O CALABOUÇO DO TERROR.
França medieval. A noite estendeu seu negro véu, trazendo com ele os trovões que anunciam a chegada de uma tempestade. Um frio de fazer bater os dentes. Os três cavaleiros saíram da estrada para Lyon. -"A taberna do velho Eustache, meu senhor. É o único refúgio." O conde Flaubert concordou com seu fiel escudeiro, Danton. -"Vamos, então. A todo galope." Os raios. A trilha dentro da floresta. A lua cheia. Giles, mais a frente, parou bruscamente a montaria. Ele tirou a espada. -"Alí, tem alguém atrás daquele carvalho." Um raio caiu perto deles, assustando os cavalos. Uma mulher correu. O conde foi atrás dela. -"Meu senhor, cuidado." Gritou Danton, fazendo sinal a Giles e Ferdinand. O cavalo do conde Flaubert passou adiante da mulher. Os escudeiros a cercaram. A mulher caiu no chão, cansada. O conde se aproximou. -"Senhora, a tempestade chega. Porquê se escondeu de nós." A mulher tirou seu capuz roxo. O conde deu um passo atrás. Os escudeiros tiraram as espadas. Flaubert estava paralisado diante de olhos de esmeraldas tão grandes. A moça sorriu e mexeu nos cabelos cacheados que lembravam as ondas do mar de Marselha. -"É uma bruxa, conde Flaubert. Fiquemos longe." O conde discordou de Giles. -"É uma jovem apenas. Deve morar aqui perto." A moça se levantou. A mão cheia de anéis. O indicador apontado ao nobre. -"Está indo a taberna do velho? Não saia do quarto a meia noite." O conde se arrepiou inteiro. A moça se virou e saiu correndo mata adentro. Os primeiros pingos da chuva. Os homens montaram. A mulher tinha desaparecido. Meia hora depois, eles avistaram as luzes da taberna. Os cavalos cansados. Os homens molhados. O conde com sua grande capa. A porta da pousada se abriu. Os candelabros acesos. Alguns homens no balcão principal. As quatro mesas todas ocupadas. -" Boa noite, velho amigo. Queremos dois quartos, Eustache. Duas garrafas de vinho e três pratos dessa sua sopa horrível e quente." O taberneiro olhou para a esposa. -"Constantine servirá a sopa e trará o vinho. Infelizmente, não tenho mais quartos vagos. Sinto, conde Flaubert." O nobre olhou para os lados e se aproximou de Eustache. Enfiou a mão direita no bolso interno do casaco. -"Quatro moedas de ouro. Me arrume um quarto pois estamos há duas semanas viajando." Eustache suava frio. -"Não posso expulsar ninguém, meu senhor. Alguns já dormem o sono dos justos." Constantine voltava da cozinha. O brilho das moedas abriu seu sorriso. -"Nem em três semanas ganhamos isso, meu velho." Cochichou ao esposo. Ela beliscou o taberneiro. -"Terá seus quartos, meu bom senhor. Vou trazer a sopa." Alguns homens deixaram uma mesa vaga para o conde e seus servos. O conde tirou o chapéu e agradeceu-lhes a gentileza. Constantine trouxe a sopa, vinho e pães. Eustache foi até a cozinha. -"Ficou maluca? Servir meu melhor pão ao conde? Aonde pretende instalar o nobre e seus homens?" Constantine mostrou as moedas de ouro. -"Para o conde o melhor pois de onde vieram essas, têm muito mais. Ele ficará em nosso quarto. Iremos pernoitar na casa de meu irmão, Pierre. Os escudeiros ficarão com o quarto de nosso filho, Silvestre. Ele vai entender." O conde tomou a sopa. Ele começou a tremer de frio. -"Aquela moça na floresta. Ela sabia que estávamos vindo pra cá. Como pode? Parece que esperava por nós naquela trilha." Os escudeiros não responderam, não tinham argumentos. Tempo depois, Eustache levou chá e toalhas secas ao quarto onde ficaria o conde. -"A chuva deu uma trégua e todos já deixaram a taberna, meu senhor. Tenha uma ótima noite." Eustache se curvou. -"Obrigado pela atenção, caro Eustache. Não me esquecerei de sua hospitalidade." O taberneiro saiu. O conde travou a porta por dentro, antes de deitar-se. -"Por Deus, estamos longe de Lyon, longe de casa. Minha cara Genevieve me aguarda. A condessa está grávida de meu primogênito, o futuro conde." Um cochilo breve. A imagem da moça da