O dragão e a serpente
Segunda feira
No susto, sua mão bateu no interruptor.
De dentro da escuridão saiu a luz do abajur empurrando a escuridão. Assustada ela se escondeu por trás dos móveis do quarto. Mesmo assim, num relance de medo, ele ainda viu algo como um vulto que num último movimento da escuridão ocultou-se por trás do guarda roupas. Um vulto furtivo, como se a própria escuridão tivesse uma forma, formando um ser sorrateiro sumindo do ambiente, agora, iluminado…
Parecia a cauda de um dragão?
Parecia a calda de um dragão!
Mas ele sabia: dragões não existem!
Então o que teria sido aquilo? Sombra? Mas sombra de quê?
E, além disso, como explicar aquele movimento da sombra? Movimento como se ela estivesse em movimento. Como se estivesse correndo pela parede. Como se estivesse viva…!
Mas a sombra tem vida? Move-se, correndo pela parede?
Ainda com a dor da luz doendo e incomodando os olhos, olhou ao redor de todo o quarto. Nada de anormal! Nada assustador. Tudo bem arrumado e organizado como ele sempre deixava: guarda roupas fechado. Gavetas fechadas.
Sua roupa, dobrada, sobre a mesinha de cabeceira. Podia ver a calça, sobre ela a camisa e a cueca.
Mesmo com dor, nos olhos, ainda sob o lençol, sentiu a gostosa sensação de acordar sem nenhuma roupa prendendo o corpo. Completamente solto. Exatamente como nascera!
Sentiu o corpo suado!
Só então percebeu: seu coração parecia querer pular para fora do peito. A pulsação acelerada denunciava o fato ter acordado tão de repente despertado por um susto nunca experimentado.
Pior, ainda: com aquela sensação de que algo sorrateiro lhe tocara o rosto, acordando-o.
Só então percebeu que estava assustado.
Só então se deu conta de que acabara de acordar.
Só então entendeu: tivera um pesadelo!
Com essa certeza, começou a relaxar. Fora só um pesadelo. Dormira cansada. Tivera um pesadelo e acordara, cansado, assustado e com a sensação de que vira algo, como um dragão, escondendo-se atrás do guarda roupas...
Esticou o braço e pegou o celular, na mesinha de cabeceira: ainda faltava muito para seu horário de se levantar!
E só teria que sair de casa, para o trabalho uma hora depois de seu horário costumeiro de se levantar… Mesmo assim levantou-se. Agitado como estava, não conseguiria voltar a dormir...
Os olhos ainda doíam.
Já não era pela claridade. Era uma noite mal dormida. A cabeça doía, levemente… quem mandara tomar todo aquele vinho barato… compensado pela cerveja, trincando de gelada…
Agora, um pouco mais desperto, estava lembrando: Durante toda a noite acordara-se por várias vezes. Algo o incomodara ao longo da noite, mas não sabia o que era, pois no escuro, cansado como estava, não conseguia acordar… mas também não dormia como precisava, para fazer dormir o cansaço e acordar, como sempre acontecia, rejuvenescido pelo sono…
Com movimentos trôpegos caminhou para o chuveiro. Deixou a água quente, deslizar pelo corpo…, aos poucos, o mal estar foi cedendo…
Enquanto a cafeteira preparava seu café, pegou um pendrive entre vários jogados no potinho, um porta-trecos feito de um nó de bambu, objeto decorativo largado ao lado da caixa de som.
Enquanto a música de Raul Seixas enchia o ambiente, tomou o primeiro gole de café. E, quase per milagre, as últimas sensações da noite mal dormida, desapareceram. Já era outro homem. Pronto para mais um dia de trabalho.
Enquanto esperava a hora certa para se espremer na circular e ir trabalhar, pegou o livro que estava lendo na noite anterior. Olhou para aquela arte surrealista da capa. Ainda não havia entendido a imagem estampada,… mas continuou a leitura… até ouvir os vizinhos começando a se movimentar, nos apartamentos vizinhos. Ouviu o elevador. Barulhos de sacolas e o cheiro de pão quente da padaria.
