Qual o som de uma queda?
Marina varria seu jardim, levando a sujeira para a calçada. Uma senhora de oitenta e três anos, de físico que não colaborava muito, parando, a cada minuto, um instante, para descansar as costas e tomar fôlego. Suspirava forte. Os olhos tinham um fino anel azulado, encerrando as íris castanhas. Azulejo ocre e ladrilhado, preenchido por vários vasos, de diversos tamanhos, com as mais diferentes plantas; um corredor colorido e cheiroso antessalando o interior. Deixava ali apenas um espacinho para ler a Bíblia e as revistas de palavras cruzadas; além do varal. Lugar bem arejado, mas que acumulava muita areia da rua.
- Boa tarde, dona Marina!
- Oi, minha filha.
Era uma vizinha passando com umas sacolas, dobrou a esquina e se foi. Marina se escorou na parede do portão e ficou observando. Do mesmo lugar donde a vizinha passou, um gato surgiu. Pretinho, faltando pelo na testa, entre as orelhas e os olhos - azulíssimos de brilhar. Ele veio se aproximando, com o passo elegante dos felinos, chegando perto dos pés dela.
- Xô! Vai, vai!
E gato é bicho teimoso.
- Vá se'mbora!
Ele liga?
Pegou a vassoura e movimentou contra ele, mas com a força leve própria desses idosos dolentes. O gato correu para o outro lado da rua e se sentou, fixando o olhar. Daí Marina entrou. Ela detesta gatos. Já até rezou pra São Francisco tirar isso dela. O motivo, o que sei, é por causa das plantas: de quando em vez, surgem vários deles, uns cinco ou sete, dentro da área e fazem uma bagunça. Um, assustado, foi fugir e caiu em cima de um vaso, quebrando vários galhos. Outro cavou um monte. Outro deixou um presente... Há também o problema do lixo: ela deixa num saquinho, pendurado, e eles, não satisfeitos em rasgar, também espalham toda a porcaria.
Detesta gatos.
Sentada no sofá marrom, respirou fundo e ligou a TV no seu canal: Pai Eterno. Passava horas ouvindo os ensinamentos dos padres, a missa, o terço. Era até colaboradora da associação, pagando o carnê mensalmente, sem falta. O painel da televisão acompanhava vários retratos de seus netos, filhos, de quando o marido era vivo. Alguns santos, um santuariozinho, um prato com vela. Bíblia, liturgia diária... Passava o terço da misericórdia. Ela suspirava a resposta e descansava, de olhos fechados.
Lembrou-se do filho mais novo, de quase cinquenta anos, que vez ou outra aparecia pedindo dinheiro para pagar a droga. Anos de luta. Morava noutro bairro, se mudou uns meses depois do esposo morrer de pneumonia (danado, mais de setenta e saindo uma hora da tarde para pegar manga, varrer...). Foi para a rua das filhas: quase ao lado morava uma neta e a filha cadeirante, mais umas 20 casas morava outra filha. Uma maneira da família tirá-la de lá, onde os traficantes iam cobrá-la na porta de casa pelo que fizera o filho. Rezava lembrando dele. Aquele terço seria para ele, apenas, apesar das dores nas juntas, nas costas, da diabetes. Cochilou.
Quando despertou, já era noite: umas seis e alguma coisa. Levou um susto. Sorte ter feito alguma coisinha para o jantar, uma hora dessa rezava-se a missa. Ela se levantou, depois de muito esforço, e foi para a cozinha ligar a luz, tirar a escuridão da casa. Porém, no meio do caminho, o coração bateu forte: uma luz estranha no meio do nada, na sombra. Só via a luz. Até pensou que fossem os olhos, mas os óculos estavam longe. Teve receio, ligou a luz duma vez: era o gato. Achou uma audácia.
- Sai! Sai! Safado!
Ela até tentou dar um ponta-pézinho nele. Quase escorregou. Ele foi para frente da casa, no jardim, e pulou o muro. Ficou lá o danado, sentado mais uma vez. Irritada, preferiu deixá-lo, prometendo dar um banho nele se continuasse ali depois dela jantar. Era um ovinho frito à tarde, e arroz com alguma salsinha. Só. Jogava um pózinho que a nutricionista recomendou. Só. Precisava emagrecer.