floresta veio a mente. -"Não saia do quarto a meia noite. Não saia." A imagem da moça correndo. O capuz roxo. Os olhos verdes. O conde adormeceu. No outro quarto, os escudeiros dormiam pesadamente. A sopa. O chá. Os efeitos. O conde despertou. A porta destrancada. Uma tocha iluminava o corredor dos quartos. Ele saiu da taberna. Os arbustos. A mais completa escuridão. O xixi rápido. O conde assustou com a sinfonia de roncos que vinha dos quartos. Ele estava perto de seu quarto quando outra porta se abriu. Uma jovem apenas de camisola transparente saiu. A tocha acima dela. O conde se virou. Frente a frente com a moça. Eles se olharam. Por um momento ele pensou ser a moça da floresta mas percebeu que os olhos dela eram castanhos. O cabelo mais liso mas igualmente jovem e linda. -"Boa noite." Ele sussurrou. A moça, como que enfeitiçada, lhe estendeu a mão direita. O conde, apaixonado, tomou aquela mão quente e macia. Uma lufada de vento e a porta do quarto dele se abriu. O conde a puxou e a deitou na cama, onde se amaram. Lá fora, a chuva recomeçou. Eram quase meio dia quando o conde despertou. Estava sozinho na cama. Parecia atordoado, fora de si. Não sabia se tinha sido real o que vivenciou na noite passada. Ele se vestiu. Os três escudeiros estavam fora da taberna, conversando com o dono do lugar. Algumas árvores caídas, o lamaçal. A taberna estava lotada de hóspedes e viajantes. O conde olhava em volta, procurando aquela jovem. Eustache e os escudeiros vieram até o balcão, onde o conde aguardava sua refeição. -"Bom dia, meu senhor. Teve uma noite proveitosa e confortável? Pedirei a Constantine que o sirva antes de todos." O nobre declinou. -"Por favor, meu bom amigo. Trate-nos como simples hóspedes, apenas isso. Vejo que há pessoas aqui precisando de mais atenção, seja benevolente com todos. Sua casa é um oásis nessa tormenta. Logo mais iremos pra casa, satisfeitos com sua hospitalidade." Um casal veio até o salão principal. Eustache subiu numa cadeira. -"Senhores. Por favor, um pouco de atenção é o que peço. Palmas e aplausos ao recente e belo casal de noivos de nossa comunidade, Angelique e Heron." O conde se virou e reconheceu Angelique. -"Meu Deus, a moça. Noiva?" O conde acompanhava de longe a multidão cortejar o casal até a carruagem que os esperava. O conde abriu passagem na multidão e conseguiu chegar até perto da carruagem. Os cocheiros subiram. Angelique e Heron, sorridentes, felizes. Heron percebeu o nobre na janela. Ele cutucou a noiva. -"Eu..." O conde não tinha palavras. Angelique o fitou, radiante. -"Eu, conde Flaubert, desejo do fundo do coração, felicidades e bênçãos aos noivos." A mão de Angelique pousou mansamente sobre a dele, na janela da carruagem. -"Gratidão, meu senhor. Que assim seja!" Respondeu Heron. Angelique retirou a mão e sorriu. A carruagem partiu. -"Estranho. Parecia que ela não me reconheceu." O conde foi tirado de seus pensamentos por Giles. -"Os cavalos estão prontos, meu senhor. Estamos prontos." O nobre estava em outra sintonia. -"Os cavalos? Ah, sim. Vamos comer e descansar. Desejo falar com Eustache, negócios." Ele olhava a carruagem sumir no horizonte. Tempo depois, o conde procurou Eustache na cozinha. -"Quem era aquele casal, aquela moça? Nada me esconda." O taberneiro notou a inquietação do nobre. -"Fala de Heron, Angelique? Estavam em lua de mel, a caminho de Chamonix, os alpes gelados. A carruagem quebrou a roda. Resolveram pernoitar aqui. " O conde insistiu. -"Gostei do casal. Vão residir aonde?" O taberneiro olhava para o salão, preocupado com a esposa servindo as mesas. -"Residir?! Sim, vão residir em Saint Thomas. " O conde se levantou. -"Que bom. Vou ao estábulo, Eustache. Vejo que tem afazeres, não quero tomar seu tempo." Na manhã seguinte, o conde pediu que Giles chamasse, discretamente, Constantine. A mulher saiu, tempo depois, acompanhada do empregado do conde até a floresta, longe de