O CRIME DE PADRE OSVALDINHO.

A pequena e pacata vila de Nossa Senhora das Mercês exultava com a proximidade da festa de sua padroeira. A praça estava linda, coberta com milhares de bandeirinhas coloridas, feitas com carinho pelas crianças do educandário. O prédio foi erguido pelo bom padre Osvaldinho e abrigava a creche, tocada pelas freiras franciscanas. As seis generosas e simpáticas irmãs tinham sido trazidas a vila pelo padre, natural de Uberlândia. O moço estava na vila há dois anos e derrubara por terra toda a desconfiança dos fiéis, acostumados com o padre antigo, o falecido frei Serapião, homem severo e honesto. -"Onde já se viu, padre com roupas comuns?" Diziam os ministros da santa eucaristia, na primeira reunião do novo vigário com a equipe de festas. -"Acho que vou repetir o pudim de leite condensado, padre Osvaldo." Disse o bispo, piscando pra cozinheira. -"Fique a vontade, dom Nicassio. Não há nada igual aos pudins de Das Dores. Essa mulher é a melhor cozinheira do mundo." A cozinheira corou. -"Imagina, padre. Meu tempero é o amor." O padre novo não apenas equilibrou as finanças, como também deu mais vigor as quermesses e contato com o povo, visitando as casas dos fiéis e resolvendo muitos de seus problemas. -"Vou falar com o prefeito de Serafim, temos que ter um posto médico." Lá foi o padre, na charrete com o coronel Raulino, até a prefeitura da outra cidade. -"Nossa Senhora das Mercês merece um posto, somos distrito mas temos quase mil habitantes. O senhor deve pensar nas próximas eleições, é um aviso." O prefeito enxugou o suor de seu rosto. -"Vou ver o que faço, senhor padre." O padre cruzou os braços. -"Dê o terreno, nós faremos o posto."E assim, oito meses depois, o posto era inaugurado. Ficava aberto por três horas, com a visita de um clínico geral de Serafim mas já melhor que nada. A população passou a adorar o padre novo. As celebrações nas fazendas eram novidade, além dos batizados ao pé das mangueiras e figueiras. -"Estou satisfeito com o novo vigário, a fama dele chegou a diocese." Disse o bispo ao coronel Raulino. -"De fato, querem até o eleger prefeito. E além do que, o asfalto e a luz elétrica logo chegarão a vila, graças ao novo padre." O bispo pegou a garrafa de licor de pitanga. -"Das Dores, a cozinheira da casa paroquial." O coronel arregalou os olhos. -"Que tem a mulher, seu bispo?" O religioso olhou para os lados. -"Que ninguém nos ouça, sou apaixonado por ela." O coronel se benzeu. -"Deus nos livre, é pecado." O bispo acariciou a barriga proeminente. -"Não é paixão de coração mas de pança, meu amigo. Desde os tempos de padre Serapião que tento levar aquela negrinha pra cozinhar pra mim, na mitra." O coronel suspirou. -"Ufa. De fato, a bichinha cozinha bem que só. Já almocei muito com frei Serapião e olha, não conseguia parar de comer. Tentei trazer a família dela pra fazenda, ofereci até casa na colônia mas ela não quis." O bispo abraçou o coronel. -"Já fiz de tudo, ofereci o dobro do salário, uma casa perto da catedral, meio período de trabalho e nada. Ela não deixa a casa paroquial daqui por nada." O bispo ficou sério. -"Confesso que até invento motivos pra visitar a vila, a fim de provar a comida da boa Das Dores." Chegou o dia da festa da padroeira. O bispo estava presente, na missa demorada e com a igreja lotada. O povo feliz com a presença do coral diocesano. A missa festiva. A banda de forró no coreto da praça. O bingo concorrido. As barracas de quitutes e guloseimas. O bispo foi embora antes da chuva, na manhã seguinte. -"Vou consertar o telhado do salão de catequese. Aquele buraco pode estragar os livros." Disse o padre ao sacristão Leonardo. O bispo saiu do carro. -"Padre Osvaldo, cuidado. O senhor é muito querido." O bispo estendeu a mão e o padre beijou sei anel. -"Vou me cuidar. Já consertei aquele telhado outras vezes, é jogo rápido. Vá em paz, senhor bispo." As horas passaram. Das Dores com o almoço pronto. Ela foi a casa do sacristão. -"Não sei. Padre Osvaldinho subiu no telhado do salão de catequese, depois não o vi mais." A mulher se desesperou. Perambulou pelo bar do Gordo, o armazém de Seu Noca, a banca de pastéis de dona Aparecida, o salão do dentista Getúlio, a farmácia de seu Esteves, a creche e a escola. O homem tinha sumido. O sacristão Leonardo rebe uma idéia. -"Vamos ao salão de catequese. Deve estar lá." Um grupo de sete pessoas seguiu o sacristão e a cozinheira. A freira Maria de Jesus abriu o salão. Ela deu um grito e desmaiou. As pessoas entraram e viram o corpo do padre no chão, morto. Ao lado, a caixa de ferramentas e duas telhas. O buraco no telhado, por onde o padre caiu. -"Seis metros, tadinho. Que dor, padre Osvaldinho." Gritava Das Dores, inconsolável. A comoção tomou conta da vila e das cidades vizinhas. O bom padre Osvaldinho tinha batido as botas numa fatalidade. O enterro do padre foi comparado ao enterro de uma celebridade, tanta gente que tinha vindo se despedir do bom sacerdote. Uma semana depois, assumia a paróquia o velho padre Raimundo, vindo de Teófilo Otoni. Ele trouxe sua mãe pra fazer companhia e cozinhar para ele. Das Dores foi dispensada. -"Melhor assim, não tinha mais clima para cozinhar naquela casa paroquial." A mulher colocou a trouxa nos ombros. O marido e os três filhos pequenos andavam na estrada de terra, a caminho de Serafim. -"Vamos embora, Aparício. Essa vila não tem mais sentido sem o bom padre Osvaldinho." Um carro levantou poeira e parou ao lado da família. -"Meu Deus, Das Dores? Está deixando a vila, mulher?" A mulher chorava. -"Acabou, seu bispo. Mais nhã vida acabou." O bispo saiu do carro. -"Não fala assim. Deus é mais." Aparício encarou o bispo. -"Estão falando que o padre tinha inimigos, o prefeito talvez? Quem ia fazer mal a um santo daquele?" O bispo se benzeu. -"Não creio. Ele escorregou, pisou no vazio. Fez o bem. E vocês, pra onde vão?" O casal deu de ombros. -"Por aí. Vamos até onde tiver trabalho." Disse o homem. -"Preciso de um jardineiro e de uma cozinheira. Tenho três cômodos vazios, nos fundos da Mitra. Se quiserem, podem ficar lá de graça. E tem escola pertinho pras crianças." O casal se olhou. -"A gente aceita, senhor bispo. Deus lhe pague." Respondeu Das Dores, sorrindo. O bispo abriu a porta do carro. As crianças se atiraram nos bancos macios. -"Vão gostar da cidade grande. Puxa, que bom ajudar pessoas tão boas." Dois meses depois, o bispo visitou o coronel Raulino. -"Soube que a Das Dores está na casa do bispo. Vejo que o bispo engordou mais." O religioso sorriu. -"Foi sorte, coronel. Digamos que o destino deu um empurrãozinho." O coronel arregalou os olhos. -"O bispo. Não?!" O religioso sorriu, maquiavélico. -"Que fique entre nós, coronel." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 16/02/2022
Reeditado em 16/02/2022
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