Uma noite no hospital - O Transplante
Esse conto é baseado em fatos reais....
Eu estava tentando me acalmar, relaxar o corpo e a mente, os últimos dias estavam sendo difíceis, mas meu sofrimento estava para acabar, bem cedo naquela madrugada ainda ou, no máximo, na próxima manhã, eu seria levado à sala de cirurgia e finalmente faria o transplante de que tanto precisava para continuar vivendo e não apenas sobrevivendo, como estava sendo nos últimos meses.
O coração que eu precisava estava vindo de helicóptero e, assim que chegasse, imediatamente, começaria a cirurgia, pois cada minuto era importante para que tudo desse certo…
Há anos vivia com problemas de saúde, muitas vezes pensei em desistir, entre casa e hospital, mas sempre tive uma família ao meu lado, me ajudando a levantar nos piores momentos.
Estava deitado em uma maca ao fundo de um corredor próximo à sala cirúrgica, era bem desconfortável, e tornava tudo mais angustiante ainda, mas em plena pandemia era o que tinha, e ali, assim que o coração estivesse próximo ao hospital, já começaria a me preparar para o procedimento…
Vez ou outro, vinha alguém ver se estava bem, mas me sentia sozinho, o corredor parecia mais apertado do que realmente era, minha família esteve sempre comigo, me apoiando em todos os momentos em que fiquei baixado naquele hospital (que foram muitos), mas desde que iniciou a pandemia, por segurança deles e para a minha, há mais de uma semana, eles foram educadamente convidados a ir embora.
Mantínhamos contato apenas por telefone, todavia, como estava já ali, à espera do procedimento, nem telefone tinha, e, naquela solidão com os meus mais indesejados pensamentos, os minutos pareciam horas.
Não sei se pela medicação ou mesmo pela angústia, eu pouco conseguia dormir, mas como, às vezes, eu me perdia na profundeza da minha mente, provavelmente, em alguns momentos, eu estava entrando em estado alfa.
Não sei precisar as horas, mas pela pouca movimentação do pessoal que eu via passar nos outros corredores, já devia ser tarde da noite, minha salvação devia estar próxima.
Foi quando ouvi um barulho diferente, mais agitado que o normal para aquele horário e parte do hospital.
Rodinhas da maca giravam ligeiramente agitadas, passos nos sapatos brancos eram ritmados e rápidos, sai do meu transe, não podia me movimentar bruscamente, e fiquei atento esperando, pois como os sons ecoavam cada vez mais alto, podia ser meu novo coração vindo em minha direção.
Mas não era, os enfermeiros deixaram a maca do meu lado, e entraram correndo na sala de cirurgias, eu, curiosamente, olhei para o lado e vi um rapaz, um jovem, com o rosto contorcido de dor, mas consciente, pois balbuciava sem parar…
Eu tentei entender o que ele dizia, mas não consegui, então pedi que ele se acalmasse. Vagarosamente, ele virou a cabeça para meu lado e disse:
“Dói muito...eu queria morrer, tentei, mas nem isso eu consegui fazer direito, bem que, quando minha mãe foi embora e me deixou, ela falou que eu não servia para nada! nem para me matar, eu sirvo..” e soltou um profundo suspiro de dor!
Quando ele falou isso, foi como se eu levasse um soco na boca do estômago, estava eu, há meses lutando com todas as forças para sobreviver, e ele, um jovem, provavelmente, com menos de 20 anos, com toda a vida pela frente, querendo a morrer, não tive como evitar e pensei, como o mundo é injusto…
Mas ao mesmo tempo em que pensei isso, me dei conta, que eu, simplesmente não sabia nada sobre ele, sabia apenas que era um jovem à beira da morte e que eu não tinha o direito de julgá-lo por mais que achasse uma burrice o que ele fez e pelo jeito, ele mesmo já estava arrependido.
Senti uma lágrima escorrer e falei com a voz embargada:
“Calma, amigo, ninguém vai antes da hora, todos cometemos erros, tu é jovem e forte, e os médicos vão fazer de tudo para te ajudar, tudo vai ficar bem!”
Ele, com a voz fraca me disse: “Por favor, estou com medo, me dá a mão?? Eu sempre vivi sozinho, mas não quero morrer assim”, e ele, com muito esforço, levantou e aproximou a mão da minha.
Eu prontamente agarrei a mão dele o mais forte que consegui e novamente pedi para ele ficar calmo, e que, a partir daquele momento, ele não estaria e nem ficaria mais sozinho, pois eu estaria ali ao lado dele..
Perguntei seu nome e ele respondeu o nome completo e eu repeti o nome dele em voz alta e disse, e eu sou o Jorge, seu novo amigo..
Mesmo entre os gemidos de dor, vi um breve sorriso em seu rosto…
Nunca fui religioso, todavia, o convidei para rezar um Pai-Nosso comigo, e ele disse que não sabia rezar, pois nunca teve ninguém para ensiná-lo.
Não se preocupe, eu falo e você repete, eu disse.
E assim, fizemos, e a cada palavra sentia que o aperto de mão dele ficava mais fraco, mas, não mesmo assim, ele não soltou a minha mão.
Quando falamos “amém”, eu vi a porta abrir, o enfermeiro veio e puxou a maca do jovem, eu disse: “vai dar tudo certo!”, ele me olhou e falou: “obrigado, amigo!”.
Foi tudo muito rápido, e tanto para ele quanto para mim, agora só bastava esperar!
