Trabalhe enquanto dorme
O tão desejado avanço tecnológico trouxe incontestáveis melhorias na vida humana. Curamos doenças mortíferas, interligamos diferentes partes do mundo em segundos, levamos o ser humano para fora da Terra, vimos estrelas prestes a nascer e a morrer. Mas, apesar desse avanço tecnológico, não se engane, as máquinas nunca irão se rebelar e escravizar o mundo. No entanto, os donos delas já fizeram isso.
O cansaço são os nossos grilhões que nos prendem no sofá em nossas duas horas de lazer por dia. E, para aproveitá-las ao máximo, temos que nos endividar para ter o celular de última geração ou uma televisão de tela curva. E novamente nos matamos de trabalhar para pagar esses bens. Mas o pior talvez seja saber que, se o seu trabalho que consome metade do seu dia deixasse de existir, ninguém sentiria falta. A maior parte dos trabalhos são irrelevantes, mas precisam ser feitos para manter a roda do capitalismo em movimento.
Talvez seja por isso que histórias distópicas ganham cada vez mais espaço no dia a dia e muitas vezes almejamos o apocalipse, seja ele zumbi, viral, com meteoro ou extraterrestre. Queremos algo que nos tire dessa rotina infernal de acordar, se estressar, cansar, nos drogar e dormir. De novo, de novo, de novo e novamente. Antigamente eram feitos até sacrifícios para adiar o fim, hoje torcemos para vir mais cedo.
Quando surgiu a notícia de que os implantes de microchips no cérebro foram um sucesso, houve um lampejo de esperança em todos. Inicialmente, eles só foram testados para ajudar no tratamento de fobias e outras condições psicológicas. Um microchip era implantado bem no córtex cerebral e, por meio de impulsos elétricos, controlava os sonhos que as pessoas tinham. Não foi muito difícil para as empresas pensarem em um outro uso para eles. Foi só colocar uma conexão wi-fi para que o sono passasse a ser um horário produtivo. Enquanto dormia, o funcionário sonharia que está no escritório resolvendo todas as funções rotineiras como produzir relatórios, planilhas no excel, completando dados e outros trabalhos chatos. Todos esses dados seriam enviados em tempo real para um servidor em nuvem e ele acordaria sem lembrar ao certo do que sonhou. Assim, ele nem precisaria pisar no escritório.
Muitos gostaram e aderiram a esse modelo de trabalho, pensando que era uma maneira de sair de sua prisão. E foi, pelo menos durante alguns meses. Até que, com a pressão dos mesmo empresários que implantaram esse regime de trabalho, os tribunais decidiram que, por não estar consciente, o tempo de sono não pode contar como jornada de trabalho. Por não ser jornada, não poderia ser pago, mas poderia ser uma exigência para a contratação. E assim foi que virou um padrão ter que trabalhar durante o sono e mais nove horas enquanto estava acordado. Alguns, por causa da pressão e do trabalho acumulado, tomavam soníferos para dormirem mais e darem conta do trabalho. Outros se entupiam de cafeína e outros estimulantes porque, só do sono se aproximar, o ritmo do coração já acelerava, a respiração encurtava, os olhos ficavam inquietos e marejados, a crise de pânico estava instaurada.
Alguns até tentavam procurar alternativas que não usassem o tempo de sono como trabalho, mas todas pagavam tão pouco que não dava para sobreviver. Então você era obrigado a se render e a aceitar. Mas é claro que isso não impedia ele de pensar todo dia em alguma forma de sair disso e recuperar os seus sonhos, embora nada parecesse ser realista. Ele tomava remédios para dormir, mas não para ser mais produtivo. Ele simplesmente não conseguia ter mais prazer em fechar os olhos, então precisava de alguma coisa que o ajudasse a fazer isso. De vez em quando, até colocava uma música no quarto porque em algumas poucas vezes era possível ouvi-la nos seus sonhos e tornava tudo um pouco menos pior. Era assim que ele vivia mais de dezoito horas por dia, como um zumbi, mas procurando pequenas coisas que aliviassem essa tortura cotidiana.
Certa noite tomou o seu remédio e deitou na cama de olhos abertos. Ele sempre esperava a hora em que eles fechavam sozinhos sem ele perceber. Quando isso aconteceu, ele foi para uma floresta e não para o trabalho. Ele não conseguia se ver, mas sabia que não estava de blusa social. Estava muito fresco para estar vestido socialmente. Ele ouvia os pássaros, mesmo sabendo que não tinha colocado essa trilha sonora. Ele via as folhas balançando com o vento e sentia a terra entrando entre os seus dedos. Só conseguia sorrir e chorar diante daquele cenário. Não queria sair de lá, mas foi puxado pelo despertador.
Durante todo o café da manhã, ficou lembrando da floresta. Ele queria só focar nela porque queria voltar para ela mesmo que só na imaginação. Por isso evitou questionar o porquê de não ter sonhado com o escritório mesmo que essa pergunta o estivesse rodeando. Quando chegou lá, logo foi mandado para o RH. Aparentemente o microchip estava com defeito e deveria ser trocado. Assim que essas últimas palavras estavam sendo ditas, flashes da floresta ficaram aparecendo em sua cabeça. Ele via umas árvores e depois a mulher do RH. Ele ouvia o pássaro e depois se deparava com as cores cinza-escuras da sala. Ele via o marrom da terra, o verde das folhas, o azul do céu e depois a rua. Estava ofegante e percebeu que deve ter saído correndo do prédio. O seu coração batia forte parecendo que queria derrubar a parede do seu tórax. Ele começou a andar para se acalmar e andou durante a manhã inteira. E depois pela tarde inteira. Até que durante a noite se sentou num banco da praça e dormiu.
Primeiro foi para a floresta, mas a imagem começou a ficar cada vez menos nítida como se fosse de uma TV analógica. Logo ele começou a ver partes do escritório na floresta. Ele ia e voltava do escritório, depois os dois cenários se misturavam e ele acordou subitamente como se tivesse acordado de um pesadelo. Foi então que se lembrou que o microchip não estava quebrado, apenas com defeito. Ele ainda o controlava. A crise de pânico surgiu das profundezas do seu corpo e viajou rapidamente para a superfície. Ele não queria voltar para o trabalho. Ele não queria abrir mão da sua floresta. Ele não queria voltar para sua rotina. Ele queria ficar admirado. Foi então que começou a olhar para todos os lados, desesperado, até que viu uma árvore. Ele correu até ela e não parou. Bateu a cabeça nela com o máximo de força que conseguiu, se levantou e continuou a cabeceando sem parar apesar da dor que a textura da casca proporcionava, e do seu sangue que começava a bloquear sua visão e respiração. Até que caiu no chão em uma poça vermelha e quente de seu próprio sangue.
Ele abriu os olhos e viu seu computador, sua mesa e sua cadeira. Ficou confuso e paralisado com os seus olhos arregalados fixos na tela do computador sem ter o controle da sua respiração. Depois de alguns segundos que passaram de maneira extremamente lenta, surgiu uma notificação na tela do seu computador: “Faltam 268 dias de trabalho para você pagar a sua conta no hospital. Você será acordado assim que suas dívidas forem pagas. Esperamos que goste do seu período conosco. Att, Direção.”.