curiosos. O conde a esperava. Giles deixou-os a sós. -"Pra você, minha amiga." A mulher sorriu ao pegar o saquinho de moedas. -"Que devo fazer, meu senhor? " O conde sorriu. -"Manter-me informado sobre Angelique. Nada me esconda e seja prudente." A mulher se curvou. -"Assim será." Um dia depois, o conde e seu séquito de escudeiros deixaram a pousada. Lyon surgiu no horizonte, três dias depois, deixando o conde feliz. Eles cruzaram a cidade e logo estavam no castelo. Os serviçais saudaram o nobre. A condessa Genevieve veio, amparada por duas damas de companhia. -"Meu marido. Seja bem vindo ao lar. " O conde a beijou. -"Orleans e Nimes estavam em festa mas desejava retornar, preocupado com sua gestação, minha querida. Fiz bons negócios com o marquês Julien." A condessa estava febril. -"Algo a preocupa? Está febril?" A mulher pediu água. -"Não há de ser nada. Sonhei com demônios o perseguindo, numa floresta. Uma mulher linda se transformou em dragão e o devorava. O filho seu, bastardo, o matava, em Paris. Uma tempestade depois. Você estava perdido, preso num calabouço." O conde deu uma gargalhada. -"Querida. Não tenho e jamais terei bastardos. Sonhos apenas, nada significam. O bispo Olaf já nos advertiu que o maligno usa de sonhos para nos perturbar. Eu comeria um faisão inteiro, sabia?" A condessa abriu o leque e se abanou. -"Desejava sua volta, meu senhor. Teremos um lar cheio de filhos. Vou pedir para que façam uma refeição farta para comemorar seu retorno." Flaubert a beijou. -"Estou feliz. Minha querida, a maternidade a fez mais linda e radiante. Será a condessa mãe sem beleza igual nesse lado do reino. Preciso de um banho e de roupas secas." A sós, o conde pensava em Angelique e nos seus beijos. O sonho da condessa fazia sentido e vinha de encontro ao que ele tinha passado. A mulher linda, a tempestade, isso de fato aconteceu. Filho e morte não faziam sentido mas, e se Angelique estivesse grávida? E se o noivo dela descobrisse e viesse atrás do conde? -"Meu senhor. Vai calçar as botas?" O empregado o tirou de seus devaneios. -"Botas? Angelique?! Ah, mil desculpas Raymond, as botas. Não, nada de botas pois estou com os pés em frangalhos, quero um chinelo macio." Dois meses, nenhuma correspondência da mulher do dono da taberna, Constantine. O conde impaciente. Enfim, uma carta chegou ao castelo. A mulher do taberneiro informava da gravidez de Angelique. Um mapa indicava a localização da moradia do casal Heron e Angelique. Trancado em seu escritório, o conde queimou a carta de sua informante. Três meses. O nascimento do primogênito do conde trouxe alegria ao castelo. Jean Paul parecia a mãe mas nada lembrava o pai, o desconfiado conde Flaubert. O menino crescia com saúde. Doente, a condessa Genevieve passava uma temporada num convento, pra cuidar de sua saúde frágil. O conde pouco debitava simpatia e carinho ao filho, bem cercado de damas e empregados dedicados. O conde desconfiava da infidelidade da condessa e via, na aparência do filho, quase nada parecido com ele, uma prova eloquente de que a condessa o traíra. Uma carta de Constantine. O conde se trancou no escritório. -"Angelique teve um filho, um varão. Um menino grande, robusto e de olhos verdes. Ele tem um sinal no pescoço, uma mancha escura." O conde correu para o espelho. A mancha no pescoço, os olhos verdes. Seu pai e seu avô tinham aquele sinal. Ele abaixou a gola do casaco e apalpou a mancha de nascença. -"Angelique teve um filho meu." O nobre saiu e foi ao quarto do filho. -"Saiam. " Ordenou ríspido as empregadas que banhavam o menino. O conde pegou o filho nos braços. O sinal estava lá, no pescoço da criança. -"Perdão, Genevieve, duvidei da sua fidelidade. Mil perdões. Meu, é meu filho. Eu te amo, Jean Paul." As empregadas ouviram o choro do conde. Pouco procurava o filho e agora aquela choradeira. O conde mudou e passou andar atenção e carinho ao filho. Danton foi promovido