As garras da chuva
As garras da chuva
Rosália Cristina
A lama descia macia entre os vincos feitos pelas patas dos cachorros. A multidão, curiosa, observava tudo, tentando em vão se proteger da chuva. Uns homens, mais corajosos ou movidos pela humanidade de salvar os vizinhos, arrastavam a calda negra e úmida da tragédia. Os bombeiros orientavam onde pisar, o que mover, onde ficar... O dia seria longo.
Era madrugada quando tudo começou. A enxurrada castigava o morro. Algumas famílias da comunidade já haviam pego seus documentos, algumas poucas roupas, o dinheirinho guardado debaixo de seus segredos, tudo que pudessem levar, e seguiam para casa de parentes ou amigos para passarem a noite. Menos a família de Pedro, que não tendo parentes na cidade e amigos, só os que já se deslocaram, acabaram por ficar na casa onde morava. Pedro era filho de Tião e Dona Malu. Tião, vigilante noturno, não se encontrara em casa. Apenas Malu, Pedro e a pequena Pimpa, a cadelinha da casa, que se aninhavam na cama do casal a fim de amenizar o frio e esquecer o medo da chuva.
E por falar em chuva, essa caia torrencialmente, parecia gritar altiva que viera e pra que viera. Os relâmpagos na fresta da janela denunciavam o caos. Pimpa, com as patas apoiando o queixo, parecia vigiar a porta à espera que alguém os levasse dali. Cansada, com a barriga pela boca, nos seus já 8 meses de espera, Dona Malu adormecia. Pedro escutava o rádio, baixinho, com músicas de tempos que não viveu. A música que ele não queria ouvir mesmo era a da chuva lá fora.
No princípio da madrugada, Pedro ouviu um estalo. Parecia um tiro. Levantou-se, pegou o que mais lhe parecia uma arma: o cabo da vassoura quebrada. Pimpa rosnou baixinho.
- Silêncio, Pimpa. - Pediu o menino, pondo o dedo na boca num gesto de silenciamento. A cadela atendeu.
Curioso para ver uma possível confusão na rua, quem teria atirado, aproximou-se da porta. O silencio da rua, entretanto, o deixou desconcertado. O que teria estalado afinal?
Nesse momento, um raio de relâmpago parecia cair sobre a casa. Mais um estalo, dessa vez maior. E a queda. Metade da casa descia abaixo, como carreirinha de dominó, na qual a queda da primeira peça derruba todas as demais. Não se viu mais nada. O menino silenciou. A cadela latia chorando. Machucou-se. Após alguns segundos, uma voz aflita:
- Pedro! Filho!
- Tô aqui, mãe.
O menino chorava sem fazer escândalo. Não queria que a mãe se preocupasse com ele.
A mãe gritava por socorro, presa sobre a cama, sob uma parede que ao cair fez um ângulo com a alta cabeceira da antiga cama. A escuridão invadia seu olhar e a água da chuva se perdia no colchão. Da cadela não se escutava mais os grunhidos.
Pedro olhou tudo ao redor e só via a chuva que parecia um monstro com uma mão transparente a levar sua casa. As pernas de ferro da mesa que ficava na sala serviram de abrigo para o menino, sustentando telhado, paredes e destroços. Fios elétricos faiscando faziam o menino temer seguir para mais próximo da mãe.
Do lado de fora, escutava-se as vozes de desespero dos vizinhos. “Vamos ligar pros bombeiros”, “Vamos ligar pro Tião”, “Não atende a ligação”, “Será que tinha gente na casa?”, “Acho que morreram todos, não se escuta nada!”, “Ela tava grávida”... Pedro queria gritar, mas o frio e o medo calaram sua voz. A mãe, da cama, lhe passava palavras de segurança e afeto. A escuridão não lhes permitia ver um ao outro. Nesse momento, o monstro recolhera suas mãos transparentes, talvez recuasse um pouco para admirar a destruição.
Os moradores, ainda que açoitados pelo medo, cavavam os arredores de onde estaria a porta da casa, a fim de encontrá-la, e resgatar quem estivesse naquele aglomerado de lama. Os bombeiros chegaram em quinze minutos e deram-lhes as primeiras orientações. Um cachorro imenso, com olhar vívido e aspecto de caçador, apressava-se por cavar e latir em busca de pessoas no soterramento.
Pedro escutava tudo com a calmaria de quem precisava estar bem para o irmão que estar por vir. Verdade que as lágrimas lhe escorriam pelos olhos, se misturando com a lama e salgando seus lábios. A mãe evitava se mexer para não provocar a queda da parede sobre ela.
Do lado de fora, num elevado do terreno, se apoiando no tronco caído do coqueiro, um dos bombeiros localizou a mãe. Com a estratégia que lhes é de competência a retiraram daquele ambiente. O menino ouvia tudo e pela primeira vez as lágrimas pararam de fazer corredeira de seu rosto. O barulho da ambulância, o latido dos cachorros da vizinhança e as conversas entrecortadas que o vento trazia, davam ao menino um alento de esperança. Pensava no pai, que parecia não saber de nada ainda. Pensava na sua cadelinha que parou de latir a um tempo.
No início da rua, um homem desesperado chegava chorando. Os vizinhos o amparavam, explicando o que ocorrera. Era Tião que, avisado por Pimpa, veio ver o que poderia fazer uma cachorrinha, andar cerca de dois quilômetros e latir desesperada pra ele, sem que nada a detivesse a euforia. Pimpa deveria estar dentro de casa com a esposa e o filho, pensou. Leu o medo nos olhos da pequena canina, a colocou nos braços, fechou o portão do prédio, montou na bicicleta e seguiu para sua casa.
Vendo a multidão e os bombeiros e sem ver sua casa, desesperou-se. Foi levado à ambulância, onde sua mulher se recuperava do susto. Nesse momento, o cachorro do policial latiu forte. Encontrara o menino. A cadelinha pulou do colo da mulher e correu para a multidão. Entrou pelo buraco que saiu, aproximou-se do menino, anunciando-lhe a chegada do socorro.
Com um pouco mais de escavação e de afastamento de entulhos, a mão do bombeiro segurou o menino pelos braços, indicando-lhe o caminho seguro. A família abraçou-se unida, alegrando-se por verem um a um salvos. O dia finalmente amanhecia. Um tímido sol anunciava os estragos do monstro chuva, cujas garras em corredeiras ainda deslizavam finas pelas encostas do morro.