El Goths: Maré baixa
"Tem vezes que estranhos que não nós conhecem ajudam bem mais
que aqueles conhecidos"
Rafael P. Marques
Nem tudo que reluz é ouro diziam os antigos sábios. Queria eu saber destas palavras e seu significado nesta época, também desejaria saber que nem todas as pessoas que saltam a nossos olhos tem bom coração. Deixarei um breve relato para que os puros de coração não caiam nas armadilhas da vida e por isto este será o meu ultimo arquivo publicado neste blog. Não me perguntem o que farei depois de meus relatos, pois mesmo eu não saberia o que responder.
Tudo começou em 20 de fevereiro daquele ano fatídico, estávamos em 2005 e eu deveria ter por volta de oito anos. Não me julguem de forma precipitada se alguma coisa deste relato não fizer sentido, afinal as memorias infantis são por vezes obscuras e esquecíveis.
Fato é que meus pais e eu tínhamos acabado de nos mudar para uma pequena cidade litorânea lá no Brasil, uma cidade com enormes galinhas de mármore no meio das calçadas. Apesar de pacata lembrar-me daquelas ruas me causa um temor vindo do fundo de meu coração e não faço qualquer esforço para lembrar o nome da cidade.
A vida não poderia ser mais normal para mim até a chegada de Abril, nesta época tinha amizade com os garotos da rua e costumeiramente jogávamos bola no meio da rua, não havia muitos problemas, pois a minha casa fazia nossa rua ser sem saída e o fluxo de veículos era bem raro.
Conhecia bem os vizinhos da rua e nenhum deles causava qualquer problema ou confusão, mas havia boatos entre nós meninos e meninas que de que alguém na rua não gostava de crianças. Apesar das historias desconexas sobre quem seria ou o que fazia com crianças pegas a noite sem os pais ou em desobediência, nenhum de nós jamais viu ou ouviu sobre alguém que maltratasse ou que ao menos parecia odiar crianças.
Contrario as historias fantásticas com finais alternativos entre quem corria e morria, todos os vizinhos não eram capazes nem de nos repreender por nossas bagunças e olha que muitas vezes merecíamos. Com o tempo meus colegas e eu esquecemos dos avisos e histórias que eram contadas nos finais de tarde por testemunhas anônimas que foram subjugadas por tal pessoa frívola.
O que realmente passei há reparar um tempo depois foi uma vizinha minha, uma garota com seus dezesseis anos, pele clara olhos castanhos, bem magra, rosto bonito e cabelos azuis curtos. Pelo jeito que se vestia deveria estar voltando do colégio suas vestes eram botas marrons, saia verde cristal, camisa branca e uma gravata verde limão e um broche pregado na camisa.
O que me levou a nota-la não foram interesses típicos de adolescentes, até porque eu não era um ainda, foi à cor de seus cabelos que mais chamou minha atenção, afinal cabelos pintados com cores tão vivas não eram nada comuns naquela época mesmo entre os adolescentes de cidades grandes.
Pensei que ela devia ser nova no bairro que se mudará a pouco tempo e por isto nunca a tinha visto por ali. Ela passou por entre nossos jogos, ignorando nossa presença quase como um fantasma em uma caminhada ardil. Alguém de meu time chutou forte demais a bola que foi em direção a ela. Não poderia descrever a cena seguinte, pois não vi seus movimentos em exato, mas posso contar que a garota pareceu dar um chute de artes marciais na bola e fazendo-a perder a força a pegou com as mãos depois de um quique.
Fiquei boquiaberto enquanto meus colegas insistiam para que fosse lá recuperar o objeto de nossa diversão. Hesitei, afinal nunca tinha conversado com garotas, pelo menos não as que não fossem da minha idade. Meus amigos ainda pediam que eu fosse lá pegar a bola e muito sem graça fui ao encontro da guria. Ela foi muito receptiva, sem dizer uma palavra fez algumas embaixadinhas bem difíceis e parou com a bola debaixo de seus pés.
Fiquei hipnotizado pela habilidade dela e queria saber como fazer o mesmo. O mas incrível era que ela nem usava chuteiras ou tênis eram botas, como podia fazer aquilo com botas? Fiquei ainda mais eufórico para saber como ela tinha apreendido a jogar tão bem, mas os gritos de meus amigos fizeram segurar minhas dúvidas. Um pequeno chute dela e a bola estava sob meus pés e ela disse: “Vá seus amigos estão esperando!”.