a superior da guarda do condado, enquanto Ferdinand passou a chefiar os escudeiros e empregados do castelo. Giles passou a lidar da estrebaria e carruagens, o que o aproximou da condessa, uma adepta da arte da equitação. Giles acompanhava a condessa em suas viagens e piqueniques. Ferdinand quebrou um vaso caríssimo, o que fez com que o conde o dispensasse, rebaixando -o para os trabalhos nas lavouras. Giles passou a ocupar o cargo de Ferdinand. Danton teve um acidente numa viagem e faleceu. Giles ocupou o cargo de Danton, acumulando funções múltiplas com primazia. Giles foi elevado a administrador do condado, respaldado pela condessa, de volta ao castelo. O conde tinha uma reunião em Toulouse. Giles e alguns guardas o acompanhariam na viagem. Na taberna de Eustache, no caminho de Toulouse, o conde falou longamente com Constantine. Ele, Eustache e a mulher saíram sozinhos numa manhã. De longe, o conde viu Angelique com o filho de quinze anos, no quintal de uma casa simples. . Bertrand era uma cópia do conde. Alto, bonito e de olhos verdes. -"É meu filho." Disse o conde a Constantine. Eles voltaram a taberna, sem saber que Gilles tinha os seguido. Três semanas depois, a condessa Genevieve espumava veneno e gritava palavrões ao saber de tudo. -"Um filho bastardo! Flaubert vão comer o pão que o diabo amassou." Gilles e Jean Paul tentaram acalmar a mulher. Semanas depois, a condessa disse que estava doente. O conde sugeriu que ela se tratasse no convento, como das outras vezes. -"Te amo e faço votos que retorne bem, como das outras vezes. O ambiente de oração, a paz do convento lhe farão bem." O conde beijou a condessa Genevieve. Ela sorriu e tossiu muito depois. A dama de companhia lhe trouxe água. Assim, dias depois, a condessa Genevieve viajou ao convento, acompanhada de Gilles e dez guardas. Heron percebeu os latidos dos cães e saiu da casa. A noite escura. -"Cinco cavaleiros com tochas? Estão encapuzados!? Quem serão?!" Heron gritou pelo pai. -"Robert?! Traga as lanças!. Angelique?!" A mulher despertou. Ela acordou o filho. O velho foi ao encontro de Heron. -"Estamos sob a proteção do marquês, nas terras dele." Heron foi direto. -"Não há tempo de chamar o marquês e seus guardas. São bandidos, meu pai. Angelique, fuja com Bertrand pelos fundos. Vá para a floresta!" Bertrand e Angelique correram. Alguns cavaleiros os cercaram. Angelique foi atingida por flechas. Bertrand conseguiu entrar na mata. Os cavaleiros avançaram sobre Heron e seu pai. As lanças eram inúteis contra os arcos e as flechas. Mortos, Heron e o pai foram colocados na cabana. Angelique foi trazida, logo depois. Bertrand olhou para trás e viu o fogo consumindo a casa. A dor e o choro compulsivo. A raiva. Certamente, seus pais estavam mortos. Ele ouviu gritos e correu o máximo que pode. Com cavalos, eles o encontrariam rapidamente. O rapaz escalou um grande carvalho e atingiu o alto. Alí ficou, quieto, protegido pela copa da árvore. Estava certo pois viu os cavaleiros lá embaixo, alguns com tochas. Horas depois, os primeiros raios de sol. Com medo, o rapaz não desceu. Dava pra ver o riacho dali do alto e essa área sua salvação. Tinha que ter certeza que não tinha ninguém o esperando e correr para o rio. Cinco horas depois, Bertrand desceu do seu refúgio. Esgueirando -se pelas árvores, ele chegou ao ponto mais próximo do riacho. Rastejando como uma cobra, ele deixou o corpo cair pelo barranco e caiu no riacho. Agarrado aos arbustos da mata ciliar, deixou a correnteza o levar para longe. Apenas a noite o rapaz saiu do rio, indo parar numa vila que não conhecia. Um ano se passou. As cartas de Constantine cessaram. Numa viagem a Paris, um ano depois, o conde Flaubert soube da morte de Eustache e Constantine por bandidos. -"Mataram toda a família e destruíram toda a taberna. Humbert reformou o local e é o novo dono. " Informou um morador ao conde. O nobre chamou Gilles e foram