levando o ouro. Tomado de ódio, massacrado pela fome e pelo cansaço, levantei-me. O sol forte faria secar com rapidez minhas roupas. Despi-me e estendi à beira do lago, sobre uns arbustos secos e desfolhados, a calça jeans azul-marinho e uma camisa branca de malha, as únicas peças que me restaram. Dezfiz-me também da cueca preta, torci-a o mais que pude e voltei a vesti-la. O tênis ficara para trás, mas faltou-me, àquela hora, coragem para recuperá-lo.
Voltei a sentar na relva. Enquanto esperava, dominado ainda pelo medo e pela insegurança, revia na mente a terrível cena que me levara os amigos de que tanto gostava. Oprimido que estava, não foi difícil às lagrimas banharem-me o rosto triste e abatido. Não sei por quanto tempo fiquei neste estado, nu, abandonado e exposto às lanças daqueles temíveis guerreiros. Precisava fazer alguma coisa, mas faltavam-me forças e os meios. Olhei o lago. Suas águas eram, agora, com a aproximação do crepúsculo, serenas e contagiantes. Esta contemplação fez efeito em meu estado e eu me levantei. Não poderia ficar sem meus sapatos e minha faca. Sendo assim, livrei-me da cueca e, como vim ao mundo, mergulhei.
Ao alcançar a outra margem vi, junto a sua lança e caído de bruços, o temível selvagem. Uma das mãos e parte da cabeça estavam submersos. Algumas penas do seu cocache bailavam na água calmante do lago. Saí da água e aproximei-me para olhar o corpo. Dois ferimentos à bala perfuraram-lhe o pulmão e o coração.
– Josh! Josh! Pelo amor de Deus, me ajude.
Reconheci a voz de Victor, fraca e abafada. Como uma flecha, ergui-me e fui até onde ele estava. Examinei seu ferimento. Tinha uma perfuração de lança no lado direito do tórax, felizmente, não muito profunda, mas havia sangrado muito e urgia cuidados imediatos.
– Lutamos e ele me acertou. Precisamos sair daqui imediatamente, Josh. Se não puder comigo, fuja, companheiro!
– Onde está ele? – perguntei, nervosamente.
– Caiu fora na carruagem, mas não deve ter ido muito longe, meti-lhe duas balas no couro.
– Tudo bem. Agora, fique quieto, já volto.
Consegui fazer parar o sangramento de Victor. Tirei com cuidado sua camisa encharcada de vermelho e fiz com ela tiras, improvisando ataduras. Saquei, de seu próprio bolso, um vidro de uísque, pois sei que não vivia sem ele, e dei-lhe alguns goles. Arrastei-o para debaixo de umas árvores e ele descansou, após comer algumas frutas que consegui nas proximidades. Logo adormeceu.
Não era comum às caravanas escolherem como suas rotas aquele pedaço de estrada. Embora fosse um atalho cuja escolha trazia enormes benefícios aos transportadores de ouro e outros valores, somente os mais temerários ou os mais incautos incluíam-na em suas rotas. Eu precisava pensar num meio rápido e seguro de sair dali com Victor. Por isso, considerei a possibilidade de reavermos a nossa carruagem. Poderia estar, a esta hora, em poder daquela tribo ou, se tivéssemos sorte, virada ou espatifada contra alguma árvore do caminho. Completamente nu, embora fosse isto o que menos importava em meio àquela situação, não me sentia à vontade, muito menos pronto para empreender qualquer espécie de busca. Tinha que pegar minhas roupas, mas como retornar dentro delas? Calculando o perímetro do lago, vi que teria enorme percurso a caminhar se quisesse retornar por terra firme. Porem, maior era a preocupação em ter que deixar Victor entregue à própria sorte durante minha ausência. Ainda sem a solução em mente, dei alguns passos até o lago e mergulhei.