Olhou, novamente as horas, no celular. Desligou o som. Pegou a mochila. Abriu a porta de saída. Apagou a luz com uma mão e puxou a porta com a outra. Transpôs o portal e ainda deu tempo de um último olhar sobre a cozinha… Nada de anormal em seu apartamento, seu reduto e paraíso particular.
Terça feira
Ouviu seu próprio grito, apavorado, ao acordar.
Tinha certeza de que algo se movera, sob seu lençol, no escuro da madrugada.
Acendeu a luz!
No milagre da luz, iluminando o ambiente, a escuridão desapareceu. Como que se evaporou… para onde vai a escuridão, quando a luz se acende?
Lembrou da noite passada, enquanto, novamente, teve a sensação de que um dragão havia se escondido por trás do guarda roupas…
Mas dragões não existem!
Mesmo assim, para afastar a dúvida que incomodava sua certeza, levantou-se e foi até o guarda roupas.
Dragões não existem, concretamente, mas existem na imaginação de quem já ouviu falar em dragão. Existem na imaginação dos contos e novelas e romances e narrativas de aventura.
Lembrou-se de alguns livros que já lera, nos quais os dragões emprestam e peritem que se construa uma narrativa, ao mesmo tempo, assustadora e um completamente fantástica. E foi com essa lembrança que se colocou diante de um dilema: se os dragões existem na imaginação, o que impede que existam na vida cotidiana, na realidade de cada dia...?
Observou bem o guarda roupas: Continuava ali, grudadinho à parede. Nenhum dragão caberia naquela minúscula fresta. Talvez uma lagartixa. Ou uma barata. Nunca um dragão… Mas nem barata ou lagartixa, pois mandara fazer faxina e dedetizar todo o apartamento.
Acontece que sentia absoluta repulsa, ao ponto de sentir náuseas, só de ver uma lagartixa… nada contra as baratas, mas lagartixas… por isso a dedetização. Algumas baratas e lagartixas estavam se atrevendo a dar as caras, escondidas nos ralos e fendas dos móveis, que não eram velhos, mas já tinham muita juventude acumulada...
Olhou as horas no celular… Ainda faltava um bom tempo para seu horário costumeiro de se levantar, preparar-se e sair para o trabalho. Mas agora, já desperto, repetiu a rotina matinal. E repetiu o que fizera na manhã do dia anterior...
Saiu do banheiro, ainda nu. Preparou e tomou seu café ouvindo música de um pendrive, aleatório. E, enquanto Roupa Nova tocava uma seleção romântica, estirou-se no sofá para mais umas páginas de sua leitura.
O som dos vizinhos, no corredor, lhe informou que já estava na hora de deixar o livro. Vestiu-se. E, como no dia anterior, já tinha esquecido do incidente do pesadelo que o acordara mais cedo, muito antes de seu horário costumeiro.
Sentia o corpo, levemente cansado, apesar de se sentir estimulado pelo café e pela expectativa de mais um dia produtivo. Gostava de seu trabalho: lecionar sempre fora sua paixão.
Pegou a mochila. Colocou o notebook e mais alguns livros… Em seguida os retirou. Lembrou que hoje aplicaria provas e não precisaria daqueles livros. Pegou o cabo do notebook, enrolou-o cuidadosamente e o colocou na mochila… estava pronto para sair…
E saiu!
Não sem antes lançar um olhar distraído para a capa do livro que estava lendo: ainda não entendia aquela reprodução artística: cores dissonantes e formas indefinidas.
Repetiu o ritual da saída: apagou a luz, fechou a porta com um último lance de olhos sobre a cozinha. Nada de anormal. E saiu!
Saiu, ouvindo um zumbido misterioso no fundo do corredor.
Mas ali também não tinha nada de anormal!
Mas o leve ruído persistia… devia ser o vento naquela vidraça quebrada, pensou de si para si.
Quarta feira
O ruido, estranho, viera do guarda roupas.
Disso ele tinha certeza.
Entretanto, diferente das outras vezes, desta vez não se assustou. Acordara com o ruído, porém não acendeu o abajur. Usou a lanterna do celular.
Mas fez isso com muito cuidado para não produzir nenhum barulho. Apontou a lanterna para a direção do guarda roupas e, só então, acendeu.
