O BICHO RUIM

O som do portão de ferro rangendo era tudo o que ela conseguia ouvir agora, o som agudo perfurava seus tímpanos, então vinha à batida do portão, novamente o rangido e então a batida, em uma repetição de eventos.

Seus olhos estavam vidrados na figura caída aos seus pés, suja de terra preta, aquele homem estava com os olhos completamente brancos e virados, a boca entreaberta de onde ainda escorria sangue.

Muito sangue.

Mas dentro da boca não havia nada, nem a língua e nem os dentes.

Era difícil de olhar, mas era ainda mais difícil de virar os olhos.

Uma hipnose macabra a marcava para sempre, ali naquela ladeira ela tentava imaginar qual seria seu próximo movimento.

Sua fantasia de anjo estava completamente manchada de vermelho, seus pés estavam cheios de lama, ela precisou correr por um riacho e então a terra preta veio.

Suas mãos estavam sujas de terra, sangue e cabelo, até as pequenas unhas estavam pretas.

Uma pequena parte dela sentia culpa, mas uma grande parte dela, não sentia nada.

Agora que seu coração já havia parado de correr e que ela não tremia mais, os sons voltaram ao normal, no fundo vinha a marcha de carnaval, mas bem longe.

Era impossível dizer que era de fato carnaval.

Só no centro era carnaval, até algum tempo atrás, para ela, também era uma noite de festa e comemoração.

Mas então surgiu um homem alto, com uma fantasia frondosa de fitas pretas, impossível de ver seu rosto, como um grande animal.

Fazia calor naquela noite, havia chovido mais cedo, mas estava muito abafado.

Era por causa da chuva que estava tão úmido.

Era por causa da chuva que ela estava de pé na lama preta, lá naquele cemitério histórico e sepulcral.

O diabo estava de plantão naquela noite.

Ela pensou em aproveitar o ensejo enterrá-lo ali mesmo, não havia mais uso daquele lugar, ninguém procuraria por ele ali.

A mulher então cavou uma cova, o mais fundo que pode, mas ela sabia que o buraco não era fundo o suficiente, afinal, ela teve de usar as mãos até encontrar um pedaço de telha.

Ela cavou e empurrou o homem para dentro, rolou seu corpo sem nenhum remorso, depois empurrou a terra preta, começou pelos pés e aproveitou especialmente o momento em que cobriu o rosto pálido e apavorado do homem.

A verdade é que ele se aproximou dela no baile de carnaval, como uma figura grotesca da noite, mas não imaginava quem era a verdadeira criatura perigosa daquele lugar.

Ele não era bem intencionado, foi o falecido quem a atraiu até aquele cemitério abandonado da época da coroa portuguesa.

Foi ele quem a segurou e a empurrou contra a terra preta.

Ele arrancou a mascara de fitas pretas e revelou seus olhos vermelhos e insanos.

O bicho ruim.

O bicho ruim que viu um bicho pior.

Ela se lembrava enquanto empurrava a terra de quando o defunto a empurrou contra o chão e pressionou sua cabeça.

Ele mordeu seu pescoço com violência, mas ela alcançou uma pedra.

Ela alcançou uma pedra e o golpeou com força.

Então correu, correu pela noite, atravessou o pequeno riacho e foi até a velha capela se esconder.

Foi esconder o bicho ruim que mora nela, mas o homem não entendeu a sorte que teve, ele a seguiu até ali, irado e faminto.

Mas a única coisa que encontrou foi o seu fim.

A mulher da fantasia de anjo o acertou pelas costas com a pedra e depois golpeou sua boca mais algumas vezes. O homem de preto chorava e grunhia de dor.

Suas palavras não faziam sentido.

Ela usou um instrumento perfurocortante que encontrou ali na capela para arrancar os dentes do homem, ele desmaiou algumas vezes, quando não sobrou mais nenhum dente, ela não sabia se ele ainda estava vivo.

Isso, afinal de contas, não importava.

O anjo caído cortou a língua do homem e assistiu por algum tempo ele se debater.

Eventualmente ele estava morto.

E ela precisava dar um jeito nisso.

Então arrastou o corpo pelo cemitério, arrastou até aquele lugar, da onde o portão não parava de ranger.

O ferro do portão já estava vermelho e oxidado, o vento o empurrava com grosseria, o material antigo arrancava as flores roxas que nasciam na entrada do cemitério.

Um clarão iluminou a noite.

Ela olhou para cima. Uma lua cheia com um círculo ao redor.

Lembrou-se então de um ensinamento de sua mãe: círculo longe, chuva perto.

Os raios riscaram o céu, mas ainda não estava chovendo.

Mais um clarão iluminou o lugar e ela pode vislumbrar dezenas de pessoas de pé.

O escuro que se seguiu fez seu coração parar.

A mulher da fantasia de anjo deu um passo para trás.

Um novo clarão revelou ainda mais pessoas.

Todas ali, testemunhando seu crime.

A chuva então começou a cair, e começou a cair forte.

A mulher fugiu do cemitério, esbarrando em algumas das figuras frias, que lembravam esculturas de barro.

Os clarões iluminavam o cemitério e a chuva revelava seu crime.

A água lavava a terra preta e a figura do bicho ruim ficava exposta, com a boca escancarada, cheia de terra, e os olhos completamente brancos.

A chuva repentina estragou a noite dos foliões, que não conseguiam aguentar ficar de pé debaixo daquele aguaceiro.

Muitas pessoas subiram pela ladeira que a mulher fantasiada de anjo, coberta de sangue, descia correndo.

Eles não deram atenção. Ainda estavam extasiados da festança, ainda cantavam "o Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão". Embora a chuva tenha impedido a festa, eles ainda estavam se sentindo festivos. Alguns muito bêbados até dançavam.

Enfim, eles não deram atenção... Pelo menos até um último clarão iluminar o homem vestido completamente em fitas pretas de pé na entrada do antigo cemitério.

Rosa de Almeida
Enviado por Rosa de Almeida em 13/02/2023
Código do texto: T7718469
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.