Bonecas

O dia fora uma merda, como sempre. As turmas não eram tão indisciplinadas assim, mas isso pouco importava. O que mais lhe irritava era a dificuldade que elas tinham em aprender os fundamentos simples e óbvios da álgebra. Perguntava num tom de voz automático, sem o menor interesse:

– Alguém não entendeu?

Quando alguém levantava a mão e dizia a sua dúvida, ele soltava um sonoro suspiro – quando não estalava a língua – e explicava com indisfarçável impaciência na voz. Ou não: se a dúvida fosse relativa a conhecimentos que ele já tinha ensinado antes [por “antes”, leia-se: no início da aula] ele perguntava por que só agora o aluno decidira perguntar, e re-explicava com ainda mais raiva, de modo que as perguntas eram cada vez mais escassas na sua aula. E mesmo assim, não sentia pudor algum em repetir o velho jargão dos professores, que dizia:

– Gente, não levem dúvidas pra casa. Perguntem agora o que vocês não entenderam da matéria.

E fazia isso com o tom de voz mais dissimulado possível. E naquele dia, ao chegar em casa, jogou a pasta de lado, e antes mesmo de tomar banho ou de comer, foi aliviar as tensões do modo como se habituara tantos anos atrás. Seu coração não bate mais tão forte quanto batia nas primeiras vezes em que fazia isso. Nem ofega mais. Ele abre o armário, e de dentro dele retira a velha boneca de sua irmã. De pé, ela bate na altura do seu púbis. Arrasta-a com as mãos trêmulas para o seu quarto, e lá dentro, entrega-se ao seu prazer solitário, sem pudor; afinal, ele não está machucando ninguém. Ele não seria capaz disso. Não de novo.

Ernane tivera uma infância problemática. É fato que todos temos nossos traumas, e muitos de nós guardamos mágoas; e outros mais rancorosos, ainda guardam as feições de seus algozes e bem no íntimo de seus espíritos almejam uma vingança. Aloísio não. Ele era o algoz, ele causava os traumas. E o único rancor que guardava era contra as pessoas que tentaram ajudá-lo mas não sabiam como. Uma coisa é adquirir problemas mentais frutos de traumas, outra é já nascer com eles. Aloísio já demonstrava ser sexualmente precoce desde a infância. Isso pouco preocupava seu pai, um vereador corrupto e workaholic; e sua mãe morrera no parto de sua irmã mais nova, quando ele tinha quatro anos. Nunca teve amigos, a não ser seu videogame. E as bonecas de sua irmã. Não, ele não gostava de brincar com ela, ele apenas examinava a anatomia das mesmas, queria saber o que se escondia por debaixo das roupas das mulheres. Queria sentir as curvas dos corpos sob as mãos. Mas aconteceu que aos oito, estava cansado das bonecas de plástico duro e insensível. Queria tocar carne quente e macia. Substituiu as bonecas pela sua irmã, que aceitava passivamente. Aos onze, arrebatado pelo desejo pueril recém desperto, passou dos limites. Não se contentava apenas em tocar. Quando ela, em prantos, foi se queixar com o pai, fora mandada para um internato. Era a palavra de uma garota de oito anos de idade, contra a do filho mais velho, o primogênito. Nunca mais a vira desde então.

Nos anos seguintes, a vida seguira normalmente. Em termos. Além dos incidentes com as colegas de turma ao longo da adolescência, [que eram abafados graças à influência de seu pai] via numa das bonecas a irmã que perdera, e com ela fazia tudo o que tinha vontade de fazer com uma mulher. Ou com uma criança. Mas o fato é que ele fez isso durante muitos anos, até depois de chegar à fase adulta e de conseguir seu diploma. E continuou fazendo mesmo depois de começar a trabalhar como professor. Sentia-se angustiado, como se a vida de nada valesse. Passava os dias como a esperar que algo grandioso acontecesse, algo pelo qual almejava desde muito tempo. Acordava sob o som do despertador, escovava os dentes, fazia a barba, vestia-se, tomava apenas um copo de café e ia pro trabalho. Durante as malditas aulas, vez ou outra via uma aluna que lhe lembrava sua irmã. Mas era algo inconsciente, ou quase sobrenatural, visto que não guardava na memória as feições de sua irmã. E a cada dia, era uma garota diferente. Mas quando isso ocorria, antes que alguém percebesse o volume na sua calça, dizia que ia “tomar uma água” e corria pro banheiro. Alguns alunos já haviam notado esse estranho comportamento, e bastava que ele saísse da sala e a turma explodia em gargalhadas abafadas. Mas não nesse dia. Ele viu na turma uma garota da qual não se lembrava, o que não queria dizer muita coisa, já que não se preocupava em prestar atenção nos rostos de seus alunos. Mas essa garota o encarava de modo impassível, com olhos frios e inquisidores. Dessa vez ele não achou que ela se parecia com a irmã; ele tivera certeza! Era como se ela estivesse ali, diante dele, lhe perguntando porque fizera aquilo, no que havia transformado a própria vida. Ele a fitava boquiaberto, e não notou quando ficou excitado. A turma já não se agüentava mais em segurar as risadas, mas ela permanecia do mesmo modo, com o mesmo olhar. Quando ele se deu conta do vexame, ao olhar pra si mesmo e pra turma alvoroçada, a garota misteriosamente desaparecera. Pegou sua pasta e saiu correndo, aos tropeços.

Chegou em casa, arrancou suas roupas, tirou a boneca do armário e copulou com ela furiosamente, durante muito tempo, até adormecer, abraçado com ela. No dia seguinte, o despertador tocou durante uma hora inteira até cessar. Ele não acordara. Banhado em sangue e esperma secos, jazia Ernane com a garganta dilacerada.

E a boneca, com as mãos sujas de sangue, parecia fitar o cadáver com o olhar que o juiz lança ao réu recém punido.