Foi tudo muto rápido!
Na mesma velocidade da luz a escuridão se escondeu por trás de todos os móveis. E foi justamente nessa fração milionésima de segundo; na velocidade com a qual a luz empurrou a escuridão para trás do móveis, pode ver, com a certeza que a dúvida produz: aquele vulto veloz, escondeu-se atrás do guarda roupas. Não podia ser só imaginação! Era um vulto, veloz, fugaz … E tinha a cauda de um dragão…
Mas dragões não existem!
Porém, ele admitiu, existem na imaginação. E se existem na imaginação, isso não pode significar que eles existem? Ou o que existe só na imaginação não existe?
Levantou-se. Acendeu a luz do quarto. Foi até o guarda roupas. Verificou e constatou. Novamente confirmou: Naquele espaço não caberia um dragão.
Mesmo dragões não existindo, eles não caberiam ali. Numa fresta milimétrica não cabe um dragão. Mesmo eles não existindo… mas se existissem, seriam enormes: asas enormes; corpo enorme; cabeça enorme; cauda enorme… e uma enorme boca soltando fogo e fumaça!!!
Pelo menos os dragões da imaginação são enormes! Tão grandes que, talvez, não coubessem nem mesmo em seu minúsculo apartamento de sala e cozinha conjugados; naquele minúsculo apartamento em que o quarto era formado por um armário colocado no meio da sala, de modo a formar uma parede improvisada.
Ali, em seu apartamento, não caberia um dragão. Isso com certeza. Portanto, se os dragões da imaginação eram maiores que seu apartamento, obviamente não caberiam atrás do guarda roupas, grudado na parede!
Essa certeza, que brotava de sua dúvida, o levou à conclusão: foi mais um pesadelo! Um pesadelo que nascia do excesso de trabalho. Só podia ser isso.
Eram delírios da imaginação de quem está extremamente cansado! A escola o estava esgotando. Sugando todo seu vigor!
Enquanto tomava café, ouvindo Rita Lee, analisava seus pesadelos. Concluiu que eram pesadelos produzidos pela sua imaginação, depois de ouvir as histórias daquela zeladora, sobre os fantasmas que invadiram o sítio em que seus pais moravam, no interior do Paraná.
Já faziam muitos anos, dissera a senhora, mas ela jurava ser verdade!
Dissera ela que lá aconteceram coisas que, cruz credo, nem gosto de me lembrar! Assim falava a descontraída zeladora, pessoa com quem gostava de conversar, nos intervalos das aulas, na escola. Aliás, quem não gostava daquela criatura maravilhosa, pronta apara uma prosa descontraída. Viúva do terceiro marido, mas bem humorada como uma donzela em véspera de casamento.
Lá, explicava a conversadeira senhora, escorada no cabo do rodo, começaram a aparecer uns ruídos estranhos. Depois começaram a desaparecer galinhas. Do nada se ouvia um grito de uma galinha e, no pleno sol quente do meio dia, depois daquele bater de asas, a galinha sumia. Nem pena deixava. Nem uminha sequer. Nadica de nada… nem da galinha nem penas da galinha… As galinhas sumiam, sem pena!
Com o tempo as galinha foram raleando. Diminuindo no terreiro. Depois de mais um tempo, as galinhas andavam assustadas e pararam de botar. Era medo! Elas sabiam que tinha alguma coisa errada. Uma coisa errada que comia galinha. Você já viu, né, que as galinhas correm da gente: elas sabem que a gente gosta de comer galinha! Daí ficam com medo. Por isso as galinha correm da gente. Pois é, assim estava acontecendo com as galinhas do pai.
As galinhas andavam desconfiadas, com medo até da sombra delas… as vezes olhavam de lado, torcendo o pescocinho, bem daquele jeitinho que as galinhas fazem pra olhar de lado, e enxergavam a sombrazinha delas e saíam correndo pra se esconder debaixo de algum pé de abacate, de limão ou de mexerica… acho que elas pensavam que tinham se escondido da sobra que corria atrás delas!
E assim prosseguiam as narrativas da sua amiga…
Mas lá não eram dragões: eram fantasmas!