Não demorou para que um enfermeiro saisse da sala, perguntei o que havia acontecido com o rapaz, ele me disse que o jovem havia tentado se matar com uma facada no coração, e que só estava vivo ainda porque não a tinham removido e que a cirurgia seria de alto risco em razão disso…
Eu pensei em como a vida era irônica, eu há anos esperando por um coração saudável, enquanto o meu morria lentamente, e aquele jovem, que tinha um corpo completamente sadio havia feito aquilo..
Não tive muito tempo para pensar sobre toda aquela situação, pois logo em seguida foi a minha vez de ser levado para a sala de cirurgia, uma nova vida estava para começar, como eu queria minha esposa ali comigo, mas eu sabia, que, não apenas ela, mas meus filhos e outros parentes estavam rezando e torcendo por mim, esse foi meu último pensamento, antes de começarem a me explicar o que fariam a partir de então!
Acordei muitas horas depois, afinal, parecia que tudo havia dado certo, a sala estava vazia, pelo canto do olho, vi uma enfermeira sentada anotando algo, estava em uma mesa afastada de mim, minha garganta doía, e me sentia fraco, não conseguia chamar a enfermeira.
A sala era dentro do prédio, então não sabia se era manhã, tarde ou noite, estava desorientado, assustado, quando, repentinamente, senti um vulto ao meu lado, era o jovem da noite passada, ele estava diferente, estava de pé, parecia saudável, mas, com certeza, era ele.
Ele me olhou e sorriu, dessa vez, um sorriso sem marcas de dor, ainda grogue e assustado, senti quando ele pegou minha mão e disse: “Amigo, se acalma, deu tudo certo para ti e para mim, cada um seguirá o caminho pelo qual deve ir a partir de agora, tu recebeu o presente de uma nova vida e eu recebi uma nova oportunidade. Foi bem difícil para eu me orientar assim que acordei também, mas logo lembrei que não estava sozinho, que tinha alguém, que em poucos instantes comigo, me ensinou a rezar e acreditar que as coisas podem dar certo, por isso vim aqui antes de partir, e, amigo, nunca esqueça, para aqueles que nada tem, um pouco, pode ser o suficiente para mudar tudo, queria ter te conhecido antes, mas a vida é o que é.... e, tenho certeza, um dia nos veremos de novo!”
Eu olhei para ele, me sentindo muito tonto ainda e dessa vez fui eu quem respondeu com um leve sorriso e, sem entender bem, fui largando lentamente a mão de meu jovem amigo, que a apertava, até que, novamente, apaguei.
Acordei, desta vez acordei mesmo, já estava no quarto, ao meu lado, estava minha esposa, vestia aquelas roupas que faz com que as pessoas pareçam astronautas, mesmo com aquela estranha máscara que cobria sua cabeça, vi que ela chorava, e eu sabia que era de alegria pela nova chance que havia recebido! Chorei junto com ela, mas logo veio um enfermeiro, também vestido de astronauta, que entrou e mandou eu me acalmar ou minha esposa teria que sair do quarto, pois ficar calmo era parte da minha recuperação..
Respirei o mais profundamente que conseguia e consenti, e peguei a mão de minha esposa, mesmo com ela de luvas, era bom sentir seu toque, a saudade, mesmo sendo algo intangível, pode ser tão dolorida quanto a dor física!
Conversamos amenidades, ela rapidamente me atualizou sobre nossos filhos, eu escutava e sorria, minha garganta ainda doía bastante, então, eu pouco falava.
Não demorou para que o enfermeiro pedisse para que ela se retirasse, pois eu precisava descansar. Ela concordou e eu também, pois me sentia exausto.
Assim que ela saiu, ele voltou e perguntou se eu estava bem e se precisava de algo, eu balancei a cabeça negativamente, mas quando ele se afastava, eu o chamei, ele se virou para mim e eu perguntei: “Ontem à noite, antes da minha cirurgia, no bloco entrou um jovem esfaqueado, e eu queria saber se posso falar com ele?”
O enfermeiro me fitou seriamente e disse: “Seu Jorge, quando eu cheguei hoje pela manhã, eu li as fichas das ocorrências noturnas, e sei do jovem, mas, infelizmente, ele não resistiu, mesmo com todo o esforço da equipe, ele acabou falecendo na mesa de cirurgia!” e com a tranquilidade e a frieza de anos de experiência na profissão, o enfermeiro deu dois tapinhas na minha perna, se virou e saiu do quarto.
Eu fiquei ali, inerte, tentando absorver o que havia acontecido, pois eu lembrava, eu tinha certeza, que o jovem havia falado comigo depois da minha cirurgia e ele estava tão bem!
Gritei ao enfermeiro que voltou correndo e, antes mesmo antes de ele entrar no quarto, eu perguntei: “Você tem certeza de ele morreu?”, o enfermeiro, com um olhar que parecia ter o poder de matar, balançou os ombros e disse: “Sim, tenho certeza, quando eu cheguei, além dos papéis, eu também liberei o corpo para o necrotério e posso te garantir, o jovem estava morto!”, novamente, ele saiu da sala, porém dessa vez, ele fechou a porta.
Fiquei pensando, será que foi apenas um truque, uma brincadeira do meu inconsciente da minha mente drogada por analgésicos ou ele realmente veio se despedir de mim?
Eu nunca saberei o que realmente aconteceu, pelo menos não nesta vida, e também nunca mais esqueci o conselho que para aqueles que nada tem, um pouco, pode ser o suficiente para mudar tudo!
De alguma forma, ele foi importante nesta minha nova vida!