até a casa de Angelique. Só havias ruínas e cinzas. Alguns vassalos trabalhavam alí perto. -"A família de Robert, o ferreiro? Foi toda queimada." Informou um ancião, amigo de infância do velho Robert. -"Tinha um rapaz! Um filho do casal." Gilles arregalou os olhos com a pergunta do conde. -"Sim. Bertrand deve ter virado carvão com o incêndio da casa." O conde ficou triste. Duas semanas depois, em Paris, o conde preparava suas duas carroças de sementes pra viagem de volta. Gilles orientava os guardas e escudeiros. A comitiva saía da cidade, numa manhã, quando foi cercada por soldados. -"Revistem as carroças." O conde saiu de sua carruagem. -"Sou o conde Flaubert. Levo sementes do duque Héctor. " O soldado sorriu. -"Será só isso?" A carroça foi descoberta e as sacas retiradas. -"Aqui estão as jóias do duque. Prendam esses homens." O conde estava vermelho de raiva e vergonha. Ele desmaiou. O conde acordou, horas depois, no calabouço. -"Me tirem daqui. Sou nobre e inocente. Exijo falar com o duque." Três dias depois, Gilles visitou o conde na prisão subterrânea. -"Há ratos enormes aqui, Gilles. A comida é péssima." Gilles o acalmou. -"Falei com o duque Héctor, meu senhor. Ele concordou em liberar as carroças e nossos homens as levaram. Eu fiquei." O conde chorou. -"Minha doce Genevieve, meu filho e minha casa. Gilles, me ajude a sair daqui." O administrador abaixou a cabeça. -"O perdão do rei. Vou apelar ao rei. O conde logo sairá daqui." Gilles deixou a cela. Naquela noite, três bandidos foram colocados na mesma cela do conde. Eles o xingavam e o ameaçavam de morte. O conde teve as vestes rasgadas e apanhou muito. -"Um nobre aqui? Escapou da guilhotina, almofadinha?" Com o corpo dolorido e o lábio sangrando, o conde se encolheu num canto. Uma semana e Gilles não apareceu. -"Por Deus, meu senhor. Não podem colocar esses bandidos aqui. Vou falar com o chefe da prisão. Estou tentando falar com o duque e pedir seu perdão. Não roubamos jóias nenhuma." A sós com o preso, Gilles limpou as feridas do conde. -"Eles me batem. Vou morrer aqui. Me tira daqui, Gilles." O conde barbudo e sem a peruca, chorou no ombro do administrador. -"Vou tirar meu senhor daqui, eu juro." O soldado veio e informou que o tempo de Gilles tinha terminado. O administrador olhou para o conde e saiu. A noite, os bandidos bateram no nobre. Gilles apareceu duas semanas depois. Doente, fraco de tanto apanhar, o conde era uma caricatura de si mesmo. Gilles o abraçou. -"Vamos pra casa, meu senhor. O duque retirou a queixa, o rei o perdoou." Ajudado por dois guardas, o conde se pôs de pé. -"Quero novas roupas. Sou nobre. Não posso ficar preso e apanhar tanto. Não posso." Gilles se comoveu com a condição do nobre. -"Por favor, meu senhor. Assine aqui, na linha pontuada é a guia de retirada da queixa, pelo duque. Esse documento vai servir de prova de sua inocência e restituirá os danos causados." O conde, ainda fraco e debilitado, assinou o documento. -"O conde Silvestre ofereceu sua casa de veraneio para que possa reestabelecer a saúde, antes de empenhar a viagem pra casa. Fica nos arredores de Paris. -"Lembre-se de agradecer ao amigo por esse nobre gesto." O conde deixou a masmorra com Gilles. Uma carruagem os esperava. Três dias depois, eles regressaram ao condado. A condessa Genevieve recebeu o conde com carinho e Jean Paul estava enfurecido com a situação do pai. Era visível que o nobre estava abalado emocionalmente. Jean Paul administrava o condado e Gilles cuidava de tudo. Para os empregados, o conde estava ficando louco, delirando. Era questão de tempo para que Jean Paul assumisse o controle de tudo, inclusive o título de conde, sendo o único herdeiro. Sem a mão forte do conde, os negócios iam de mal a pior pois a loucura do nobre tinha se espalhado. As lavouras não produziam como antes e Jean Paul teve que dispensar dezenas de empregados. A condessa tinha vendido a maioria de