Sonhos

Em um domingo como outro qualquer, Samuel saiu de casa. Sua mulher, porém, nada satisfeita com a situação que se repetia toda semana, ficou mais um dia no tédio. Luzia estava nesse casamento há três anos. Seu marido sempre teve muito carinho e transparência, sempre foram companheiros e confidentes. Aquela química era perfeita, mas ela não entendia apenas o porquê dessas saídas de domingo. Era o único dia em que seu doce amor parecia mudar de personalidade. Diversas vezes a mulher de cabelos curtos e pretos tentou seguir para ver o que Samuel fazia, mas o endereço realmente era o escritório em que trabalhava. Não dava para entender.

Foi numa sexta, então, que a astuta mulher resolveu arquitetar um plano. Resolveu fazer o mesmo que o marido, só que aos sábados. Ela, na verdade, iria apenas ao shopping para passar o tempo e ver se seu marido percebia o quanto era ruim uma atitude como a que ele estava fazendo. Iniciou saindo de casa às 12h. Não dava muitas explicações nem informações, apenas saía e dizia que precisava desenrolar algumas pendências. Samuel não aceitou muito bem de início, mas logo se aquietou quando Luzia jogava na mesma moeda, dizendo que "o domingo é seu, o sábado é meu". Assim, levaram por mais um mês essa história.

De tudo a mulher já havia tentado... Convidava os sogros para almoçar e, no fim ficavam só os três; seguiu de carro, moto; chegou até falar em separação! Nada segurava o marido "fugitivo de domingos". Até então esse estava sendo o melhor plano, pois Samuel, embora acalmasse, nunca estava indiferente ao assunto.

Foi então que Luzia pensou em mais um passo para o seu plano. Embora o marido dissesse que ia trabalhar, essa desculpa já havia caído por terra, pois ela ligou para o escritório diversas vezes aos domingos, e em outros dias da semana, e ninguém confirmava a afirmação de Samuel. Como dizem por aí, esse quebra-cabeça está muito confuso, quem começou vai ter que terminar. E claro que ela queria encaixar peça por peça.

Mais uma semana se passou e chegou novamente o sábado. Aquele seria o fim de semana de aniversário de namoro do casal. A cabeça de Luzia fervia de tanta especulação... Não mudaria uma vírgula do plano, continuaria com o sábado para ela. Só que nesse, em especial, quis estender o plano e modificá-lo um pouco. Quando o dia já estava caindo, ligou para Samuel e disse que iria dormir na casa de sua amiga que havia se mudado há pouco para a cidade. Claro que ele não ficou nada contente com essa história e esbravejou de forma bruta com sua mulher. Ela nem ligou. Já havia marcado e não voltaria atrás. Luzia saiu do shopping e foi para casa de Celina, sua amiga de infância. Dirigiu até a orla do porto, passando pelos diversos novos empreendimentos que estavam se formando por lá. O apartamento de Celina era a cobertura de um prédio não muito alto, mas que tinha uma boa vista para orla e para uma parte do centro. Luzia subiu e abraçou a amiga como quem procura um refúgio, como quem pede ajuda sem usar as palavras. Recebida com uma boa garrafa de um tintoso cabernet sauvignon, as duas conversaram por horas sem ver o tempo passar. A esposa de Samuel contou toda a situação que estava enfrentando em casa... Tentaram especular diversas possibilidades, mas só vinha à mente a ideia de traição, inevitavelmente. O dia já estava clareando. O céu lindo num rosado como as chamas leves do amor. Nesse instante, Luzia só conseguia pensar em Samuel, não aguentava mais essa dor no peito, essa angústia gigantesca. Pegou o celular e começou a digitar algumas palavras até que aleatórias diante a tudo que estava passando. Na conversa com Samuel, digitou e clicou no enter sem nem pensar muito: "eu te amo". Olhou para a cara da amiga já entregando o que havia feito algo.

Samuel estava on-line. A tela de Luzia entregava a mesma condição, pois ficou fixada e acesa na conversa com o marido. O tempo de segundos pareciam eternos. Toda hora um "digitando..." na parte superior do celular. E voltava ao on-line. Depois dos infinitos dois minutos a resposta chegou! Não era o que a mulher esperava. Definitivamente. Samuel se conteve em apenas dizer que estava indo trabalhar. Ignorou o sentimento enviado. Assim, Luzia preferiu apenas bloquear a tela e terminar a quarta garrafa de vinho da noite. Mais conversas com Celina. Desabafos, choros! Pouco tempo depois, outra mensagem de Samuel apareceu. Luzia não quis esperar. Apressadamente desbloqueou a tela e viu um grande coração vermelho pulsando, acompanhado de um "eu também te amo". Foi nesse momento que ela se despedaçou. Apesar da tristeza, o coração se encheu de muito amor. Havia um filme de romance, e da história da vida, passando em sua mente. Celina até tentou conter a amiga, mas ela estava eufórica.

