UM HOMEM FRIO 

de Fael Velloso

 

- Eu sempre fui um homem calmo. Eu sempre fui na minha, e viver dentro do meu universo particular, tendo minhas coisas, meus problemas, e me bastando, já era o que eu considerava um vidão. Porém... Não...Peraí, deixa eu começar de novo...

 

[...]

- Tudo isso acabou quando eu me apaixonei! A maldita droga! O demônio do amor! O feitiço de Afrodite. E ali, eu fiquei preso por anos. Apaixonado. Totalmente dedicado, caído, dependente e até mesmo submisso à uma mulher. Grace... A mais bela daquela maldita vila caindo aos pedaços na Rua dos Inválidos. Grace, como a de Mônaco. Linda, morena de curvas espetaculares, que muitos se perguntavam como, onde e porque ela se apaixonara por mim. Um cara que, durante todos meus sessenta anos, apenas datilografava certidões de óbitos para o Cartório da esquina, e depois, comecei a escrever para o obituário de uma rede de condomínios de luxo carioca... Mas ela se apaixonou. Eu também, mas sei lá... Acho que eu na verdade surti foi uma obsessão.

 

- Grace era um amuleto. Uma coisa que eu adorava mostrar pelas ruas do centro da cidade, e no calçadão de Copacabana. A minha garota zona sul. Passava chamando a atenção. Olhares, buzinas, faróis... Todos tentavam mexer com ela, mas ela, ela só tinha olhos para mim. E fazia questão de mostrar. Me abraçava, beijava, me anunciava... Esse amor todo, essa devoção, me fazia o cara mais apaixonado.

 

[...]

- Foi na época do nosso filho – único filho, diga-se – que as coisas esfriaram. Foi nesse tempo sombrio da maternidade, que as trevas se estabeleceram em nossa casa, em nosso casamento... Grace não sabia lidar com as mudanças em seu corpo e sua rotina. Seus cabelos caíram devido ao estresse, sua cintura alargara, e sua bunda – ah, aquela deliciosa bunda! – sua bunda não só diminuíra, como também caíra... mas eu achava tudo lindo. Pra mim, ela ainda era minha deusa, carnuda, voluptuosa... Mas ela não estava mais ali. Não foi somente uma vez que a vi olhando para a corda do varal e alisar o próprio pescoço ao mesmo tempo. Não foi uma vez apenas, que tive que bater em sua mão para que soltasse o frasco de chumbinho para ratos... A Grace já não estava mais ali. E eu... Bem, eu já estava me tornando um homem frio. E minha calma queria bater à porta, pedindo para voltar.

 

- [...] Jogar tudo para o alto? Sim! Tive vontade diversas vezes de sair no meio da madrugada, com ela chapada de antidepressivos, e sumir, pra sempre. Para que aquele pequeno demônio de dois anos crescesse sem um pai, e sentisse a culpa de ter estragado minha Grace. O centro do Rio já não tinha mais cor. Eu odiava passear sozinho pela Lapa, Rua do Ouvidor com seus camelôs escandalosos, e a Praça XV... Às vezes, eu ficava por horas sentado na frente das estação das barcas, apenas observando pessoas irem e virem. Tinha vontade de pegar alguma barca daquelas, e pular no meio do caminho... sumir. Mas eu num podia. Eu não conseguia continuar uma linha de raciocínio que não tivesse a minha Grace ao meu lado.

 

- Os anos voaram. Grace melhorava alguns dias, e nos outros, se afundava nos lençóis e escuridão do nosso novo quarto, agora nas proximidades de Cascadura, zona norte carioca. Nossa nova casa era grande, tinha um quintal imenso, e vizinhos que faziam de tudo para serem amigáveis. Mas eu odeio gente amigável demais. Eu sempre fui na minha, e meus planos, desde que comecei a ver que num preciso de ninguém, era morar isolado, sem vizinhos, sem nada... Mas Deus pode ser bem intenso quando quer mostrar que quem manda é Ele. Deus é foda. É um cara vingativo, com um ego enorme – maior que seu nome com “D” maiúsculo – e sempre tem que mostrar que ele é chefe.

 

- Nelson. O nome do nosso pequeno demônio era Nelson. Aos 15 anos, fugiu de casa. Disse que nossa odiava, que aquela casa o deixava doente por tanta tristeza e melancolia. Que ele precisava viver sua vida de jovem, alegre, com amigos e pessoas felizes, mas que nossa casa, nossa companhia depois de tantos anos, estava deixando-o doente... Pobre garoto. No final daquele ano, foi atropelado em uma estrada no interior de Minas. Totalmente chapado de drogas... Até hoje Grace não sabe. Ela sente falta desse maldito garoto. Desse tumor extirpado das entranhas da minha Grace.

 

[...]

- ... Bateram na porta. Eu ainda estava dormindo. Um sono profundo que eu nunca tinha sentido antes. Me lembrava de ter dormido bem naquele dia. Dormi cedo, pouco depois da Grace, que apagava as sete da noite, chapada de remédios. Eu sentei no sofá, e mal o Willian Bonner deu o boa noite inicial, eu já estava batendo cabeça. E dormi. Aí bateram na porta. Batidas fortes, desesperadas... tentei levantar, mas me senti preso à cama. Olhei para o lado, Grace estava sentada de frente para a janela, olhando para o horizonte. Um olhar perdido que eu ainda não tinha me acostumado. Um olhar gélido, um sorriso pacífico... Tava muito chapada,provavelmente...

 

- Então, um homem entrou. Entrou na casa, e eu imediatamente bati a porta do quarto. Obvio que isso chamou a atenção daquele sujeito qual eu não conseguia ver o rosto com definição. Algo sombrio, enevoado, distorcido... E sua voz... Era uma voz abafada, como de alguém que tenta gritar com um travesseiro sufocando sua cara. Ele se aproximou da cozinha, olhou, revirou... ele se aproximou do banheiro. Olhou, revirou...abriu a porta do box para ter certeza que num tinha ninguém ali.

 

- Ele parou na porta do quarto. Abriu a porta com facilidade e correu até Grace. Ele a abraçou chorando. Eu pude ver Grace desfalecer no colo dele. Sua cabeça virou na minha direção, com o pescoço mole. Eu estava escondido atrás da porta, e aquele olhar perdido dela se mantinha, junto com o sorriso. Não havia vida ali. Não... Minha Grace de algum modo estava em paz, descansada... O Homem se virou na minha direção. Eu agora o reconhecia. Era o médico dela. O maldito traficante de tranquilizantes. Doutor Magno Spagnollo. Nome fresco do cacete!... Mas ele foi se aproximando... olhou para o chão e respirou fundo. De onde eu estava, eu não conseguia ver. Não, era impossível. Se eu me movesse ele me acharia, e eu estava muito sonolento pra cair na porrada com ele. Ele então se aproximou de algo, pegou rapidamente no chão, um vidro de remédio, e levantou um copo... Eu estava bebendo naquele copo pouco antes de Grace adormecer. Suco... Não era de Maracujá, era laranja. E pegou seu celular. Ele disse: “Não tem mais vida aqui! Ela se foi, e ele já está frio...”... ele, ele...

 

ELE! Ele, eu supus, era... EU.

 

fim

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 12/01/2023
Código do texto: T7693208
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