– Obrigado! – Respondi
Caminhei para perto de meus vizinhos e quando tentei achar a garota de novo ela havia sumido. Devia ter entrado em casa, aquela casa onde parou e devolveu a bola deveria ser a dela. Voltei ao jogo, sem conseguir mais me concentrar nas tarefas desportivas. Pela minha mente pairava a duvida cruel sobre como uma garota poderia jogar tão bem? Achava impossível.
Os dias passaram e sem sinais dela. Ela deveria estar indo na casa de uma amiga ou namorado, só podia ser aquilo. Se fosse da vizinhança deveria eu tê-la visto de novo não? Mas há vi alguns dias depois frente à casa que eu a vi pela primeira vez. Contente fui falar com ela e perguntar como fazer as embaixadinhas. Ela contou da sua infância cercada de brincadeiras de garotos, que a fez ter algum domínio de bola. Era este seu segredo, as razões por trás de ser tão boa.
Conversamos mais um pouco até minha mãe me chamar para a escola e obediente fui me arrumar, não antes de dizer adeus a minha nova amiga. Depois daquele dia passei a cumprimentar sempre minha vizinha toda vez que a via. Trocávamos umas poucas palavras as vezes e raramente ela me dava dicas de embaixadinhas. Ela confessou me que possuía um raro algum de figurinhas com os jogadores famosos da época dela e ficou de um dia me mostrar.
Meu pai percebeu meu novo habito de sempre ir a frente da casa 301, o endereço da garota, mas ele não gostou nenhum um pouco disto. Em pouco tempo me interpelou sobre meus assuntos naquela casa. Expliquei do que se tratava e meu velho não sabia se ficava ranzinza expondo as poucas verrugas que tinha ou se triste.
Era incompreensível para mim às atitudes de meu pai, minha mente infantil não cogitava o perigo ou as preocupações de meu pai. De todo modo ele me proibiu de continuar vendo aquela garota. Em minha inocência juvenil perguntei o porquê e a resposta de meu pai foi curta:
– Ir a casa dos outros não é algo que uma criança deva fazer sozinha! Me prometa, me prometa nunca mais se aproximar de lá!
Prometi com medo de apanhar. Meu pai nunca encostou a mão em mim, mas suas ações naquele dia eram muito estanhas, fora do normal. Seus motivos não foram suficientes para que eu soubesse do que se tratava e como poderia era uma criança. Restou-me obedecer sabia que meu pai tomaria meu videogame e os jogos de bola com meus amigos da rua. Assim, me separei da garota.
O problema era ir para a escola, eu passava do outro lado da rua e mesmo assim ela chamava meu nome com um sorriso no rosto:
– Oto bom dia!
Eu cumprimentava de volta e apenas isto, o que a fez mudar seu semblante com o tempo, já não mais sorria ao me ver tinha um certo incomodo em seu rosto quando a olhava nos olhos. Era a falta de uma boa explicação para meu comportamento frio. Acho que ela tinha se cansado e certa vez ela questionou os motivos com os quais a evitava, respondi que meu pai tinha me proibido.
A face da garota ficou com certa amargura e tristeza, sei que ela voltou seu rosto a casa de meus pais e seu olhar... não sei bem como dizer, não parecia o mesmo de antes, tinha um certo aspecto de fúria neles. Ela nunca mais puxou conversa comigo a partir daquele ponto. Eu também estava inconsolável e a tristeza também entrou na minha vida, ainda mais porque não tinha visto o álbum raro dela.
Comecei a perceber que muita gente no bairro evitava a garota, como se não a vissem, algo bem rude da parte delas. Nos finais de semana ela sempre recebia seus amigos da mesma idade, sem nunca ter contato com os garotos ou garotas do bairro. Passaram-se alguns meses e eu apenas a observava de longe, sem contato algum com ela.
Certa vez brincava na sala com meus carrinhos quando ouvi meus pais cochichando. Em minha curiosidade fiquei atrás da porta:
– Amor lá está ela de novo!
– Eu não entendo por que ela carrega aquela estátua sinistra, parece quase um demônio! Não me admira que ninguém goste dela! Olha lá vai ela com aquela imagem grotesca mais uma vez, o que é aquilo um sapo? Um ogro?
– Não podemos deixar nosso menino ver aquilo! Como explicaríamos?