Braçadas tensas e apressadas fizeram-me alcançar a outra margem. Em lá chegando, descansei alguns minutos e, satisfeito, vesti minhas roupas. Não havia outra coisa a fazer senão dar a volta e foi o que fiz sem muito pensar, pois já se insurgia a noite. Como estava descalço, cuidei ao ver onde pisava. Já que o caminho entre as árvores se apresentava coberto de folhas em muitos trechos e, portanto, inóspito e perigoso. Cheguei sem problemas e encontrei Victor ainda na mesma posição; dormia profundamente. Como havia sido penoso e dolorido aquele dia! Ainda agora me pergunto como consegui, após tudo que havia visto e passado, encontrar forças para manter-me de pé. Vencido pelo cansaço extremo, deitei-me ao lado de Victor e logo adormeci. O calor era insuportável e os mosquitos zuniam em volta das nossas cabeças. Isto me fez despertar várias vezes. Para piorar a situação,Victor teve febre, tão al ta que o fazia delirar. Passei parte da noite em vigília, zelando por sua saúde, usando compressas frias sobre sua testa, o que fez minorar um pouco o seu sofrimento. Consegui, então, dormir mais sossegado, já em meio à madrugada. Todavia, não foi muito longe a minha paz.
Senti algo furando minha barriga e meu peito; acordei sobressaltado. Qual não foi o meu susto, ao ver, em torno de mim e do meu amigo, brancas e pontiagudas lanças. Do alto, iluminados pelo raio do sol, que atravessava as copas das árvores, temíveis rostos selvagens. Suas feições eram medonhas. Tinham a boca escancarada, pondo à mostra enormes dentes. As orelhas eram pequenas, assim como suas cabeças. Não usavam ornatos, mas traziam os cabelos assustadoramente arrepiados. Estavam descalços e, como trajes, não mais do que uma tanga marrom e plissada. O chefe deles usava uma tiara vermelha, enfeitada com penas de pavão azuis e amarelas e um enorme colar carregado de dentes de algum animal selvagem. Sua fisionomia, entretanto, parecia-me menos ameaçadora. Qual não foi o meu espanto ao ouvi-lo falar a minha língua.
– Levante-se – disse, num tom calmo, mas autoritário. Sem outra alternativa, pus-me de pé, enquanto todos recolhiam as armas. Eram em número de sete e havia entre eles um, muito jovem, que não devia passar dos 15 anos. Ficou evidente, para mim, que estavam atrás da carruagem, pois, certamente, não teriam outro motivo para nos manter vivos, embora não fossem tão perigosos quanto à outra tribo. – Leve-nos até seu chefe – falou, tendo agora uma mão na cintura e a outra segurando a lança que cravara na terra.
– Não temos chefe, estão todos mortos – respondi, sinalizando na direção em que podia ver os cadáveres dos meus companheiros. Bastante incrédulo, pelo riso que esboçou, ele caminhou até à beira da estrada e voltou, desta vez com a fisionomia mais séria.
– Muito bem, onde está a carruagem?
– Se soubéssemos, não estaríamos aqui, certamente.
Ele olhou-me, contrariado. Era muito forte. O corpo totalmente bronzeado e um jeito altivo, um verdadeiro guerreiro.
A impressão que me causou é que poderia, de alguma forma, confiar nele e no seu grupo; pareciam amigáveis. E minhas suposições não tardaram a se confirmar. Minutos mais tarde, encontrávamo-nos em roda, a trocar informações que pudessem nos conduzir ao encontro do nosso ouro. Com a assistência e o conhecimento daquele grupo,Victor poderia considerar-se fora de perigo. Demonstrava animação e grande apetite, agora. Só então fiquei sabendo como conseguiu se livrar da morte. Como eu, havia se afastado minutos antes do terrível ataque. Graças à vontade abençoada de esvaziar a bexiga.
– Enquanto urinava – dizia –, ouvi gritos de guerra e calculei o que estaria prestes a acontecer. Corri, já de arma em punho e atirando. O primeiro que acertei foi o selvagem à beira do lago. Ao ver um outro golpeando Tracy, que morreu terrivelmente, atirei, mas não havia mais munição. Então, como louco, lancei-me sobre ele que girou rapidamente, ferindo-me com a lança. Ainda assim, consegui desarmá-lo. Como um raio, ele correu, sentou-se à carruagem e deu partida. Saquei da cintura de Tracy, que agonizava, uma outra arma e descarreguei sobre o desgraçado. É certo que consegui alvejá-lo, pois que, por duas vezes, senti que se contorcera ao choque das minhas balas. Juro-te, amigo, que rezei a todos os santos para que me tirassem daquela, enquanto botava sangue, sem forças e já sem esperanças. Jamais poderei agradecê-lo por me ter salvo a vida, Josh, muito obrigado –completou, emocionado.
