Sr. Estranho
- Satanismo! - gritou o padre Amaro - Só pode ser isso.
Sua voz estridente e irritante, meio roca, ressoou pelo salão paroquial como se fosse uma trombeta amassada, ou um ganso esganiçado, qualquer um deles.
Estavam todos presentes à reunião emergencial agendada pelas 3 marias – Maria Guilhermina, Maria Herculana e Maria Dalva, as maiores alcoviteiras da paróquia, verdadeiras desocupadas, com graduação em vigiar a vida alheia e especialização em teses mirabolantes, sempre prontas para um escândalo, extremamente dramáticas, como não poderia deixar de ser.
Madureira era uma pequena e pacata cidade da região serrana de Minas Gerais, onde absolutamente nada de emocionante acontecia. Típica cidade do interior, sabe? Molecada nas ruas brincando descalços, as senhoras cuidando da casa e os maridos ganhando o pão de cada dia das famílias. População: 305 habitantes. Nem sei se isso pode ser considerada uma cidade. Tá mais para um vilarejo mesmo.
As 3 marias eram inseparáveis. Elas se encontram cedo na padaria do Jorge para pegar os itens do café da manhã. Cedo é cedo mesmo, antes do Sol nascer e até antes do galo cantar. Tudo escuro, e as canelas finas e cabeludas das nobres senhoras arrepiadas do frio. Aproveitavam para colocar o “papo” em dia, e fazer os primeiros apontamentos sobre qualquer coisa que vissem, ouvissem ou ficassem sabendo no caminho. De lá iam até a frutaria do Miguel e voltavam para suas casas. Logo em seguida cada uma delas receberia a visita do seu Joaquim com o leite, ovos e hortaliças que fazia questão de entregar em domicílio.
O único que não estava ao alcance da língua das 3 marias era Antenor, um viúvo pra lá de esquisitão. Sem qualquer vida social o “Sr. Estranho”, como era conhecido, passava os dias trancado no porão de sua casa. Pouquíssimas vezes era visto caminhando no jardim com um cachimbo pendido no canto da boca. Ia à missa todo primeiro domingo do mês. Sempre sozinho, sempre calado. Sua esposa morreu jovem de pneumonia, sem lhe dar filhos. Nunca se casou de novo.
A reunião era para tratar justamente dele, o Sr. Estranho. Seus hábitos nada sociais incomodavam os moradores da cidadezinha. O que ele tanto fazia no porão?
- O Sr. delegado deve averiguar se não é o caso de ter alguma criança ou mulher acorrentada no porão - disse Joaquim - o comportamento dele não é normal.
- Não é bem assim Joaquim, não posso invadir uma propriedade privada sem uma ordem judicial - argumentou o delegado.
Grande vozerio se levantou, e permaneceu por algum tempo, até que padre Amaro se voluntariou para ir até Rio Cristalino, cerca de 54km dali, falar com o juiz da comarca. No fim do dia seguinte o delegado já impaciente aguardava na delegacia, tendo atrás de si grande multidão de curiosos, entre eles, claro, as 3 marias. A delegacia estava abarrotada como nunca. O Sol já estava baixo quando o padre Amaro adentrou derrotado o umbral da cadeia, suspirou fundo e esclareceu: negado!
O juiz de Rio Cristalino não julgou prudente invadir uma residência baseado na desconfiança de alguns vizinhos. Precisava de alguma prova, algum indício, algo um pouco mais contundente. No dia seguinte retornava o delegado para a comarca de Rio Cristalino, com 2 ou 3 testemunhas que juravam ter ouvido vozes de dentro do porão. Uma delas jurou ter visto uma silhueta. Era tudo o que o juiz precisava. No fim do dia, sem demora, a cidade toda estava às portas do Sr Estranho para assistir de camarote a prisão do sequestrador. Como este não atendeu de imediato à porta o Sr. delegado a arrombou, e adentrou a casa com a turba em fúria.
Ao chegar em casa, o suspeito, desentendido, fez força para conseguir passar por entre a gentalha que se aglomerava à soleira da porta, lendo com espanto o mandado recebido das mãos do delegado, que já tinha vistoriado o porão, não encontrando nada. Tinha que ver o desânimo na cara de cada cidadão ao receber a notícia de que nada foi encontrado. Um a um, todos eles voltaram para suas casas.