Voltei para meu quarto e finalmente entendi o porquê meu pai tinha me proibido de ver minha amiga. Ele e minha mãe temiam que a moça me mostrasse à estátua. Aquele pedaço de metal seria assim tão horrível?
Com a chegada do fim do ano e as provas finais acabei por esquecer sobre a conversa de meus pais. Entre estudos e brincadeiras o fim de ano chegou e pedi a meus pais para me levarem a praia para comemorar meus resultados nas provas. Fomos todos os três juntos até o mar.
Minha mãe se deitou para pegar um bronzeado, meu pai foi jogar vôlei de praia com os amigos, já eu me divertia fazendo castelos de areia com alguns amigos que encontrei na praia, não que fosse bom, mas não era dos piores em montar os castelos.
Em algum momento estava entediado por estar fazendo os castelos e de longe a vi, minha vizinha de cabelos azuis estava na praia. Ela vestia um short preto, biquíni azul que cobria o busto e levava consigo uma mochila tectel nas costas, daquele tipo que as pessoas carregam poucas coisas dentro. Duas amigas a acompanhavam uma de cabelos muito ruivos e outra de cabelos castanhos da mesma idade e quase o mesmo tipo de corpo dela.
Olhei aos arredores e como meus pais não prestavam atenção em mim fui ao encontro da moça. Puxei uma conversa e ficamos por mais alguns minutos falando sobre coisas tolas. As amigas dela riam por ela estar falando comigo, mas logo minha vizinhas às repreendeu. As duas garotas fizeram um cara falsa de medo falaram alguma bobagem qualquer e disseram que iam procurar garotos com ou sem ela. Minha vizinha não se abateu e foi logo perguntando:
– Quer ver algo legal Oto?
– Claro! – Respondi
Ela me guiou até fora dos limites da praia e em minha curiosidade e temor perguntei onde íamos.
– A um lugar secreto, só eu conheço! Promete que não conta a ninguém?
– Prometo e tenho palavra! – Disse orgulhoso.
– Você vai gostar, tenho certeza
Caminhamos muito, ao menos achei ser muito para meu corpo pequeno na época. Minha amiga parecia mais cansada que eu, ela transpiração bastante e parecia sem fôlego.
– Está tudo bem?
– Tudo, não se preocupe comigo! É a brisa do mar que sempre me deixa meio desconfortável.
Ela se negou a voltar e continuamos a andar por mais uns minutos e chegamos a uma caverna no pé de um monte rochoso. Ela tirou uma lanterna de sua mochila e mandou que a seguisse.
– Venha, não tenha medo eu vou estar com você todo o caminho, prometo!
Confiei nela e entramos se a praia era bem quente, a caverna era um lugar frio e bem úmido. Andamos por um tempo e percebi que a caverna se alargava, as estalactites e estalagmites foram aparecendo uma a uma como os dentes de uma fera encravados na rocha. O escuro, as formas afiadas das rochas, o som de agua caindo do teto e o frio tornavam aquele lugar assustador para uma pessoa com menos de uma década de idade.
As lagrimas queriam cair de meus olhos e eu as segurava para não fazer um papel tão humilhante na frente de minha vizinha. Não sei se foi minha imaginação completamente influenciada pelo medo, porém juro por tudo que é mais sagrado que ouvir algo coaxar na caverna. Não seria possível não teria como ser. Não poderia haver um sapo ali perto da agua salgada, mesmo eu sabia que sapos morrem quando se joga sal neles no mar virariam cadáveres flutuantes a ser devorados pelas pequenas bocas de peixes menores.
Chamei minha amiga com a voz tremula a perguntando se ela também tinha ouvido um sapo, mas ela não respondeu. Tentei ignorar meu medo e tomar o máximo de coragem que tinha, afinal não estava sozinho e minha vizinha era minha amiga, nunca me levaria para um lugar perigoso.
Acabei por duvidar de meus pensamentos recentes logo percebi que a água estava em meus calcanhares, a maré subia e se não saíssemos rápido podíamos não mais voltar. Eu pelo menos não sairia dali vez que não sabia nadar. Tentei chamar mais uma vez a minha amiga, lembro de que minha voz quase não saia de tão trêmulo que meus lábios estavam.
– Ei... vamos embora a água está subindo!
