O Lobisomem da casa de farinha
Adriana Ribeiro
Há muitos anos atrás, quando ainda era criança, ouvi a minha avó paterna contar que meu tio mais novo quase fora devorado por um lobisomem quando era bem pequeno.
Não sei por qual motivo minha mãe e ela conversavam sobre o assunto, mas me lembro muito bem que minha avó contava aquela estória de um modo bem enfático e gesticulando muito para demonstrar como ela conseguira, com muito esforço, libertar o filho das garras do bicho feroz.
Sua fisionomia me assustava e eu me escondia atrás da saia da minha mãe que estava ao pé do fogão a lenha coando o café que tomaríamos na refeição daquela noite. Já o meu pai estava sentado à mesa com a minha irmã mais velha no colo, esperando a comida ficar pronta para poder saciar a fome antes de se deitar por algumas horas até a hora da ordenha das vacas. Ele sempre dormia muito cedo.
A cara que ele fazia ouvindo o relato da própria mãe era tão estranha que eu não entendia nada. E só me lembro que ele olhou para o meu olho assustado, pois o outro estava prensado no corpo da minha mãe enquanto eu tentava me esconder - e piscou o olho para mim sorrindo. Depois disse que era melhor comermos porque aquelas estórias estavam assustando a gente.
Não lembro se eu tinha mais medo dos olhos da minha avó que estavam esbugalhados e sobressaíam-se no rosto negro e redondo muito sério, ou se me assustava ficar sabendo que existia lobisomem. E talvez por causa do medo medonho que estava sentindo naquele momento eu não consegui guardar na memória os detalhes do fato pavoroso que ela narrava.
Mas meu pai, sim!
Vez em quando conta o caso aos filhos e netos entre risadas. De uns tempos para cá ele tem repetido bem mais as estórias que os pais lhe contavam. Vai ver que é porque ambos já faleceram e a forma que tem de matar as saudades seja relembrando o que diziam quando eram vivos, mesmo que sejam causos de trancoso.
Já adulta fomos fazer-lhe uma visita e, entre um assunto e outro, alguém citou um caso de lobisomem. Foi então que eu lembrei do causo e lhe perguntei se lembrava-se da história que Vó Duduca contava de um lobisomem que quase carregou Tio Zezinho quando era pequeno.
Meu pai deu uma risada sonora e começou a nos relatar o acontecido com os olhos brilhando.
Segundo ele, a mãe costumava dizer que numa noite de lua cheia, quando eles eram pequenos, o filho mais novo, chamado Zezinho, tinha passado o dia chupando manga junto com os irmãos e à noite sentira uma forte dor de barriga. Como não podia se aliviar na cama mesmo, começou a chorar alto para acordá-la e fazê-la abrir a porta para que ele pudesse ir ao quintal.
Meio sonolenta, a mãe pendurou o candeeiro num gancho que havia na portada da cozinha e enquanto o menino fazia o serviço, fora tentar acender o cachimbo que costumava fumar com uma brasa do fogão que já estava quase apagado àquela hora da noite. Mas antes que pudesse dar o primeiro trago, já o outro filho a puxava pela saia fazenda gestos com as mãos imitando olhos grandes e orelhas pontudas e em seguida apontando com o dedo para o quintal escuro.
Ela então voltou-se ligeira para o terreiro e saiu aos gritos procurando o filho que havia desaparecido. Mas lembrando-se na mesma hora que estavam na Quaresma e era noite de lua cheia, voltou ao fogão e pegou o tição de lenha que conseguira acender e correu atrás do menino que já chorava alto enquanto era arrastado pelo terreno do fundo da casa.
Ela nunca pudera dizer com certeza se foi por causa dos seus gritos ou por medo do tição aceso que carregava nas mãos, mas o bicho que levara o menino o soltou no meio do sítio de bananeiras. E quando ela o encontrou, largou o tição de fogo no chão, agarrou o filho com força e saiu correndo de volta para casa sem olhar para trás.
O desespero a fez correr como nunca e assim que conseguiu entrar em casa, fechou a porta a tempo de ouvir as azunhadas do lobisomem na madeira pelo lado de fora. Segundo ela o bicho miserável ainda rodeou a casa por alguns minutos. Tempo suficiente para deixar nas portas e janelas as marcas de suas unhas para não deixá-la mentir.