– Chame Ventania – disse o chefe deles, dirigindo-se ao índio menino. Este fez com a cabeça uma espécie de reverência e levantou-se. Com dois dedos entre os lábios emitiu um assobio tão alto e agudo que me fez estremecer os ouvidos. Ouvi então um galope e, ao me virar, vi um belo animal, todo branco, com elegante crina acastanhada. Ele chegou relinchando, jogando para o alto a cauda e coiceando o solo como a cumprimentar o grupo.
- Leve homem ferido à cabana para descansar e volte com Rocha Marrom e Lua Pintada, comida e muita munição – O pequeno lançou-se ao lombo do cavalo com incrível agilidade e ficou a espera de Victor que me olhava entre surpreso e assustado. O chefe, percebendo a hesitação do meu companheiro, levantou-se e disse, estendendo-lhe a mão:
– Vamos, não há o que temer. Além do mais, não há outra escolha se querem recuperar o ouro perdido. – Victor continuava a me olhar fixamente e só deu a mão ao índio ao ver-me balançar a cabeça num sim meigo e encorajador.
Meia hora depois já estávamos, ambos, em nossas montarias a cavalgar em direção a oeste. Não fomos muito longe como calculara meu amigo. Há uns trezentos metros de distância avistamos a carruagem. Estava ao lado de uma rocha. Havia saído da estrada de terra e enveredara por uma trilha de areia e muitas pedras. Vimos, ao nos aproximar, que uma roda se partira e ela se inclinara para frente ao bater de lado na rocha. Como previsto, o selvagem não resistira aos ferimentos e morrera enquanto a conduzia. Seu corpo ficara horrivelmente posicionado, oferecendo um espetáculo grotesco e sinistro. Estava pendurado, caído para fora, com as pernas presas ao estribo da carroça e os braços pendidos, quase tocando o solo. Certamente, o impacto o projetara dessa forma. Os olhos estavam arregalados e da boca escorria um líquido branco e nauseabundo. Os abutres voavam já bem próximos, preparando-se para o lauto ban quete. Inspecionamos o interior do veiculo e, para nossa surpresa, nem sinal do ouro.
– Veja! Estas pegadas são recentes – disse eu, sinalizando para o índio as marcas de ferradura na areia a nossa frente.
– Vejamos até onde vão – disse ele, já açoitando o cavalo. Fiz o mesmo e, logo à frente, alcancei as marcas. Eram muitas e misturadas, só deixando a certeza de que dois cavalos, no mínimo, por ali haviam percorrido. Passadas pouco mais de duas milhas, tornou-se impossível acompanhar qualquer coisa, pois estávamos agora sobre mata rasteira novamente. Chegamos a um rio, largo, mas com pouca água, facilmente transponível à cavalo. Olhei para o chefe índio e vi um sorriso de vitória em sua fisionomia.
– Espere aqui, não me demoro. – Dizendo isso, atravessou a fraca torrente entre as pedras e desapareceu no declive que se formava do outro lado entre os pinheirais. Olhei em minha volta. À minha esquerda, uma trilha escurecida, porém ampla, quase uma estradinha e, à direita, a floresta. De repente, um grito medonho e abafado. A mim, pareceu vir da trilha. Ao virar naquela direção senti, no alto da árvore sobre minha cabeça, um movimento. Era um homem, pronto a lançar-se sobre mim. Eu tinha na cintura uma faca. Ele era velho e sem muita agilidade; teria, portanto, tempo de sacar minha arma e liquidá-lo. Preferi, no entanto, fugir a tentar algo.
Mas, acho que me enganei sobre sua agilidade pois, antes que manobrasse minha montaria, quase à beira do rio, senti nas costas um doloroso baque. Caí de mal jeito na água e bati de cheio em uma pedra. O braço estava torto e a perna esquerda doía, também, terrivelmente. Senti que era o fim da minha vida quando o sujeito arrancou-me da cintura a arma e gritou, enfurecido, tendo minha cabeça sob sua mira.
– O ouro! Onde está o ouro? Diga-me, se gosta dos seus miolos.