suas jóias. Muitos nobres, em situação precária, vendiam seus títulos de nobreza. Era a única saída para a família de Flaubert. Numa noite chuvosa, uma discussão na mesa de estar. Jean Paul queria que o pai vendesse seu título. A condessa Genevieve interferiu, a favor do filho. -"Estou aguardando um comprador para o título de nobreza de papai. É um corsário com muito ouro, que trabalhou anos para a rainha inglesa. Só falei com o procurador dele, um homem cheio de anéis e correntes de ouro. " O conde deu uma gargalhada. -"Um pirata? Um pirata será o conde, o senhor de tudo aqui? O senhor do castelo que foi de meu trisavô?" Jean Paul ergueu um saco debaixo da mesa. Ele abriu e as modas de ouro caíram. Centenas delas. Os olhos da condessa brilharam. -"Renê de Limoges, o pirata, me deu esse saco de moedas como adiantamento. Teremos trinta sacos desse, caso aceite vencer o título de nobreza, meu pai. É o suficiente para vivermos como ricos comerciantes, pelo resto de nossas vidas, em Turim ou Veneza." O conde mordeu uma das moedas. -"Eu vou pensar sobre isso. Não tenho muito tempo de vida.. estranho que, com tantos nobres em situação ruim na França, esse pirata rico escolheu justamente a nossa família." Gilles entrou e viu a grande quantidade de moedas de ouro. -"Devo pensar que estão escondendo dinheiro, com o condado em dificuldades? É isso mesmo?" Jean Paul explicou-lhe a origem do dinheiro. Gilles se mostrou contrário a venda do título de nobreza. Um mordomo anunciou a chegada de um visitante. -"Deve ser Renê de Limoges." Disse Jean Paul, indo até a janela. -"É ele. São cinco carruagens." A porta de abriu. Um homem bem vestido anunciou a chegada do visitante. -"Meus senhores, minha senhora condessa. Eu, o procurador Vincent, anúncio a chegada de meu senhor, Renê de Limoges, um navegador exímio e agora mercador." Dez guardas entraram e ficam enfileirados junto a porta principal. Quatro serviçais entraram e puseram quatro caixas de madeira sobre a mesa de vinte lugares. Cercado por dois guardas e vestido como um príncipe, Renê entrou na sala. A condessa Genevieve notou a semelhança do jovem com o conde. Os mesmos olhos verdes. Era como se visse o conde Flaubert mais jovem. Jean Paul se aproximou. -"Seja bem vindo, Renê. Esse é meu pai, o conde Flaubert. Minha mãe, a condessa Genevieve." Renê os cumprimentou, gentilmente. A condessa olhava o visitante, curiosa. -"Vamos ao que interessa, a compra de seu título de nobreza." A um sinal, os serviçais abriram as caixas, revelando uma grande quantidade de moedas de ouro. -"Muitos duques amigos meus não têm metade disso. Estou surpreso." Disse o conde, já tentado a ceder seu título. -"Não serei conde. Vejo que o ouro refez a sanidade de meu pai." Disse Jean Paul a Gilles. O visitante abriu alguns documentos. -"Já preparei alguns documentos de cessão de direitos e títulos. Falta apenas a assinatura e carimbo do conde." Renê de Limoges sorriu e espalmou as mãos sobre a mesa. Era o mesmo gesto que o conde fazia quando estava feliz. Jean Paul ficou perturbado. O conde suou frio. A condessa Genevieve coçou os olhos, admirada. -"Você não tem o sotaque de Limoges mas tem muito ouro, meu caro Renê. Eu vou assinar esse documento." Anunciou o conde, puxando uma das caixas de moedas pra perto de si. O conde assinou o documento e colocou seu selo. Gilles avançou e gritou. -"Não, não vai comprar título nenhum. Esse ouro é meu." Ele abriu o documento que o conde tinha assinado na prisão. -"Aqui está sua assinatura, me reconhecendo como primogênito e me cedendo o título. Eu sou o conde desse castelo. É tudo meu." O conde estava surpreso. -"De jeito nenhum é meu filho, imbecil. Você armou tudo isso." Gilles tirou a camisa e mostrou o sinal de nascença do conde. -"No pescoço, olhem. O conde tem um sinal igual, Jean Paul, meu meio irmão, tem um sinal igual. Anabelle de Marselha, uma serviçal linda, amante do conde