E fantasmas existem, muita gente disse que já viu. Pelo menos, assim juram aquelas pessoas que juram ter visto um fantasma.
E os dragões? Dragões, esses não existem. Ninguém jura que já viu um dragão… quem conta que viu, só viu nalgum filme ou imaginou o bicho descrito em algum livro de aventura com dragões… que nunca saíram dos livros nem dos filmes… bem… saíram de lá dentro da cabeça de quem leu ou assistiu ao filme! Mas só assim!
Eles não saem do livro ou do filme pra se esconder atrás de um guarda roupas!
Com os fantasmas não é assim.
E lá, no sítio do pai dela, os fantasmas não assustavam as pessoas: só as galinhas!… e os cachorros que, a cada grito das galinhas, latiam e latiam e latiam… só que ninguém via nada. Só ouvia os gritos das galinhas desesperadas e os latidos dos cachorros, que latiam para espantar os fantasmas das galinhas.
Mas isso porque os cachorros, são acostumados a ver o que a gente não vê e a ouvir o que a gente não escuta… por isso latiam assim na cara do vento e cheiravam o vento como quem está sentindo um perfume gostoso. Mas era o cheiro dos fantasmas.
E lá no sítio do meu pai, dizia ela, os cachorros latiam e latiam e latiam… tentando afugentar o fantasma das galinhas.
Mas ninguém levava muito a sério essas histórias. Afinal eram as histórias de uma senhora, de criação simples, que contava simples histórias de sua juventude. Porem, isso todos percebiam e sabiam, ela contava com convicção, isso não restava dúvidas!
As pessoas podiam até não acreditar, mas que ela contava, jurando ser verdade, isso sem dúvidas! As pessoas até podiam fazer piadinhas e sair rindo das histórias dela, mas que ela jurava ser verdade, disso ninguém tinha dúvida.
Mas nunca mencionava dragões. Só os seus fantasmas da sua juventude!
Quinta feira
O barulho que o acordara veio do guarda roupas.
Com essa certeza foi do guarda roupas.
Sem a menor dúvida: veio do guarda roupas
Não tinha dúvidas! Alguém estava mexendo em seu guarda roupas.
Com gesto lento para não fazer ruído e espantar o invasor, apalpando a mesinha de cabeceira, localizou o interruptor e acendeu o abajur.
A luz forte – havia trocado de lâmpada – invadiu o aposento.
Tão rápido fora seu gesto que pegou a escuridão de surpresa. Mas ela se escondeu com sua maior rapidez da luz.
E aquele vulto de dragão, ainda mais rápido, escondeu-se atrás do guarda roupas!
Entretanto não deu muita importância para isso. Sabia que dragões não existem.
E se existissem estariam somente em sua imaginação, não ali dentro do seu quarto, fora de sua cabeça, dentro do guarda roupas.
Mas tinha aquele ruído.
Estranho.
Nunca ouvira algo semelhante. Parecia um bater de asas; parecia o rosnar de um cachorro; parecia arranhar a parede; parecia alguém batendo, toc-toc, na porta; parecia empurrar a porta do velho guarda roupas,… que já estava no apartamento, quando o alugara… parecia… sei lá, parecia algo estranho fazendo um ruído estranho!
O apartamento, pequeno e confortável para um rapaz solteiro, localizava-se num prédio antigo com móveis antigos, mas com aluguel acessível e próximo do seu trabalho. Eram poucos minutos dentro daquele velho ônibus da linha circular que passava em frente ao prédio, com um ponto de parada logo atrás da escola em que trabalhava.
Perfeito para um jovem professor que levava a vida que pedira a Deus: independente, morando sozinho, quase no centro da cidade, perto do cinema… mas um lugar absolutamente calmo. Principalmente com a calma de quem amava lecionar, mas se estressava com o barulho ensurdecedor dos alunos que se comportavam como animais no cio ou como um bando de macaco prego, brigando por frutos nas copas das árvores do sítio de seu pai…
Está claro que o apartamento não tinha a paz e a tranquilidade bucólica do sítio, com suas cascatas e floresta e rios,… onde quais passara a infância… nem as represas de águas cristalinas onde aprendera a nadar, com as vestes de Adão …
Ali estava se atual mundo perfeito!