Não tinha o que responder e nem conseguiria, tamanha era minha dor.
– Ah! Então, se prefere assim – destravou a arma para atirar. Fechei os olhos.Voltei a abri-los com o gemido abafado que saiu do velhote. Seus olhos esbugalharam-se; ele ficou lívido. Soltou a arma e caiu por cima de mim. Novamente gritei de dor e, com o outro braço, o esquerdo, empurrei-o para a água. Só então vi, em suas costas, profundamente cravada, a lança do chefe índio.
Olhei para a outra margem e o avistei sobre o cavalo, já vindo em minha direção. Desmontou e passou a examinar-me. – Vamos para casa; está tudo terminado – falou, erguendo-me.
– Mas, e os outros, e o ouro?
– Vamos! – repetiu. Não há mais com que se preocupar. Há um preso em nossa armadilha. Aconselho a não ir vê-lo. Não seria bom para o seu estômago.
– Ouvi um grito horrível.
– Sim, fiz para abreviar seu sofrimento e, também, a fome dos urubus.
– Onde estamos?
– Está bem próximo de um descanso e de rever seu amigo e algo mais. Minha tribo está no fim daquela trilha, a menos de dez minutos de cavalgada.
Deu um assobio e apareceu o índio menino, na outra margem, sobre o mesmo cavalo branco. Quando se aproximou, fui colocado em sua garupa e seguimos, lentamente, pela trilha. Ao fim desta, abriu-se uma clareira e eu pude avistar a aldeia. Dezenas de choupanas ocupavam enorme área. Eram brancas, muito novas e muito bem cuidadas. Ao lado de algumas, havia jardins e, em volta destes, objetos comuns à nossa civilização como baldes, regadores e enxadas, o que achei muito estranho.Também, alguns índios, principalmente mulheres, ostentavam roupas e adornos iguais aos nossos. Fui conduzido a uma enorme cabana com três compartimentos. Victor estava sentado em numa poltrona. Tomava chá em uma caneca e sentia-se bem disposto. Deitaram-me sobre um sofá ao lado da entrada.
– Prepare-se para a surpresa – disse meu amigo. O chefe havia sumido por trás de uma cortina vermelha que separava a sala de outro compartimento. Quando o menino índio dirigiu-se até a cortina e a escancarou de ponta a ponta, quase não acreditei no que meus olhos viram. Dois homens, um branco, barbudo e outro magro e mal encarado estavam algemados nas costas um do outro e sentados sobre o piso frio da cerâmica. Ao lado deles, encostadas à parede, as oito sacolas de ouro, intactas, do jeito que as carregamos para a viatura. Um homem, corpulento e sexagenário, metido em elegante terno cinza e aparentando bastante simpatia, foi-me apresentado pelo chefe indígena.
– Este é o Sr. Brad, que há dois meses supervisiona as negociações com a Gold Union, que é o destino de todo esse ouro.
– Muito prazer, Sr. Burn. Vejo que passaram por maus momentos, mas agradeçam a Pavão Dourado, grande chefe índio, a sorte de vocês. Ele e sua tribo é o responsável pelas caravanas que cruzam esta região a caminho da Gold Union. Lamentamos a morte dos seus amigos, mas não foi por falta de aviso que pegaram a estrada proibida. Resgatamos o ouro graças à habilidade deste menino – apontou para o indiozinho – que, ao deixar aqui o seu amigo, dirigiu-se ao rio e preparou a armadilha. Um dos bandidos passou a pé e escondeu-se por trás das árvores ao ver o índio e sua lança.Veio em seguida um outro, montado e com as sacolas de ouro e, desta vez, foi o pequeno índio quem se escondeu. Foi fácil, após recuperarmos o ouro, prender estes dois aqui que, certamente, roubados, chegariam àqueles que os haviam traído.
E assim, amigo Roger, tem você toda a história. Pretendo retornar a minha doce terra logo que deixe este hospital. Sua visita trouxe-me novo ânimo e vontade de viver. Não quero mais saber de fazendas ou nada que se refira à cavalos. Teria eu, por acaso, uma chance em uma de suas empresas?
– Certamente que sim, amigo. Aliás, quero lhe contar o outro motivo da minha visita…