era minha mãe. Não herdei seus olhos verdes nem seu carácter, velho assassino. A condessa descobriu e assassinou minha mãe, quando ela o procurou antes do casamento. A condessa me adotou e cuidou de mim, na época com sete meses de vida. A condessa me contou tudo, omitindo que dera cabo de minha mãe. Nesse tempo, fui autor de muitas mortes a mando dela. Muitos matei, inimigos do conde, muitas de suas amantes e aventuras. Aquele casal de pobres camponeses, Angelique e Heron. O casal de taberneiros e muitos outros. A condessa fingia doença pra viajar e se tratar nos conventos mas saía pra matar, pra tirar os obstáculos de seu caminho. Vendo a bondade do conde, cheguei a conclusão que ela tinha envenenado minha mãe. Sim, ela guarda veneno em cápsulas nos anéis. É uma víbora." O visitante Renê sentou-se. -"Bravo. E agora, a quem devo pagar pelo título de nobreza? A Jean Paul? A Gilles? Ao conde? A ninguém pois eu também tenho esse sinal no pescoço e sou filho de Angelique e Heron, ou melhor de Angelique e do conde Flaubert? Tenho dois meio irmãos." O conde caiu sentado na cadeira, ao ver o sinal no pescoço do visitante. -"Papai ou melhor, conde Flaubert. Sou Bertrand, sem sotaque de Limoges. Escapei dos arcos e tochas de Gilles, naquela noite. Fiquei horas no alto da árvore e dentro do rio. Por sorte, fui criado por uma mulher sábia, na floresta, longe das cidades. Creio que era a mesma moça que o encontrou na floresta e lhe disse pra não sair de seu quarto. O conde não resistiu. Ela foi queimada como bruxa mas Paulette era uma curandeira apenas, uma pessoa maravilhosa. Interessante que, naquela tarde fatídica minha mãe me revelou sobre esse sinal, que eu era filho de um conde. Esse seu documento nada vale, meu meio irmão Gilles. O conde estava sem condições de ler. Há testemunhas disso." Gilles tirou a espada e abraçou a condessa. -"Não serei preso. Essa víbora é a culpada de tudo." O conde tentou acalmar os ânimos. -"Gilles, não faça bobagem. Deixe a condessa." O mordomo entrou. -"Senhor, soldados do rei chegaram ao castelo." Gilles se aproveitou e feriu mortalmente a condessa. Ela olhou a espada no coração e caiu. Os guardas de Bertrand/Renê tiraram as espadas, protegendo o conde e seus filhos. Os soldados do rei entraram com lanças nas mãos. Gilles correu e se atirou pela janela. Bertrand/Renê e Jean Paul viram o cadáver do administrador lá embaixo. Uma altura vertiginosa. Uma morte horrível. +"Eu vim atrás de vingança. Desejei mataria conde, julgando -o cruel assassino de minha família. Paulette me dizia pra não dar vazão a irá e a vingança. Vejo que é inocente, conde Flaubert." O conde se derramou em lágrimas. -"Só posso pedir seu perdão, Bertrand. Há tempos esse castelo não via tanto sangue." Jean Paul estava sem reação. -"Nascemos quase na mesma data, Bertrand. Pelo documento, esse castelo é seu. Por justiça, é seu." Bertrand rasgou o documento. -"Não. Esse castelo é do conde Flaubert. Sempre foi." Ele fez um sinal para seus guardas saírem. -"Deixem as caixas para o conde. É um presente meu." O conde agarrou o braço do rapaz. -"Esse castelo é seu, por herança. Pode não querer morar aqui mas sou seu pai, embora não mereça ser chamado de pai. Venha me ver, quando quiser. Por favor, Bertrand." Eles se abraçaram. -"Está bem, eu virei. Sempre quis ter um irmão. " Jean Paul abraçou o visitante. O rapaz tirou seu anel e o colocou no dedo de Bertrand. -"Agora sim, somos irmãos." Bertrand puxou Jean Paul e o abraçou forte. -"Não preciso comprar nenhum título de nobreza." O conde se juntou ao abraço. -"A verdadeira nobreza está no coração." Jean Paul e Bertrand revitalizaram o castelo e o condado reviveu seus dias de opulência e glórias. Jean Paul casou-se, anos depois, com uma jovem nobre de Lyon. O conde Flaubert ainda viveu por um bom tempo, a ponto de curtir os netos e fazer uma viagem de barco pelo mediterrâneo, acompanhado de Bertrand. FIM