A garota me olhou de volta, seus olhos tão castanhos tinham uma coloração diferente a qual não pude definir vez que ela mal olhou em minha direção. Seus lábios mexeram ela tinha me dito algo do qual nunca consigo me lembrar. Era coisa muito assustadora para fugir de minha memoria ou talvez ela disse algo para me acalmar vez que eu ainda a seguia. Possivelmente ela teria dito: "Tudo bem estamos perto". Ainda assim, sei que teve o efeito contrário, pois a voz dela estava diferente, mais potente que de costume.
As memorias após aquele momento me são falhas, posso dizer com clareza que nem me lembro do nome de minha vizinha apesar que sempre falava seu nome quando me dirigia a ela. Passei a contar sobre ela chamando-a de Clear, mais por conveniência que por motivo diverso, porque tal nome não me remete lembrança alguma que não do vazio da alma.
A água da caverna subia e começava a cobrir minhas canelas. O medo me preenchia de novo. Pensei em parar e voltar, mas esqueci qualquer coisa que me vinha à cabeça quando meu pé tocou algo na água, uma coisa extremamente viscosa.
Um arrepio desceu de minha cabeça até as pontas de meus pés e de volta de meus pés cabeça. A coisa que pisoteie esvaziava, quase como um balão quando fica murcho, estava viva... argh... estava viva, eu sabia que estava.
Senti-me ser amaldiçoado por ter ferido aquela coisa que ainda esvaziava debaixo de meus pés. O pior de tudo foi o estridente coaxar retumbando pela caverna. Teria pisado num sapo, ali dentro?
Dei um grito de extremo pavor e chorei desconsolado. Achei que a garota de cabelo azul se compareceria de mim como as pessoas costumam fazer com as crianças, mas ela se manteve parada de costas para mim e continuou andando com a lanterna à frente como se estivesse sendo atraída por algum tipo de força mística desconhecida.
Sei que ela falou algo, creio que disse ser aquilo apenas um pepino do mar, algo inofensivo e mandando-me parar de chorar. Continuei a derramar as lagrimas pelo modo que ela falou comigo, sua voz já não a mesma que eu conhecia. Eu a seguia, não porque queria e sim pelo medo de ficar sozinho naquele lugar escuro e demasiadamente grande para uma criança.
Movi minhas pernas e continuei a seguir Clear, não queria ficar para trás com uma coisa estranha nos seguindo. Segurei na cintura dela na altura do umbigo, seu corpo parecia frio e fedia. Não pensei muito sobre, apenas devia ser o cheiro da caverna e da maresia misturados pelo ar.
Finalmente chagamos a um lugar mais aberto, aonde luzes azuis vinham do teto e enormes colunas de pedra sustentavam o lugar. Haviam estatuetas aqui e ali quebradas com figuras monstruosas de corpos andrógenos. Apesar do corpo ser de algo não humano seus rostos eram cobertos por máscaras com faces humanas, as mesmas que vemos nas figuras faraônicas do Egito.
Aquele lugar eram restos do que um dia foi uma grande civilização esquecida pelas areias dos tempos, decadentes pela falta de moradores ou pela presença do que nunca tinha estado ali até sua completa destruição. De alguma forma eu sabia um pouco do que tinha acontecido, pois as paredes encantadas daquele lugar sussurravam para mim e pediam socorro. Por quê? O que poderia ainda estar ali após vários milênios?
Quando parei de olhar para as estatuas notei uma elevação de rochas acima destas havia um grande trono imponente. Clear baixou a lanterna a apontando para o chão, sem perder de vista aquele trono, ela parecia hipnotizada por ele. Ao redor do trono as paredes ao fundo tinham estranhos e profanos hieróglifos que não tinham a mesma idade daquelas estatuetas e das paredes, alguém tinha invadido e tomado aquele espaço depois de uma guerra nunca vista pelos homens.
Deixei de ouvir os sussurros emanados pelos ventos do lugar e senti a água vibrar quase como se uma diminuta corrente elétrica passasse por ela. Olhei aos meus pés e vi movimentos e vibrações de algo que serpenteava no meio de meus pés, um tipo de enguia? Seria impossível definir já que as aguas daquele lugar eram escuras mesmo com a grande presença de luz na galeria natural.
Tentei avisar Clear do perigo, mas meus braços que circulavam sua fina cintura se soltaram de repente com uma expansão rápida da barriga da garota. Senti-me confuso sem saber sabia o porquê de minhas mãos deixarem de segurar em Clear, que não as tocou para retira-las. Mas o pior foi o coaxar maligno que ecoou a galeria, mais potente e mais grotesco que antes com tons grave s e repulsivos como uma melodia fúnebre mal tocada.
