Tatuagens

A arte e a humanidade parecem que sempre caminharam juntas, desde a época em que morávamos em cavernas até a época em que produzimos poderosos arranha-céus. Começou como uma forma de comunicação e passou a ser uma poderosa forma de ganhar dinheiro na época em que mecenas endinheirados patrocinavam artistas. Mas foi somente no momento em que as tatuagens surgiram que a arte e o comércio dela se popularizaram.

Na época em que isso aconteceu poucos foram capazes de prever o futuro macabro que os esperava. Tudo começou quando um bilionário americano que sonhava em ir para o espaço assinou um contrato de exclusividade com um tatuador e patenteou os seus desenhos. A partir daquele momento todas as tatuagens que ele tinha feito em sua carreira multiplicaram extraordinariamente de valor. Enquanto outros milionários e tatuadores seguiam o seu exemplo, a primeira pessoa com uma obra de arte inestimável tatuada em sua pele morreu. Mas essa quantia em dinheiro traduzida em pigmento não podia ser simplesmente enterrada ou incinerada. Então o imprevisível foi iniciado com um bisturi e a autorização da família de retirar o pedaço tatuado de pele do falecido. Foi realizado o processo para conservação e colocado em uma bela moldura para exibição. Assim começou o mercado de pele tatuada e, como acontece com tudo, o mercado clandestino paralelo ao oficial.

Quando um tatuador patenteava as suas tatuagens, algumas pessoas ganhavam na loteria e outras um alvo. Foi o que aconteceu com Jorge que tinha em seu corpo mais de trinta tatuagens, mas a única que valia alguma coisa era justamente a que estava em seu pescoço. Foi a primeira que tinha feito em sua vida, antes da onda de patentes, mas tinha sido justamente com o primeiro a patentear. Era uma rosa minimalista, tendo como cabo uma linha um pouco inclinada, um espiral simbolizando as pétalas e uma pequena folhinha ao lado. Na época que fez passava até despercebida, mas agora era uma mina de ouro que o faria sangrar até a morte se tentasse tirar para vender.

Toda noite em que voltava da faculdade tinha medo. Ele usava um skate para se deslocar mais rápido e, caso precisasse correr ou brigar, não teria que abandoná-lo. Sabia que a qualquer momento alguém poderia tentar tirar a tatuagem dele para vender no mercado clandestino e, consequentemente, matá-lo. Ele já tinha visto outros casos nos noticiários e o número de roubos de tatuagem só cresciam. Se desse para só arrancar o membro tatuado deixando a vítima mutilada, os ladrões faziam. Mas se fosse preciso assassinar, eles não hesitavam.

Certa noite, viu uma pessoa saindo de um beco e correndo atrás dele. Desesperado, começou a impulsionar o skate cada vez com mais força, chegando a fazer com que a sola do seu pé doesse cada vez que a encostava no chão. Nunca tinha ido tão rápido em sua vida. Até que parou subitamente. Não viu o que o atingiu, mas sentiu um forte baque em seu peito que o fez ir para trás e cair, se chocando com as costas no chão e ficando desacordado enquanto o skate seguia em frente sem direção.

Acordou no mesmo lugar em que caiu. Não sentia dor, apenas raiva. Talvez a dor não viesse por causa da adrenalina. Talvez a raiva viesse por causa do medo. Mas ele não queria saber disso, ele só queria vingança. Queria acabar com o cara que o perseguiu e a imagem do seu rosto vinha constantemente em sua cabeça quase como se fosse o batimento do seu coração. Um rosto magro com ossos protuberantes. Olhos castanhos claros. Cabelo despenteado, mas não muito longo. Sobrancelhas grossas. Nariz comprido que pelas marcas já deve ter sido quebrado algumas vezes. Boca com lábios finos. Barba rala. A cada batida uma outra característica aparecia. A cada batida a imagem se cristalizava. A cada batida a sua raiva aumentava.

Foi cambaleando até o beco de onde o homem havia saído. Estava vazio, mas havia um rastro de sangue. Já houve outras vítimas. Ou ele só estava tentando afugentá-lo quando o perseguiu para não atrapalhar o desmembramento do verdadeiro alvo. Podia ter sido o seu sangue ali no chão. Queria que fosse o do seu perseguidor. Mas, como ele não estava mais lá, só restava achá-lo e o padrão de todos os caçadores de tatuagens era se livrar do corpo. Geralmente queimavam para destruir possíveis provas e não dar certeza do roubo da tatuagem, mas sem impedir a identificação do corpo. O melhor lugar para se queimar um corpo naquela parte da cidade era em um terreno baldio murado, pois demoraria no mínimo uma meia hora para algum morador se preocupar em descobrir de onde vem a fumaça e o cheiro ruim.

Logo depois de supor tudo isso, a sua cabeça começou a ficar zonza e a sua visão turva. No meio dessa tonteira que bagunçava os seus sentidos viu diversos terrenos baldios de relance até que um ficou se repetindo. A sua visão começou a se esforçar para encontrar o foco e lentamente se viu em frente a uma cerca de arame farpado. Atrás dela, o mato estava grande e havia a luz de uma pequena chama suspensa no ar no meio dele.

Ele não sabia como chegou lá. Ele não se importava em saber. Ele só queria a vingança e ela estava a poucos metros, então foi correndo até lá. O pequeno papel em chamas que o caçador de tatuagens segurava iluminava os seus olhos profundos de uma pessoa que claramente não dormia há dias. Ele ficava olhando para o corpo enquanto mexia suavemente os lábios e parecia nem notar a presença que o encarava. Os olhos de Jorge pareciam armas que iriam disparar e acertar o seu alvo no momento em que piscasse. Mas ele piscou no momento em que o caçador falou amém e nenhum disparo aconteceu. Quando fez o sinal da cruz, Jorge pode ver pela luz da chama o pequeno quadro que o seu alvo segurava com a outra mão. Nele tinha uma pequena rosa.

Toda a raiva que estava o possuindo até aquele momento se transformou em medo. Enquanto as chamas estavam caindo em direção ao chão e o caçador fugia, ele olhou para baixo e viu o seu corpo com um imenso corte no peito. A sua mente paralisou como se tivesse sido congelada, mas sem sentir nada gelado. Em meio ao choque, se lembrou dos últimos segundos de sua vida. Se lembrou de olhar de relance para baixo no momento em que sentiu o baque no peito e ver um fio de cerol indo de um lado da rua para o outro. Ainda ficou alguns poucos segundos no chão sentindo o sangue quente jorrar para fora do seu corpo enquanto a sua mente tentava entender o que havia acontecido.

Agora estava ali, paralisado, vendo a sua segunda morte. Tudo por causa de uma marca em sua pele. Tudo por dinheiro. Enquanto as chamas se espalhavam e consumiam o seu corpo, o medo ia diminuindo. Não sentia o calor das chamas e nem dor. Os sons do crepitar do fogo foram diminuindo. A luz que entrava em suas pupilas estava prestes a desaparecer. O nada estava chegando. Não era triste e nem feliz. Era simplesmente o nada, o não existir.