Quando terminou, foi para a mesinha lá do jardim, esperar a filha do lado chegar - que ela dormia junto, para evitar qualquer coisa. Acabou até se esquecendo do gato. Onde foi? Encontrou algumas palavras na revista e, depois de um tempo, chegou com a neta, pedindo a benção. Geralmente passavam a noite assistindo algum programa, apesar de Eliana passar maior parte do tempo contando as novidades da família e do que aconteceu no depósito de construção de Mickaele, a neta.
Eliana já tinha mais de quarenta, cadeirante devido a poliomielite. Nunca casou. Vivia numa tranquilidade e era catequista da comunidade. A noite cresceu e foram dormir, havia dois quartos. Durante o sono, Marina chegou a ouvir uns ruídos no jardim. Pensou logo: é o gato. Mesmo deitada, se emburrou. Teve até vontade de levantar só para ver pela janela, mas o esforço não recompensava. Dormiu. Por incrível que pareça, sonhou com o gato e o miado dele reverberando na cabeça. Acordou esquisitíssima, bem cedo. Café, pão e alguma fruta. Eliana foi embora, levada por Mickaele. Mais um dia viria.
E o dia a dia era assim.
Algumas vezes vinha o neto deixar algo que a mãe mandara, aquela da mesma rua, ou outro filho passar o tempo e por aí vai. O gato, que até recebeu o apelido de Teimoso, continuava aparecendo. Virou até objeto de reclamação dela para as filhas e Mickaele. Ficou até engraçado: todo mundo já sabia do tal gato. Faziam piadas e tudo. De certa forma, chegou a aliviar a raiva que ela sentia, mas nunca deixou de espantá-lo.
Pior que ninguém sabia se havia dono, já que o povo tinha mania de deixar os gatos soltos por aí. A vizinha do lado, por exemplo... criava não sei quantos e sempre vinham parar no jardim dela. Depois que viu os gatos chegarem em casa atordoados e molhados, foi que prendeu-os mais.
Aguava as plantas, arrancava as folhas queimadas. Um cuidado de mãe. Prendia as roupas úmidas. Tudo bem devagarzinho, como o passeio dos bois que via na infância. Quase onze horas, quando o sol começa a esquentar muito. Ai! Só tinha feito o arroz. Hoje era dia de peixe. Adorava. Tirou duas postas pequenas para fritar. Pensando na comida, lembrou da diabetes. Ai, de novo! Esqueceu de tomar a insulina! Largou o lençol pingante e foi para dentro, molhando o chão a cada passo. Ia célere, mas se apoiando nas paredes e móveis. Murilo, mais cedo, havia estado ali. Criancinha sapeca, tinha 5 anos. Filho do mais velho. Sempre quis ser pai, mas só foi ser chegando aos sessenta. Ficou tão alegre...
Infelizmente, precisou se separar a segunda mulher: bebeu num dia e acabou brigando com a sogra, que já não gostava dele. A esposa terminou aí. Tantos problemas tem a vida. Por mais que tenha sido uma bobagem, a decisão "fácil" parece ter sido, também, porque ela não aguentava mais ele; e já havia boatos de que lhe traía. Mas isso é coisa pra resolver com Deus. Daí, tendo de trabalhar e tudo o mais, deixava, nos dias que ficava com o filho, ele na casa da vó. Uma senhora de 83 anos cuidando de uma criança de 5, imagine.
Ele gritava tanto... Dava tanto trabalho. Tinha hora que não queria dormir, corria a casa toda com os carrinhos de brinquedo. A bola caía nas plantas... Menino! Passou a manhãzinha e se foi, mas a bagunça continuou - ele voltaria só à tarde. Na pressa para a cozinha, ela tropeçou num dos carrinhos. Era mais uma queda, só naquele ano tinha levado três. Nunca aconteceu algo sério, como bater a cabeça ou coisa assim, mas estava nervosa. Sentiu até um frio, a visão oscilando. Quanto será que estava a glicose? Tinha comido uns bombons que Murilo levou, mas achava que não tinha problema. Pedia por Nossa Senhora. Não tinha ninguém por perto. O ar até faltava, e ela tentava puxar o pano do sofá para levantar, mas só se cansava.
Lá no depósito, Eliana e Mickaele discutiam se o preço de um spray de pintura estava certo, foi quando o gato apareceu na porta, miando muito...