O coaxo fez as paredes vibrarem e Clear derrubou sua lanterna na água e se ajoelhando logo em seguida soltou um grito odioso a plenos pulmões como dando as boas vindas a algo presente não em corpo, mas em alma.
Ouvi um se arrastar pelas águas que agora chegavam a meus joelhos infantis e mais que depressa peguei a lanterna da água a apontando para varias direções de onde via qualquer traço de movimento. Algo estava submerso nas aguas que estávamos, mas aquilo não me surpreendeu tanto quanto percebi que as paredes... as paredes... Estavam vivas.
Eram como se fossem feitas de tentáculos, inúmeros deles, que vibravam em perfeita sintonia formando uma só coisa, uma estrutura arredondada, o lugar que estávamos. Eram como sanguessugas se grudam na pele e não mais a largam, mas aqueles seres se agarravam nas rochas.
Aqueles seres tinham guelras e também barbatanas transparentes eram como peixes cobras se remexendo de um lado para outro sem sair do lugar. Não via suas cabeças nem sei se tinham alguma na verdade e nem queria saber, meu único intuito era de sair dali o mais rápido possível.
– Clear vamos embora, vamos embora!
A garota não se mexeu, pelo menos não que eu tenha visto, mas ela já não estava mais do meu lado. Poderia a criatura submersa ter predado minha amiga sem eu perceber? Estaria sozinho e perdido na companhia daquelas criatura horríveis, que faziam apenas se remexer nas paredes, vibrando e cantando melodias que nenhum humano ouviu quando deuses caminhavam pela terra e seus súbitos ofereciam sacrifícios vivos.
Eu vi as roupas de Clear rasgadas sendo levadas pela correnteza para fora da caverna. Peguei sua camisa branca e chorei desconsolado por perder minha amiga e quanto mais chorava mais os malditos peixes cantavam entusiasmados por meus lamúrios.
Indignado levei a luz da lanterna as aguas enquanto gritava por Clear quando via uma cauda se mexer no meio das aguas escuras e um ultimo coaxo surgido debaixo das águas salgadas fez os peixes vibrarem novamente.
Corri em desespero para as rochas á minha frente querendo sair da água. Estava mais difícil do que pensei e percebi que meus pés vibraram por conta própria e minha pele deu-me uma dica do que estava ao meu redor. Não era apenas nas paredes, o chão tinha vários deles, das criaturas que ali habitavam a espera de seu deus ou de seu sacerdote.
Livrei-me do que me segurava os pés e fui até o raso nas pedras. Algo se aproximou de mim vindo pelas águas e era bem maior que os peixes que me retiam. Escalei as paredes e subi até dar de cara com o trono onde achei estar seguro. Aquele assento não era comum, era muito antigo feito de jade escurecida e adornado com ouro. Tinha muitas pernas, uma base circular para assento e o encosto começava a gradativamente a diminuir e afunilar se subdividindo em dois como se fossem suportes aéreos para duas grandes telas.
A excentricidade da forma não era o que mais chamava a atenção e sim o tamanho daquela cadeira esculpida na jade. A envergadura daquele assento não era proporcional a um corpo humano, nem mesmo deitado um homem caberia naquilo. Era como se tivesse sido construído para algum tipo de deus, outrora esquecido.
Queria eu continuar a admirar mais o espetacular selim como se meus olhos estivessem se tornando escravo daquela perdida arquitetura milenar. Contundo algo se moveu atrás do trono e quebrou o feitiço lançado em minhas retinas. Lancei o raio da lanterna para as brechas do encosto e nada mais se fazia presente atrás daquele símbolo de poder.
Não algo se esgueirava pelo chão respirando e rosnando ameaçadoramente. Eu não via direito, pois a pele era escura e confundia minha vista entre a escuridão da caverna e as fracas luzes do teto. Mas eu vi a mochila, a pequena mochila que Clear carregava, estava bem ali presa na barbatana dorsal central da criatura, que tentava se ocultar na escuridão.
Aquela criatura parecia meio peixe, meio outra coisa, não poderia ser Clear, não poderia ao menos ser humana. Apesar disto arrepios me vinham só de pensar que aquilo pegou Clear e me circulava como se esperando o momento certo para me dar o bote.