Mas as 3 marias não poderiam deixar o assunto para lá. Havia algo de muito errado ali, só não sabiam o que era. Passaram a controlar a rotina da casa, e a vigiar com afinco cada passo do Sr Estranho. Os rumores foram crescendo e as teorias eram as mais mirabolantes. Os mais supersticiosos não ousavam passar na frente da casa depois do Sol se por. Nos quatro cantos da residência sem muros começaram a aparecer velas de todas as cores e tamanhos. Uns acreditavam serem parte de um ritual macabro praticado pelo morador, outros diziam que eram pedidos de oração aos santos pela alma condenada o pobre infeliz. Alguns diziam que tinha demônio, outros diziam que ele era o próprio.
Os olhares preconceituosos e espantados acabaram afastando o indivíduo da sua rotina mensal, ele já não comparecia à missa. As homilias eram todas voltadas para ele.
- Todo aquele que não confessar, dar dízimos e orar, corre o risco de ser atraído por este mal que assola nossa cidade - dizia padre Amaro.
- Vigiai e orai - complementou Maria Herculana - essa foi a recomendação para nós.
A fama da casa cresceu absurdamente, e passou a ser ponto turístico conhecido na redondeza, principalmente no dia das bruxas e nos dias de lua cheia. Alguns visitantes acampavam em seu jardim, acreditando ser ali um local mágico e misterioso. Munidos de câmeras noturnas, esperançavam filmar ou fotografar o momento em que o Sr Estranho se transformasse em lobisomem.
Quando desapareceu uma menina de pouco mais de 5 anos até equipe de TV apareceu por lá para mostrar o possível local onde a menina estaria sendo usada em rituais perversos.
Diante da pressão popular o Sr delegado invadiu novamente a casa, até mesmo sem mandado, na certeza de que Monique estaria ali. Mas é claro que não encontraram nada. Foi por isso que Maria Dalva sugeriu que procurassem por passagens secretas no chão ou nas paredes. Depois de vistoriar a casa por dentro percorreram o quintal em busca de alguma área recém cavada, onde poderia estar o corpo da infante.
O Sr Estranho em fim foi levado para interrogatório em Rio Cristalino, e mesmo sob tortura não confessava onde a menina estava. Sujeito durão esse. Após uma semana tiveram que soltá-lo. Sua casa foi revirada, mas nada foi encontrado.
A população conseguiu autorização junto ao juiz da comarca para exumar o corpo da esposa Efigênia sob suspeita de que ela teria morrido em razão de torturas e rituais satânicos, mas o laudo do legista foi inconclusivo.
Revoltados com o ardil do Sr Estranho de sempre escapar da justiça com o uso de bruxaria, sua casa foi incendiada. Por incrível que pareça a única peça da casa que não sofreu danos foi o porão. Mas afinal de contas o que havia de tão secreto e misterioso naquele bendito porão? O que o Sr Estranho tanto fazia lá? O que se sabia, com certeza, era que o porão não era usado para enterrar vítimas de rituais, e isso se certificou por terem cavado por duas vezes o fundo do porão.
Em uma noite fria sem lua, escutou-se um estampido seco que ecoou longe. O pracinha correu a cidade em busca de investigar de onde havia partido aquele tiro. Após alguma diligência encontrou o corpo de Antenor estendido na varanda, com o cachimbo ainda acesso no canto da boca e um balaço no meio do peito. A multidão incrédula de olhos esbugalhados aguardava o momento em que o bruxo voltaria à vida. Não voltou.
O local foi isolado e pouco a pouco os curiosos, místicos e lunáticos foram deixando o lugar. O prefeito desapropriou a casa de Antenor e lá montou um museu, que reunião todas as horripilantes narrativas da casa e seu morador estranho. Muita gente vinha de fora conhecer a casa mal assombrada em que se dizia que tantas crianças e donzelas haviam sido sacrificadas em rituais macabros.
Um belo dia os 3 irmãos, Lourdes, Laura e Lafaiete, encapetados como eram, acabaram batendo em uma pedra da parede que revelou esconder um fundo falso, de onde se retiraram mais de 500 manuscritos, entre contos e poemas, escritos à mão com tinta nanquim, de próprio punho pelo Sr Estranho, em 5 idiomas diferentes, de uma qualidade literária invejável.
O pobre cristão tão injuriado, perseguido e excomungado, ao que parece nada de estranho, sinistro ou macabro possuía, masapenas preferia a companhia da caneta e do papel.