CONTOS DE OUTONO/INVERNO. O INFERNO DE GELO.
-"Vou nessa." Eduardo falou consigo mesmo, ao fechar o apartamento. Tinha vendido o imóvel, após a separação da esposa. -"Bernard? Vamos para o Nepal. Vendi o apartamento e o Camaro. Estou livre." O amigo francês não se conteve. -"Edu. Você ficou louco?" Eduardo desceu as escadas do condomínio. -"Tenho 400 mil em mãos. Vou investir tudo nesse sonho de escalar o Everest. Você vai ou não?" Bernard titubeou, como um zagueiro jovem frente a frente com Cristiano Ronaldo. -"Cara, não sei. Preciso falar com minha família. O Everest é um inferno de gelo, é loucura. Posso contribuir com 120 mil, é o que eu tenho." Eduardo foi categórico. -"É maio, alta temporada e mês propício pra escalar pois o vento é brando no Himalaia. Vou ligar para o Robinson, no Arkansas. Ele escalou o Kilimanjaro e o K2. Estivemos juntos no Aconcagua, na Argentina. Será nosso guia. Não há o que temer." O francês se animou. -"Eu vou. Estarei no aeroporto de Congonhas na terça." Eduardo vibrou. -"Assim que se fala. Arruma as tralhas, Bernard. Para o topo e além." Na casa dos pais, Eduardo conferiu as malas. -"Tenho que comprar outros óculos especiais. Luvas, gorro, saco de dormir, touca, botas de neve, comida enlatada, remédios, termômetro, relógio, bússola, cilindros de oxigênio, quanta coisa." A agenda cheia de anotações. Ele tinha livros sobre o Everest, a maior montanha do planeta com 8.848 metros. O rapaz tinha assistido a todos os filmes sobre o ponto mais alto do globo. Conferiu a rota. Uma mensagem no celular. O americano Robinson já estava a caminho do Egito. -"Bom dia, Robb. Convenci o Bernard. Ele vai subir conosco. A gente se encontra no Cairo. Abraços." Respondeu ao amigo com um áudio. A noite, Eduardo e Bernard se encontraram num bar. -"A gente sai no sábado, direto pro Cairo. De lá pra Índia e o Nepal. Subiremos pela face norte." Disse Eduardo, sabedor de tudo relacionado ao Everest. -"Temperatura?" Bernard pediu outro drink ao barman. -"Menos 60 graus Celsius. Pouco vento, só rajadinhas de 300 km por hora. Ficaremos cinco dias no acampamento base, a 5.270 metros. Subimos ao acampamento 1, a 6.035metros, onde ficaremos dois dias. O acampamento 3, a 6.474 metros, o acampamento 3, a 7.158 metros. O final, no acampamento 4, a 7.906 metros é onde ficaremos um dia. Voltamos aclimatados ao acampamento base, prontos a voltar a subir até o topo." Bernard prestava atenção. -"Tão perto do topo, no acampamento 4, porquê não avançar até o cume? Porquê voltar?" Eduardo mostrou as fotos no celular. -"Por isso, meu amigo. Veja quantos cadáveres na montanha! Mais de 300 alpinistas mortos, deixados na montanha. É muito caro e precisaria um esforço tremendo pra resgatar esses corpos, fixados no gelo. Na zona da morte, a 8 mil metros, precisaremos dos tanques de oxigênio pois é quase impossível respirar ali. O corpo estará saturado, exausto. Há o risco de avalanches, quedas, a doença da altitude traz náuseas e edemas pulmonares e cerebrais. O nariz e as pontas dos dedos ficam necrosados. A pessoa vai ao coma e a morte." Bernard engoliu em seco. -"Agora não há volta. Ou voltaremos gloriosos, com o nome dos heróis que venceram a montanha ou morreremos, aumentando as estatísticas dos fracassados" Eduardo se manteve calmo. -"De qualquer forma, teremos nossos nomes em algum lugar. Importante definir a rota certa, a tibetana ou a nepalesa. Do lado da China ou do Nepal. Não podemos nos esquecer dos sherpas." Eduardo tinha vários contatos no celular. -"Robinson fará isso. Os sherpas, guias nepaleses são caros mas indispensáveis pois carregam peso e conhecem a montanha. Impossível subir sem eles É morte certa." Dias depois, os dois amigos embarcaram rumo ao Cairo. Eduardo não viu mas Adriana tinha ido ao aeroporto. A ex esposa o viu de longe, no saguão. O americano Robinson os recebeu na capital egípcia. Uma visita rápida às pirâmides. No dia seguinte, os três voaram pra Índia. Um ônibus antigo, uma viagem pela montanha e um reconhecimento no Nepal. -"Você nunca verá tanto gelo na vida, Bernard." Brincou Robinson. Bernard estava encantado com a cordilheira Himalaia. O ar agradável. A movimentação dos turistas. Alpinistas de toda parte do mundo. No acampamento base, receberam a benção budista. Ritual obrigatório de proteção e permissão aos deuses da montanha. No posto 1, a 6.035 