Eu podia ver seus olhos enegrecidos muito fundos em seu crânio e pupilas muito brancas e brilhantes. Seu corpo rastejante parecia feminino e sua pele era tão azul como as fossas oceânicas de Mariana. Escamas por todos os lados do corpo e de sua cabeça saiam tentáculos ao invés de cabelos, suas orelhas eram parecidas com nadadeiras de peixe, sua língua excessivamente grande era como de um sapo, seus dentes eram afiados como de piranhas e quando coaxava sua barriga inchava e desinchava.
Ela tinha guelras perto das axilas, seus mamilos tinham formato redondo sem bicos, nas costas três barbatanas dorsais de tamanhos diferentes e uma cauda alongada com duas pontas flexíveis. Toda a parte debaixo da criatura entre a boca e a cauda era branca como a parte debaixo de um tubarão. Seus braços se assemelhavam aos humanos e as garras e nas mãos eram metálicas e reluziam.
A criatura usava pulseiras de prata nos pulsos, colares de perolas no pescoço e um grande anel de ouro na quilha. A coisa se movia como um animal, rosnando e coaxando, mas o modo que usava aqueles apetrechos era quase humano. Seu rosto em si parecia humano, salvo pelas partes medonhas que apresentava.
Ela se ergueu mostrando sua imponência elevou seus cabelos e levantou sua mão com suas garras apontadas para mim. Eu me abaixei pronto para correr, mesmo sem saber para onde, então ela se deteve. Lembrei que Clear tinha se ajoelhado antes de entrar na galeria, talvez a criatura não atacasse quem se prostrasse diante dela. A posição que estava parecia como alguém se ajoelhando e por isto me ajoelhei.
Não mais parecia hostil a mim e quase como me ignorando tirou de trás do trono uma coroa de prata com cinto pontas cheia de algas e caramujos. Ela colocou em sua cabeça sentando-se garbosamente no trono que lhe cabia perfeitamente ao acomodar sua cauda.
Foi só naquele momento que percebi o tamanho daquela criatura, achei que ela tinha o tamanho de uma mulher e que estava próxima a mim, mas não ela estava longe por isto pareceu ter um tamanho normal. Seu tamanho se igualava a sua aparência degenerada e grotesca.
Ela pegou a pequena mochila de Clear retirando de dentro uma estatueta estátua de bronze descascado revelando um ser gordo cheio de verrugas e com asas e orelhas de morcego. A base da estatua era um polígono e a criatura encaixou a base no apoio de mãos do trono e girou a estatueta como se ela fosse uma chave em uma fechadura milenar.
Do teto caiu poeira, depois musgo e finalmente pequenas pedras que se desprendiam do teto. As rochas sobre nossas cabeças foi se abrindo vagarosamente, onde uma estrutura de metal entrava nas rochas. Acima de nós estava o céu coberto por nuvens negras e turvas cuja única luz provinha de uma lua minguante que nos banhava com seus raios fugidos.
Eu não compreendia estava de manhã quando entramos na caverna e faltava muitas horas para o por do sol, ainda assim lá estava o céu noturno e o clima úmido próprio das noites mais sombrias.
A rainha marinha tomou a estatua em suas mãos mais uma vez e a apontou para a lua e num coaxar misturado a gritos estridentes ela clamava por algo. Meus olhos não e quando dei por mim estava preso na cauda do monstro, que continuava seus clamores à lua.
Tentei lutar sabendo que se não fizesse nada seria meu fim, mas quanto mais o fazia mais a rainha esquecida me apertava. Meus gemidos pareciam estimular as criaturas presas nas pedras da galeria que soltavam ruídos maquiavélicos, como se satisfeitas com minha tortura crepuscular.
Apesar de todo ruído auditivo o som de asas batendo conseguiam chegar meus ouvidos. Com muita dificuldade por estar prensado pela rainha gorgona consegui olhar para cima e notei uma criatura de envergadura ainda maior que todas as que tinha visto até agora.
A coisa era como um grande morcego que pairava pelos céus vindo em direção à cratera aberta pela gorgona. A colossal criatura que tapava a lua atrás dela soltou um guincho estridente e bem curto que fez toda a caverna tremer. Mesmos os peixes agarrados nas viscosas paredes se soltavam as centenas de tão poderoso o grasnado da criatura. Aquilo devia ser um dos Seres Ancestrais, poderosos em seus impérios e cruéis e sanguinários em suas ações e temidos como deuses malignos que um dia andavam livres pela Terra.