Ao terminar de contar aquele causo, meu pai deu outra risada saudosa e o ambiente se descontraiu novamente. Mas nesses momentos de suspense sempre tem alguém curioso que faz perguntas fora de hora e, de repente, meu filho mais novo perguntou:
__ E o Senhor, Vovô? Já viu um lobisomem?
Meu pai tornou a sorrir, mas dessa vez era um riso meio sem graça, parecendo nervoso.
E mudando o tom de voz, olhou diretamente para o neto e admitiu:
__ Já vi uma vez numa casa de farinha, há muito tempo. Quando a sua mãe e sua tia eram bem pequenas ainda.
E a partir daí começou a nos contar a sua própria saga com o lobisomem. Admitindo porém, que antes de ver o bicho com os próprios olhos pensava que a mãe inventava aquelas estórias para os assustar, pois os irmãos tinham adquirido o hábito de fazer as necessidades tarde da noite e, como moravam na roça, ela tinha medo de acompanhá-los e ficar do lado de fora naquele horário.
Contou que na época do acontecido já era pai de família e moravam numa pequena propriedade que herdara do pai. Um pequeno terreno que fizera parte da Fazenda Olhos D’Água, situada no Povoado Sapé, município de Arauá- Sergipe.
E continuou seu relato dizendo que ele mesmo também quase ficara sem as duas filhas mais velhas, no caso a minha irmã e eu, por causa dum lobisomem que costumava aparecer na velha casa de farinha da fazenda em noites de lua cheia.
__ Lobisomem da casa de farinha pai? Questionei.
__ Sim! Respondeu ele.
E começou a contar que organizara uma farinhada de meia com um casal de compadres pois minha mãe não poderia peneirar a farinha sozinha porque estava com três meses de parida de mim e ainda tinha a minha irmã mais velha com pouco mais de um ano de idade.
A farinhada, que se iniciara na lua crescente porque o povo mais velho dizia que a mandioca só devia ser arrancada no quarto crescente para a farinha render, durara quase cinco dias e já estavam na primeira noite da lua cheia mas ainda não haviam terminado de torrar a última fornada para começarem a assar os beijus.
Minha madrinha e minha mãe estava lá esperando os homens tirarem a última porção de farinha que torravam para poder peneirar e ensacar. Enquanto isso, minha mãe, que havia nos acomodado sobre uma esteira de junquilho perto da porta ampla para evitar o calor e a fumaça da casa de farinha, nos olhava paciente e cuidadosa.
Quando a farinha torrou, os dois compadres esvaziaram o forno depressa para não queimar o pó e minha mãe se levantou para assar os beijus. Entre a feitura dos beijus, a peneiração da farinha para tirar os caroços, a medição das terças e o ensacamento, os adultos se distraíram e as crianças foram esquecidas, até que, de repente, os cachorros começaram a rosnar chamando atenção para o terreiro, onde segundo meu pai, estava parado um lobisomem olhando para as meninas.
Entre o alvoroço dos homens e os latidos dos cachorros que saíram em perseguição do lobisomem, as duas mulheres conseguiram recolher as meninas do chão e segurarem junto ao corpo.
O primeiro a retornar da corrida desenfreada atrás do bicho, segundo meu pai, foi o meu padrinho e entrou na casa de farinha dizendo que não tinha visto nada, pois estava escuro no sítio de mandioca por onde aquela coisa tinha corrido. Já ele próprio só voltou quase meia hora depois. Todo suado e com a respiração acelerada contava que seguira a criatura até a cerca que separava a propriedade da casa do velho Domingo atrapalhado. Um vizinho de propriedade que já era bem idoso e morava sozinho.
Disse ter quase certeza de que o lobisomem se escondera atrás da casa do ancião e que deu um assovio tão forte que os cachorros que o acompanhavam ganiram e murcharam as orelhas agoniados como se sentissem dor. E que em questão de minutos o velho Domingos abria a banda de cima da porta da frente, mostrando que estava em casa. E como estivesse nu da cintura para cima, meu pai não só voltou à casa de farinha cismando que o homem virava bicho como encerrou aquele relato afirmando que, mesmo após quase meio século, não tinha dúvidas de que vira um Lobisomem na velha casa de farinha.
Na sala onde estávamos todos sentados, ninguém sorriu nem ousou contradizê-lo!
Mas quando perguntaram da casa de farinha, respondeu que havia deixado a mesma de pé quando vendera a propriedade e foram embora dali pouco tempo depois do acontecido. Não saberia dizer, portanto, se já havia sido destruída junto com a lenda do lobisomem. Mas uma coisa era certa: o lobisomem era o velho Domingos! Disso não tinha dúvida nenhuma!