Ao olhar aquele mar que já brilhava um pouco dourado do sol, a mulher não pestanejava e resolveu descer para um banho salgado. Pegou o elevador e, no fim, as duas chegaram ao térreo. Uma taça na mão, um sorriso no rosto e a desilusão na mente! Luzia e Celina saíram correndo sem nem olhar para trás, seguiram para aquele mar deslumbrante! Tibum! De roupa mesmo, sem se importar com nada, lá estavam elas mergulhando. A essa altura o vinho já estava difundido com o mar... assim como as dores da mulher. As duas ficaram pouco tempo, cerca de vinte minutos, só para relaxar e eternizar esse momento.

Quando estavam voltando para o apartamento de Celina, Luzia ficou olhando fixamente para a esquina. Reconhecia muito bem aquele carro. Mas como era possível? O trabalho de Samuel era do outro lado da cidade... Sim! O que Luzia olhava era o seu marido saindo de carro. Como pode, depois de tanto seguir, ele estar ali? Luzia cutucou a amiga, falou algumas palavras e as duas foram atrás do Samuel. Molhadas, com cabelo de praia e bafo de vinho! Dois quarteirões o homem andou! Dois! Se escondendo atrás de postes e carros, entre risadas e raiva, as duas foram caminhando. Pouco mais à frente, Samuel parou próximo de uma espécie de galeria e entrou. Luzia imediatamente seguiu para o mesmo lugar. Não quis nem saber de nada! Que lugar estranho! De longe parecia ruim, de perto era pior ainda. Havia uma escada estreita, escura e de madeira. Um degrau após o outro subiram as amigas.

— Meu senhor, para onde foi o homem calvo que acabou de chegar aqui? – perguntou Luzia já com o rosto vermelho de raiva.

Após a instrução do homem, que só liberou a informação depois de muita insistência e da promessa de um pix, elas subiram até o último andar. Cautelosamente, Luzia chegou até a porta que levaria até o marido. Não sabia exatamente o que fazer, estava com medo do que poderia haver. Mas, já que estava ali, seguiu. Celina também foi fundamental para que a amiga prosseguisse com o plano.

Foram dois toques na porta. Nada. O ouvido encostou firme naquela madeira. Não havia som algum. Sem muita paciência, Luzia começou a gritar e esmurrar a porta. De repente, a maçaneta começou a girar lentamente, ao mesmo tempo em que a tranca desvelava o segredo.

Era Samuel! Meu Deus! Samuel! A mulher já nem sabia o que sentir, só conseguiu dizer: "Samuel?!"

Havia em Samuel uma dualidade. O seu rosto era enigmático. O rosto pálido, mais coberto pela barba do que de costume. Ao mesmo tempo, bochechas em chama. Ficou imóvel. Com olhos esbugalhados, apressou o coração para uma explicação inexistente, que nem ele sabia. Na verdade, não havia. Era apenas isso. Era o que era e pronto!

Com a confusão mental, o homem entrou em pânico. Desmaiou e precisou ser levado ao hospital. Luzia estava atordoada, mas sua amiga esteve o tempo inteiro com ela. A mulher só xingava e esbravejava. A única pergunta era "por quê?". Não havia nenhuma explicação. Luzia também não entendia nada, afinal o marido estava sozinho em uma espelunca. Todos seguiram ao médico. De um lado era a mulher e do outro o homem internado. Celina voltou para casa após muita insistência de sua amiga.

Samuel estava em estado de choque ainda. Desde o ocorrido passaram-se dois dias. Luzia continuava ao seu lado. A dor, a angústia pousavam na última mensagem enviada pelo homem. Aquele "eu te amo" era sincero, ela sentia. Mas havia confusão no olhar do homem inerte.

Luzia estava entre casa e hospital. Só que, naquela noite, resolveu dormir em casa para descansar melhor. Tomou um bom banho com ervas e sais. Tomou um chá de gengibre e deitou-se. Apagou a luz e dormiu.