As paredes que antes contavam-me seus segredos ocultos agora gritavam em desespero com a chegada do poderoso Anun-Ga o terror dos céus e da terra. A coisa pousou sobre a fenda aberta e a gorgona se prostrou perante a criatura elevando-me como se me oferecesse a ela.
A coisa tinha duas patas traseiras finas cujos joelhos voltavam-se para o alto quando não voava. Suas asas eram como as de morcegos subdivididas em muitos dedos excessivamente alongados e grossos cujo mais forte deles tinha forma de gancho e sustentava a parte dianteira no chão. Seu corpo era tubular muito maleável parecia que podia se remexer para qualquer ângulo que quisesse cheio de orifícios que eu não sabia se tratavam-se ou não de narinas.
Não havia diferenças entre a cabeça pescoço e corpo era tubo um tubo vivo, mas seus olhos eram perolas vermelhas brilhantes com traços horizontais pretos como pupilas, quatro de cada lado e da sua boca saia meia dúzia de tentáculos e debaixo de seu corpo dois tubos de alimentação cilíndricos que pareciam sair de seus mamilos.
Olhar dentro dos globos oculares da criatura era contemplar o horror na sua forma mais plena. A fúria e a morte era tudo que refletiam da criatura, ela trazia consigo os maus agouros além dos sete céus e sete infernos. Estar em sua presença causava um pavor tão terrível que parecia congelar meus ossos.
Sentia meus dedos prontos para se desprender de minhas mãos, assim como não sentia mais nada das coxas para baixo. Eu não perdia o sentido do tato por causa da gorgona e sim por causa do ser ancestral a minha frente.
Nem tinha percebido que não estava mais sendo contido pela cauda da rainha gorgona, pois esta havia se ajoelhado em completa submissão aquele rente a nós. Mesmo com pouca idade eu sabia que a fome e a sede de sangue da criatura, uma gula sem igual que parecia querer devorar a tudo e a todos que encontrasse.
Da sua boca foi proferido uma espécie de soneto estridente e incômodo como se uma caixa de som gigante sofresse uma interferência. Esta era a voz da criatura uma voz pavorosa que levava o fim a tudo.
Seu ultimo guincho abalou os firmes pilares que seguravam a galeria natural de rocha. Uma grande ironia do destino o tal deus a minha frente era de tão grande poder que nem o lugar que escolheu para se banquetear conseguia ficar de pé em sua presença.
Ele se preparou para alçar voo, mas não poderia deixar sua refeição para trás e por tal motivo veio em minha direção avido pela carne fresca. Um de seus tentáculos que tinha quase a grossura de meu tamanho em altura veio para me capturar, mas repentinamente um feroz jato de água o cortou fora o que levava a coisa a pecar .
O monstro fez recuar ao sentir a dor, a rainha gorgona fugiu para longe se arrastando para os fundos da caverna, os estranhos peixes não mais estavam visíveis e ao que tudo indica eu estava sozinho contra a criatura.
Não sei se narrarei com esmero os acontecimentos a partir daqui, pois fui tudo rápido demais para que acompanhasse com exatidão. Mas sei que algo pulou para fora da água, a coisa que tinha visto desde o começo nadando nas aguas da caverna e que até ali permaneceu oculta saltou da água uma coisa marinha, feia e grotesca.
Parecia um hibrido entre humano e cavalo marinho tinha vários tons de cores rosadas pelo corpo. Este novo sujeito me abraçou e nós mergulhamos para dentro da maré alta na caverna. Uma coisa que me chamou atenção na criatura que me agarrava
Consegui ver apenas sua boca com alguma nitidez e acredito que foi esta criatura que tinha soltado aquela rajada de agua que me salvou anteriormente. Teria ela uma potencia espetacular para expelir agua de seu ventre com pressão suficiente para cortar a criatura quase divina que me ameaça.
Despertei na praia com as ondas noturnas sacudindo meu corpo e a agua salgada entrando pela minha boca. Quando finalmente consegui me levantar vi grande e corpulento seguido por criaturas menores migrando em direção ao alto mar. Foi a ultima coisa que vi naquele dia antes da fraqueza me fazer desmaiar mais uma vez.
Acordei com os primeiros raios de sol da manhã. Estava em casa deitado na minha cama. Meu corpo doía muito e quando tirei os lençóis de cima de mim vi queimaduras doerem como nunca antes tinha sentido.
Meus pais pensavam que eu estava queimado de sol, mas eu sabia muito bem que não. Onde doía em mim, onde o “sol” estava marcado na minha pele tinha uma forma circular. Na verdade digo que parecia que o sol havia batido somente onde a rainha gorgona havia me apertado com seu rabo infernal.