Só não estava mais perfeito porque nestes últimos dias andaram ocorrendo esses fatos e visões estranhas: visões de um dragão fujão e um ruido estranho. Tão estranho que ainda não conseguia identificar o que era nem de onde vinha, mas era um ruído estranho!
Era um ruído baixo, quase imperceptível, mas, desta vez teve certeza: algo se movimentava dentro do guarda roupas. Aquele barulho que ele não sabia definir de quê, nem exatamente como era ou o quê era... vinha do guarda roupas…
O que seria?
Não tinha animais em casa. Não porque não gostasse, mas porque as normas do prédio não permitiam e porque não tinha tempo de cuidar. Imagina a maldade que é ter um animalzinho em casa, mas deixá-lo preso o dia todo, sozinho… então, por gostar de animais, não tinha nenhum.
Mas lá em seu guarda roupas havia um ruído estranho, esse que estava ouvindo, saindo do guarda roupas… e era do lado da porta do lado direito...
Olhou a tela do celular: o mesmo horário dos outros dias. Muito antes de seu horário de se levantar. Receoso, mas com a certeza de que alguma lagartixa ou, na pior das hipóteses, um rato invadira seu guarda roupas, abriu a porta do móvel.
Num gesto rápido, para não dar tempo do bicho se esconder, escancarou a porta e… Nada!
Revirou as roupas, procurando um rato: Nada!
Uma barata? Nada!
Um grilo? Nada!
Uma lagartixa…? Nada!
No exato momento em que abrira a porta o ruido havia desaparecido como sumira aquela forma de dragão atrás do guarda roupas. Nada mais ouvia!
Nada via!
Nada havia!
Na dúvida, apalpou e bateu na madeira dos fundos do guarda roupas. Tudo sólido, nenhum indício de porta secreta ou alçapão onde um rato pudesse fazer ninho… ou baratas pudessem proliferar…. onde algum dragão pudesse se esconder…Nada!
Mas dragões não existem, ele sabia disso!
Olhou, novamente para a tela do celular: realmente não daria tempo de mais uma soneca. Procurou e localizou um pen drive com músicas sertanejas, daquelas “do arco da velha”, música raiz. Daquela que fala do sertão e da vida no campo. Ouvindo músicas, colocou a água para esquentar enquanto entrou no banheiro para um banho rápido. Tomou uma xícara de café e, ainda nu, recostou-se no sofá, com o livro na mão.
Olhou a capa. Olhou, novamente para aquela arte surreal: definitivamente não conseguia entender o painel da capa do livro. Realmente não sabia o significado daquela arte.
Dedicou-se à leitura!
Os vizinhos começaram a fazer ruídos nos apartamentos, levantando-se e preparando-se para seus afazeres. No meio do ruido dos vizinhos ouviu, do lado de fora da porta, o mesmo som abafado, que ouvira, antes, dentro do guarda roupas… O mesmo que ouvira no outro dia, no corredor… fixou sua atenção naquele som. Levantou-se e, lenta e silenciosamente, dirigiu-se à porta. Olhou pelo olho mágico: nada de anormal. Hesitou, mas abriu a porta. Olhou para a direita e para a esquerda.
Nada!
Ouviu fechadura da parta da frente sendo aberta. Lembrou-se que estava nu… entrou rapidamente e fechou a porta. O barulho cessara.
Vestiu-se e saiu para o trabalho.
Pendurado no ônibus lotado, esqueceu o incidente.
Sexta feira
Já estava acordado, quando aquele som estranho começou.
Vinha do guarda roupas!
Acendeu a luz e correu até lá. Abriu a porta, olhando em todas as direções. Não viu nada, nem ouviu mais nada. Silencio no apartamento. Silêncio no corredor. Só silêncio sob o silêncio da noite silenciosa!
Nesse momento, também percebeu que depois que começara a ouvir o som estranho, deixara de ver o vulto da cauda do dragão. Aquele vulto que se escondia na sombra. Que se refugiava atrás do guarda roupas… mesmo não havendo espaço para um dragão atrás do guarda roupas.