metros, Bernard já sentia saudades de casa, em Niterói. A barba com gelo, as sobrancelhas congeladas. -"Meu cavalo por um prato de sopa quente. Não é bolinho não." Eduardo e Robinson riram. Os cinco sherpas nada entendiam, só riam. Posto 4 vencido e a volta ao acampamento base. -"Estou fora de forma, eu sinto. Deveria ter frequentado a academia há seis meses, me preparando melhor." Disse Robinson. Bernard teve febre e preocupou Eduardo. -"Sopa quente, enlatada. Não é igual a do restaurante do Claude Troigos mas vai esquentar sua carcaça." Robinson os observava. -"Vamos dormir. Temos três dias de descanso. Os sherpas irão até a zona da morte, depois é conosco. Vou chamar o médico para o francês. " Três dias depois, aclimatados, eles retomaram a subida, com Bernard recuperado. Um dos sherpas quis seguir ao topo com eles. Eduardo conferiu se a bandeira do Brasil estava no bolso interno do casaco. Uma imensidão branca de neve. O mundo abaixo deles. -"Meu Deus." Bernard gritou, quase pisando num cadáver de um alpinista. Os três amigos unidos por uma corda. -"É o botas verdes." Apontou Eduardo. Tsewang Paljor, o botas verdes, era um sherpa, esquecido na montanha. Morreu antes de chegar ao topo, a 8.500 metros, em 1996. Seu corpo, de lado no gelo, indica a proximidade do cume e os perigos da montanha. Suas botas verde neon viraram referência aos alpinistas. Eduardo e seus amigos pararam pois o guia sherpa parou para uma breve oração no local. Bernard não sentiu as pontas dos dedos. Seis ossos pareciam congelar. O cume a frente deles, a cem metros. Robinson voltou e o abraçou. -"Você vai, francês. Você consegue." Eduardo pensou na família, no apartamento, no Camaro, na empresa e em Adriana. Reviveu cada momento bom. As alegrias. As viagens e as brigas. A separação nada amigável. Os passos vagarosos deram lugar a uma marcha constante. O topo estava perto demais pra desistir. Robinson chegou e ergueu a bandeira americana. -"Yes, I can. Soy o king of the world." Eduardo e Bernard chegaram ao cume. Os abraços. As fotos. Os vídeos pra família. -"Família, Adriana, eu consegui." Gritava Eduardo, sem forças. Bernard estava exausto. -"Vencemos o Everest. Vencemos." Uma foto com o guia sherpa. -"Myphoang, my name. Descer, descer " Os três amigos não deram ouvidos ao guia. Queriam curtir o momento. -"Wind. Vento mudando. Barulho. Nada bom. Nada bom. Descer " O guia fez gestos e foi entendido. Robinson olhou em volta. -"Vamos. Temos que voltar ao posto 4." Eduardo e Bernard unidos por uma corda. Robinson e o guia com outra. A zona da morte ficando pra trás. Robinson sentiu a visão falhar. Os pontos escuros. -"Sem energia, o corpo começa a buscar os nutrientes dos próprios órgãos. É um meio de sobrevivência." Disse Robinson a si mesmo. Experiente, sabia que estava no limite extremo. Logo viriam os edemas pulmonares e cerebrais. O americano pouco enxergava e caminhava a esmo. O sherpa era apenas um vulto. Não enxergava mais Eduardo e Bernard, a frente. O americano tirou um punhal e cortou a corda. O guia gritou. Uma avalanche de aproximando. Eduardo e Bernard voltaram mas só encontraram o sherpa, sozinho e desolado. Uma nuvem os cobriu. -"A doença da montanha o pegou." Eduardo chorou ao ver a corda cortada pelo americano. Bernard estava aterrorizado. Eles voltaram mas não encontraram o alpinista americano. Tempo depois, as barracas coloridas do acampamento 4 trouxeram alívio. Poderiam enfim, descer até o acampamento 3 com os outros sherpas. A descida ao acampamento base foi trágica, com dois guias caindo e quebrando braços e pernas. Uma semana de escalada. Eduardo e Bernard estavam debilitados. -"Estamos bem. Feiosos, com narizes pretos, sem sentir as pernas e extremidades mas bem." Disse Eduardo aos pais, por telefone. Transferidos a um hospital, na capital da Índia, passaram duas semanas em recuperação. Bernard teve dois dedos do pé amputados. -"Eduardo, que fria você me colocou, maluco." Dias depois, a família deles os esperava, no aeroporto de Guarulhos. Eduardo e Bernard foram abraçados e comemoraram a volta pra casa. Ele viu Adriana, de pé no balcão do aeroporto. -"Estava bom lá em cima?" Ela sorriu. Ele não conseguiu disfarçar o sorriso. Ela estava diferente, mais bonita. -"Tava frio pacas. Subi ao topo do mundo. Voltei diferente." Ela estendeu a mão. Eduardo a puxou e a abraçou. FIM