Naquele mesmo instante, Samuel voltava vagarosamente a ter consciência. Isso só aconteceu após estar longe da mulher. O homem não era quem todos pensavam. Ele também não sabia quem era. Ainda meio vacilante, foi caminhar pelo corredor do hospital. Olhou para o fundo do corredor onde havia uma bancada. Seguiu vagarosamente, sem pressa. Lá estavam as enfermeiras em um papo de dar gosto. Samuel não sabia exatamente o que procurava. Apenas olhou uma caneta e pegou-a sem nem ser anotado. Tomou uma água e voltou ao seu quarto. Samuel só precisava escrever... não havia papel. Então ele pegou o lençol e começou a deixar palavras soltas. Deitou-se na cama e não pensou em mais nada.

Luzia acordou com um clarão na cozinha. Assustada, a mulher levantou e foi ver o que era. Ouviu um barulho de faca cortando pão. "Samuel"? A sensação era de que seu marido estava ali. O arrepio percorreu todo o corpo. Mas não era nada. Madrugada, Luzia sonhava com um homem carregando seu marido. O telefone tocou. O hospital ligava pedindo para Luzia comparecer, pois Samuel chamava por ela.

Ao chegar no lugar, conduziram-na até uma sala. A mulher sentia uma presença confortável desde que saiu de sua casa. Ela não entendia bem o que estava acontecendo, mas seguiu até onde foi guiada. Ao chegar, sentou-se e começaram a falar muito. Luzia não estava entendendo definitivamente. Perguntou à equipe pelo seu marido, já estava ficando nervosa. Houve silêncio no ambiente que estava cercado com cinco especialistas.

Uma das médicas veio ao encontro de Luzia. Abaixou na altura da cadeira. Com uma mão, apertou fortemente as mãos da mulher; com a outra, pegou um embrulho em cima da mesa e depositou-o colo dela. "Sinto muito" ponto Luzia foi encolhendo, ficando quieta. As lágrimas já faziam parte do rosto da mulher. Onde havia luz, fez-se noite. Tudo ficou nublado. Luzia foi abrindo pouco a pouco o objeto que agora já estava em suas mãos.

Se não fosse por esse momento, poderíamos dizer que era uma obra de arte.

Os olhos de Luzia já formavam quase uma aquarela ao deparar-se com o pano. Azul e vermelho. Uma dualidade de cores. E de sentimentos. Abriu lentamente com medo do que poderia ver. Levantou-se e esticou o pano no chão para melhor visualizar. Na parte de cima, um mar de sangue manchado. E algumas palavras quase inelegíveis.

"Vou seguir uma estrada longa, a galope. Sem lança. Sem martírio. Minha pausa será eterna."

Luzia caiu sobre o pano sem acreditar no que via... Mais abaixo, outro escrito.

"Luzia, você sempre foi luz em minha vida, mas eu sempre fui a sua sombra; te amo, perdão imperdoável... "

A mulher estava inconsolável. Como Samuel poderia ter morrido? Dor era gigantesca, mas não havia muito o que fazer.

No dia seguinte já seria o enterro. Após o corpo delito, Luzia foi informada de que seu então marido havia fincado no próprio pescoço, a caneta que escreveu no lençol. Mulher só conseguia perguntar "por quê?". Não havia explicação.

Meses depois, Luzia já estava seguindo a vida. Samuel parecia ter um grau de bipolaridade, pelo que foi constatado após sua morte. A mulher todos os sábados ia ao shopping, continuou nessa rotina.

Mas, um dia, quando foi visitar sua amiga Celina, resolveu tomar um rumo e parou na frente do hotel. O gerente ainda era o senhor Raul. A mulher não pensou muito, apenas pediu ao homem as chaves do quarto do último andar. Ela subiu, abriu a porta, entrou e ficou observando tudo que ele havia. Sentou-se à cama, tirou os sapatos e imediatamente pôs-se a deitar, quase que em posição fetal. As lágrimas rolavam e os pensamentos pousavam em Samuel.

Ali adormeceu sem perceber ponto dormia suavemente... O lugar sujo já não se destacava. Luzia sonhava com um campo florido, um dia lindo de sol. A brisa batia em seu rosto.

— Que bom que você veio, meu amor!

Era Samuel!

Beatricce Hass
Enviado por Beatricce Hass em 05/04/2023
Código do texto: T7757097
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