Entretanto, como sabia que dragões não existem, nem perdeu tempo tentando buscar alguma ligação, entre os fatos.
Claro que se tivesse procurado, talvez não tivesse encontrado ligações. Porém, como tudo está interligado, pode ser que houvesse alguma ligação. Mas não se deu ao trabalho de procurar vínculos entre coisas imaginárias.
E seus dragões eram imaginários.
Por sua vez o ruído que ouvia era coisa que estava ouvindo e não como o dragão de sua imaginação que se escondia na sombra dentro de um espaço que não havia, atrás do guarda roupas que havia sido colocado logo ali, em seu apartamento. Além do mais, dragões não existem, tinha que se convencer logo dessa certeza…
Mas, pensou em seguida, se era uma certeza para que se convencer? Já estava convencido, pois tinha certeza!
A gente tem que se convencer em relação a algo de que tem dúvidas não do que tem certeza! Se tem certeza, já está convencido! E, sem dúvidas, estava convencido de que dragões não existem. Onde estaria a dúvida a esse respeito?
Estava pensando nisso, quando o mesmo som estranho, da noite anterior, começou do lado de fora da porta, no corredor do edifício. Foi ao olho mágico. Olhou. Não viu nada. E, o pior de tudo era que não conseguia identificar que tipo de ruído era aquele. Parecia tão familiar e, ao mesmo tempo, tão estranho…
Com cuidado, abriu a porta. Olhou para os dois lado.
Nem uma sombra de nada.
Tudo, como sempre, estava em ordem: a luz acesa, o vaso no canto, o vidro quebrado na janela da direita. A guirlanda de natal pendurada na porta da vizinha… observou tudo isso, mas não viu nada que pudesse estar produzindo o ruído que ouvira e que, cessara quando ele abriu a porta.
Só silêncio, só o silêncio da noite. E ele ali, só, no silêncio da noite, buscando a origem de um som, sem saber explicar por que só ouvia no silêncio da noite...
Pensando assim foi que percebeu que o som cessou, lá fora…. Mas recomeçou no guarda roupas… dentro do apartamento!
Tentando entender o que se passava, apagou todas as luzes.
O ruído continuou, um pouco mais alto. Tentando surpreender o ser ruidoso, acendeu as luzes… num relance pode ver, agora sem sobra de dúvidas, o vulto da cauda de um dragão escondendo-se atrás do guarda roupas!
Correu até lá. Queria ver por onde ele entrava. Mas não tinha nenhum sinal de nada diferente. Nenhuma greta. Nenhuma rachadura, nenhuma janela… nada!
Bateu na parede: tudo sólido...
Nem poderia achar nada: sabia que dragões não existem!
Entendeu que tudo começava a se explicar. Começou a entender como entender os vultos e os ruídos: Os dragões e os ruídos eram frutos de sua imaginação!
Pensava nisso quando ouviu, agora no corredor, o som de passos e sentiu aquele cheiro inconfundível de pão recém chegado da padaria.
Olhou e percebeu que tinha deixado a porta aberta.
Lembrou que ainda estava nu, como costumava ficar na liberdade de seu pequeno universo, dentro do apartamento. Coreu para fechar a porta, querendo resguardar sua intimidade e o seu reino de paz, no isolamento prazeroso de sua intimidade.
Não deu tempo.
Deu de cara com a vizinha.
Aquela linda ruiva, do apartamento do fundo do corredor: com um pacote de padaria numa das mãos e na outra uma sacola com um pacote de leite. Viu tudo isso quando percebeu que ela também vira que ele estava nu: ela com um olhar de espanto, ele com cara de susto…
- Bom dia!
Sábado
Acordou!
Com o susto do encontro inusitado, à porta do apartamento, acordou!
Na verdade, ele pensou, o susto de ver que a vizinha, a bela ruivinha, descobria sua nudez, o assustara e ele acordou, imaginando o constrangimento do encontro inusitado…
Mas não teve como saber qual teria sido sua reação – e a dela – se o encontro realmente tivesse ocorrido… pois acordara no momento exato em que ela olhava para seu corpo nu, assustado à porta!
Como acordara do sonho, quase que se pôs a imaginar a cena...