Também notei que as queimaduras não melhoravam ao passar cremes e derivados. Tive de ser levado ao médico que recomendou tratamento para queimaduras por agua viva. Sim, as queimaduras eram de origem biológica e não de insolação.
Meus pais me questionaram para onde tinha ido e o que tinha feito. Decidi contar a verdade ainda que um severo castigo me esperasse. Contei sobre a garota de cabelos azuis a estatua macabra e as estranhas criaturas que encontrei.
Minha mãe desacreditou na maior parte de minha historia, mas ela queria acredita que alguém pudesse ter me levado à caverna. Porém seu relato foi ainda mais perturbador que qualquer outra coisa que poderia ter ouvido contou-me que não havia na vizinhança nenhuma garota de cabelos azuis frequentando ou morando na vizinhança.
Eu não aceitei, repetia o quanto podia sobre ela, seu nome, sua aparência suas roupas. Meu pai diante minha birra me confessou que nas ultimas semanas eu estava tendo uma mania estranha a de ficar parada na porta da casa de dona Clear uma senhorinha muito solitária que nunca saia de casa por medo de assaltos e que não conversava com ninguém.
Abalado com as novas descobertas me revoltei contra meus pais e queria prova-los que minha amiga de dezesseis anos existia e fui questionar meus amigos um a um sobre o dia que conheci a garota, o dia que jogávamos bola na rua. Ninguém, absolutamente ninguém tinha a visto, nem naquele dia nem nunca e ganhei fama de mentiroso entre as crianças do bairro.
Por minha vez não tinha desistido eu sabia que tudo tinha sido real, então quis mostrar a meus pais a caverna, o estranho e profano lugar onde um deus esquecido devia dormir. Meu pai jamais me levou para aquela praia de novo e por isto tive de esperar até minha adolescência, quando eles não mais se preocupassem tanto comigo e quando poderia andar sozinho para voltar ao lugar de outrora.
Tinha meus quinze anos e convenci meus amigos a darmos um role na praia e explora-la. Enquanto eles achavam graça e novidade em tudo eu os guiava até a caverna. Não que desconfiasse da verdade daquele dia, porém queria pessoas que pudessem dizer que viam da mesma forma que eu a caverna. Não precisaríamos entrar apenas dar uma olhada nela.
Chegamos à encosta rochosa a qual tinha ido quando criança. Meus amigos estavam agitados e alegres em explorar a praia diziam eles que era um bom lugar para levar umas gatinhas. Eu não prestei muita atenção nas palavras deles, pois onde ficava a caverna bem no nível do mar, onde se encontrava a encosta tinha deslizado e desmoronado. Não havia mais caverna, não havia mais encosta. Só um monte de pedra em cima da outra.
O mundo desabou mais uma vez para mim, o Cabo Magnor era um lugar que negava minhas memórias, minhas vivencias e a verdade que tinha guardada comigo desde a infância.
A noite caiu meus colegas festejavam ao redor de uma fogueira e eu fiquei longe deles ao lado da encosta em lamurio profundo. Estava com meu celular terminando de escrever a meu blog: As estranhas aventuras de Oto Arruda. E bem quando terminava de escrever estas ultimas linhas eu notei algo se mexendo no oceano e timidamente chegando mais perto de mim.
Estou sorrindo com grande satisfação, ainda que não haja ninguém mais por perto para testemunhar isto, não posso conter minha felicidade em saber que o desconhecido se aproxima de mim novamente eu não sou mentiroso como todos diziam e isto me era suficiente.
O temor está tomando conta de mim e me sinto sendo atraído ao mar profundo como por um belo cantigo que não entra pelos ouvidos e sim vai direto para a mente. Eu quero ir até a coisa que nada graciosamente nas mares baixas da noite.
Quem estará nestas águas a enorme gorgona que me iludiu fingindo ser uma garota chamada Clear ou seria mais uma vez meu salvador anônimo que me tirou do perigo. Quem sabe ele ainda esteja naquela caverna profunda esperando para salvar a próxima alma que caia naquele lugar.
Apesar de profundos avisos sobre um perigo eu ainda desejo saber, saber se tudo era real ou ilusão. Caso não volte um abraço carinhoso como sempre. Ah... já sinto as ondas do mar sacudindo meus pés...
Fim do conto.