A VILA
O som pesado das badaladas ecoava pela rua mal asfaltada, que dava acesso à entrada do vilarejo. A figura esguia do delegado Lima chegava após aquele alarde inicial. O povo do pequeno vilarejo sabia o significado daquele som. As horas já se avançavam e a noite descia lentamente para levar consigo todo aquele que não a conhecia. Lima olha para o relógio e aperta seu passo, saca do bolso do seu surrado paletó um binóculo. Ao longe, enxerga alguns jovens com um certo ar festivo a frente da velha casa colonial. Se detém por alguns minutos a observá-los, Caio tira-o do transe com sua voz anasalada ao afirmar que já não tem mais ninguém por entre as vias da vila. Lima com um meneio suave agride o ar com sua voz tensa:
- Ok, obrigado subdelegado. Vou acompanhar aqueles... (Antes que acabe sua frase, vê os jovens começarem a se dispersar e entrar na casa). Bom, acho que já podemos ir. Continuou o delegado.
Ambos tomam o rumo da delegacia. O velho prédio ainda trazia um certo conforto para aquelas pessoas. Sabiam que havia ali o empenho de uma autoridade para protegê-los nesses tempos difíceis. Ao passo que se aproximam do assoalho da decadente construção, surpreendem-se com a imagem de Flora ainda brincando no balanço. Sua mãe corre para buscá-la. O olhar severo do delegado Lima assusta a pobre menina, que automaticamente busca no colo da mãe refúgio. As duas entram às pressas, trancam as portas e tocam na pedra fria do talismã suspenso na entrada da casa.
Por entre as frechas da cortina, o subdelegado avista pela última vez, naquela noite, as ruas esquecidas da vila. Toda a movimentação das horas anteriores cede lugar para um espesso e denso silêncio, que traz consigo um mal vindo do ar frio da floresta. Eduardo balbucia algumas palavras incompreensível, enquanto João o pragueja, pedindo para que vá para sua casa. O bêbado já nem se levanta mais. Vencido pelo cansaço, João só fecha as janelas e deixa o corpo amolecido do beberão ali no chão da sua taverna. Maria, mãe de Flora, esbraveja em seus pensamentos algumas falas contra seu marido que não chegara em casa. Enquanto fechava as cortinas da velha casa, ouve ao longe, no outro cômodo, sua filha rezando como mandara ainda há pouco. A garotinha estava com suas pelúcias na cabeceira da cama, enquanto, debruçada ao lado, se punha a orar pelos seus pais e por si. À medida que ela avança em suas palavras é interrompida por um estampido vindo da janela. Seguido por uma voz trêmula e fria:
- Flora, minha querida! É a vovó, venha aqui abrir a janela para que eu possa lhe ver.
- Não posso. Minha mãe não me deixa abri-la após o pôr-do-sol. Disse a menina um tanto quanto curiosa para saber quem lhe chamava.
A voz foi ainda mais insistente. E vencida pela sua curiosidade, a menina se dirige até a janela. Tira a cortina e vê a imagem de uma figura velha se desenhando por detrás do vidro. A criança não reconhece de quem seja aquele rosto, não é próximo das rugas características da imagem que tinha da sua avó. A figura busca manter um diálogo com a criança e murmura por entre os lábios secos e arroxeados:
- Oi meu amor, estava com tanta saudade. Abra aqui para que possa entrar.
Ainda um pouco desconcertada por não saber de quem era aquele rosto a menina diz:
- Não posso, a mamãe disse que não devo abrir a janela à noite.
Ouvindo os balbucios de sua menina, Maria sobe as escadas para ver o que se passava no quarto da filha. Ao vê-la de frente para a imagem assombrosa, entra em pânico e pede para Flora se afastar da janela. A criança, meio que envolta de um transe ou algo assim, simplesmente não a responde e fixa-se na sombra projetada lá fora. Sua mão vacila para a tranca da janela, o trinco range ao ser forçado. Maria desespera-se e grita ao perceber o movimento da sua filha. Uma mão prolonga-se e lhe cala a voz com um apertão gélido em sua garganta. A figura assombrosa da velha já se encontrava dentro do quarto. Maria vê o corpo de sua menina prostrado ao chão sobre uma poça de sangue que lhe embebe o surrado pijama. Não consegue gritar por socorro, sente o hálito de morte que acompanha o rosto cadavérico daquele mostro. Um som de tecido rasgando-se faz com que seus olhos assustados percebam as laterais da boca daquela coisa se expandindo como uma serpente a engolir sua presa. Maria tenta com alguns movimentos se livrar da sua eminente morte, mas sente seu corpo vacilar. O sangue que lhe escorria pela jugular era sorvido pela figura demoníaca que lhe atacara. Não era um vampiro ou algo assim, parecia mais uma besta ao passo que não somente o sangue lhe saciava. Aquilo agiu como a face do verdadeiro mal, não era um simples ser mistificado ou vindo das narrativas para fazer com que as crianças durmam mais cedo. Aquela figura era o próprio demônio, a personificação de todo o mal enraizado em nosso íntimo.