Acordou e percebeu que o dia começava a mostrar seus primeiros raios de claridade, na linha do horizonte iluminando o topo dos morros em sua chácara paradisíaca.
Acordou e olhou para o lado, na cama: a esposa ainda dormia. Aquele corpo moreno, recebendo os primeiros raios do sol, brilhavam como se sua pele fosse de ouro…
Acordou com a brisa, suave, da manhã entrando pela janela aberta...
Percebeu que estava suando…
Percebeu que acabara de ter um pesadelo.
Percebeu que acabara de acordar de um pesadelo, mas tinha, a seu lado, uma deusa de beleza morena…
Recostou-se na cabeceira da cama, com cuidado para não acordar a esposa. Pôs-se a analisar o pesadelo do qual acabara de acordar. Um sonho no qual passara quase uma semana sonhando com vultos de dragões e ruídos estranhos.
Riu!
Riu um riso de alívio e de alegria. Riu por perceber como podem ser engraçadas as situações produzidas pelos sonhos; como são engraçadas, ou constrangedoras, ou assustadoras as peças e truques e situações em que nossa mente nos coloca. Como sofremos e nos alegramos em nossos sonhos noturnos...
Riu com alívio, pois sabia que dragões são todos frutos da imaginação. Não existem!
Olhou, novamente para a esposa. Da mesma forma que ele, ela também estava nua. Lembrou-se da noite passada: depois da reunião de pais, na escola, foram à lanchonete. Pediram uma pizza e uma cerveja. Depois mais uma cerveja e, quando a pizza chegou, uma terceira.
Comeram e foram pra casa.
Em casa, um banho reconfortante. Juntos sob o chuveiro, abraçaram-se e se beijaram, com a mesma intensidade de tantas outras vezes… concluíram o banho e o ato de amor e como as horas já iam adiantadas, foram pra cama… e, mais uma vez, repetiram a troca de carícias e novamente se amaram intensamente… e dormiram com os corpos entrelaçados...
Na cama esqueceram os problemas e “as dores do mundo”.
Ambos se completavam e sabiam dar todo prazer que o parceiro queria. Fizeram loucuras, como sempre. Depois do amor, dormiram.
Ela, certamente sonhava com ele.
Ele, diferentemente, tivera pesadelos. Seus sonhos foram povoados por dragões ocultando-se atrás do guarda roupa e ruídos e coisas lhe roçando o corpo nu, por baixo dos lençóis. Parecia um dragão… mas como dragões não existem, tudo não passou de um pesadelo.
Pensando nisso, pensou nas loucuras que a mente humana pode produzir… e riu novamente.
Riu mais uma vez, de seu sonho louco.
Rindo se pôs a rememorar o pesadelo de uma noite que se passara como numa semana.
No sonho, era solteiro, morava num apartamento.
E, agora recordando o sonho-pesadelo, pode visualizar: aquele apartamento, com o qual sonhara, era o local em que havia morado quando estudante, em Curitiba: um prédio antigo, janelas com vidros quebrados. Vizinhos barulhentos… e a ruiva, do fundo do corredor… Linda!
Como, era mesmo seu nome?
Linda!
Era linda sua colega, sua amiga, sua parceira em muitas loucuras…
Estudavam no mesmo bloco, na Universidade: ela fazia sociologia e ele filosofia.
Conheceram-se na biblioteca.
Na verdade esbarraram-se diante da estante de antropologia. Ambos buscavam “O Fenômeno humano” de Chardin. Riram e conversaram, animadamente sobre filosofia e sociologia.
A conversa se prolongou quando descobriram que moravam no mesmo prédio e no mesmo andar e no mesmo corredor… Perceberam que, por incrível que possa parecer, convergiam em Marx e Platão… e tinham a mesma aversão por Augusto Comte...
Depois disso, de vez em quando encontravam-se na biblioteca. Outras vezes no restaurante universitário. Outras vezes no ônibus… mas nunca fizeram nenhuma matéria juntos.
Não chegaram a namorar, mas compartilharam muitas garrafas de cerveja na lanchonete, ao final das aulas, nos fins de semana… as vezes vinho, numa adega, no centro, perto da catedral… não foram poucas as garrafas de vodca com gelo…
Depois desses encontros, ou para coroá-los voltavam juntos para casa e invariavelmente iam para o mesmo apartamento…
Acordavam nus, na madrugada… e, em seguida, o visitante voltava para seu apartamento… a vida de estudante não dá muita moleza!
Olhou novamente para a esposa, nua ao seu lado.
Pegou o celular, para ver as horas. Embora o sol começasse a despontar, ainda era muito cedo para se levantar numa manhã de sábado.
Ela começou a se movimentar.
Abriu os olhos.
Sorriu.
Recostou a cabeça sobre suas pernas estiradas. Começou a beijar suas pernas e entre elas. Subiu um pouco, beijou-lhe o mamilo... beijou-o todo. Ele correspondeu, com beijos e carícias cantarolando: “Fazer amor de madrugada…”.
Pensando na música. Pensando na loira linda. Abraçou a linda esposa morena. Antecipando o prazer beijou-a por inteiro...
Ambos, beijando-se com sofreguidão e paixão, suaram pelo esforço e… Num vulcão em erupção, gemeram e gritaram de prazer e a loucura do amor os dominou...
Depois do ato em que se completaram, deslizou para seu lado e esqueceram do tempo. Depois de se entregarem, num furacão de desejo, deixaram-se ficar, abraçados… esquecidos do tempo...
Com os olhos fechados, se pôs a contemplar a esposa. Seu corpo lindo, moreno, cabelos pretos, pernas bem torneadas. Aquele quadril onde mergulhava seu prazer, por vezes beijando aqueles seios redondos que o enlouqueciam quando desnudos formavam uma escultura que brilhava ao sol.
Ainda com os olhos fechados, no fogo do prazer, sentiu, novamente sobre o seu, o corpo suado da esposa. Ela lhe prendeu as penas entre as suas, pressionando o ventre sobre o seu.
Seus braços o apetaram no delírio do prazer e ele, ainda com os olhos fechados sentiu-se “batendo na porta do céu”. Sentiu os lábios tantas vezes beijados, beijando-lhe o pescoço. Sentiu sua boca em seu pescoço cravando, levemente ,os dentes com volúpia e carinho…
Sentiu a mordida mais forte. Estremeceu de prazer.
Sentiu-se mais apertado no abraço da esposa. Abriu os olhos para beijá-la...
Deu um grito.
Um grito rouco.
Não era um grito de prazer
Era um grito de desespero!
Desespero porque não era sua esposa que o abraçava. Era uma enorme serpente que o envolvia e, com a boca aberta, estava pronta para começar a engoli-lo.
A custo soltou os braços e, com as duas mãos apertou o pescoço da serpente que o queria devorar… o medo queria paralisá-lo, mas a vontade de viver lhe dava mais força e ele gritava, não de prazer, mas de medo…
Desespero!
No desespero soltou-se e se salvou!
Salvou-se pois em pleno volume, o celular, pontual como sempre, fez a sonora entrada de Raul Seixas cantando “A Maçã”.
Acordou!
Acordou com as duas mãos apertando fortemente o pescoço da linda esposa ruiva. Enquanto recobrava a noção do tempo e da realidade, os cabelos avermelhados da esposa roçavam desesperadamente seu rosto.
Ela se debatia, asfixiada...
Ainda assustado, acordou ouvindo, pelo despertador do celular, sua canção predileta:
“Se esse amor, ficar entre nós dois vai ser tão pobre, amor, vai se gastar.
Se eu te amo e tu me amas, um amor a dois profana o amor
de todos os mortais
porque quem gosta de maçã irá gostar de todas porque todas são iguais…
Se eu te amo e tu me amas e outro vem quando tu chamas, como
poderei te condenar?
Infinita tua beleza, como podes ficar presa que nem santa num altar?…
Quando eu te escolhi pra morar junto de mim, eu quis ser tua alma,
ter seu corpo, tudo enfim,
mas compreendi que além de dois existem mais…
Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade, sofro, mas eu vou
te libertar. O que é que eu quero
se eu te privo do que eu mais venero que é a beleza de deitar?”