Silene
Era uma dessas madrugadas de Janeiro quente e abafada, que a gente só falta andar nu pela casa, a pele gruda na lona do sofá durante o dia e a noite nos lençóis da cama.
Talvez por isso Silene subitamente despertou, eram 3:05 da manhã.
O marido resfolegava ao lado, parecia os capados gordos que tinha no sítio do seu pai no norte de Minas depois que comiam muita lavagem e se deitavam em baixo da mamoneira ao meio dia.
O bairro ou por outra o morro onde morava, dormia quieto, terça para quarta-feira, não ouvia um latido sequer ao longe, era o momento de agir, a vida não lhe daria outra oportunidade.
Lentamente saiu da cama, andou com as pontas dos pés até a saída da porta, com cuidado girou a maçaneta, saiu pela porta da cozinha que dava para o fundo do quintal, com medo de ligar a luz precisou tatear até as mãos reconhecerem por fim o que procurava.
Respirou fundo várias vezes, precisava de coragem, não podia fraquejar, não agora, com passos decisivos voltou para dentro, os pés descalços ainda com os restos de terra do quintal, o fôlego quase trancado, respirava minimamente o ar mole da noite, o marido estava deitado na mesma posição, as costas voltadas para a cama, o corpo parcialmente descoberto, revelando parte da cueca samba-canção, agora a respiração era mais serena.
Colocou a ferramenta suavemente próxima aos pés do marido, agora o mais difícil, subir na cama, o pavor imenso de acordá-lo, colocou um pé no gradil de madeira, graças a Deus não ouviu nenhum estalido, tirou o outro pé do chão, sentiu estalar levemente o tornozelo, seu rosto imediatamente fixou o rosto gordo do marido, mas ele parecia alheio a tudo.
Agarrou o cabo do machado, passou levemente os dedos no fio da lâmina, precisava sentir onde estava o corte, o coração pulsava cada vez mais forte, segurou o cabo com toda a firmeza, como era destra, a mão esquerda segurava a ponta e a direita o lado de dentro próximo ao centro do cabo, as mãos coladas, a veia da cabeça parecia saltar, finalmente os filmes de ação sanguinolentos que o seu marido assistia e ela via por tabela valeria alguma coisa, tentou imitar o protagonista que disse para fazer da arma seja qual for a extensão do seu corpo.
Quando subiu o machado até o alto para atingir em cheio as têmporas do marido, lembrou-se de imediato do filme Titanic, uma cena em particular, a protagonista precisava cortar com o machado a corrente que prendia o personagem do Leonardo Di Caprio, só que ele fala pra ela treinar antes tentando acertar o mesmo lugar, no treinamento ela não consegue acertar o mesmo ponto duas vezes, errando por muito e ela Silene não teria duas tentativas como no filme, ela não podia errar.
Mente Maldita! A lembrança fez seus braços fraquejarem, começarem a tremer, a possibilidade de errar era grande, a cabeça do marido mesmo gorda, confundia-se na penumbra da noite, além de tudo, ela nunca havia manejado um machado, morou na roça, mas os serviços braçais eram feitos pelo pai e pelos irmãos.
Olhou no rádio relógio novamente, agora os dígitos em vermelho indicavam: 3:19, não tirou os olhos dos dois pontinhos piscantes, quando deu 3:20, pulou da cama, recolheu o machado novamente, com passos rápidos mas silenciosos, retornou ao quintal, um breu total, quase teve um sobressalto quando um cachorro uivou ao longe seguido de outros. Ergueu a camiseta até a testa e limpou o rosto empapado de suor, de novo tentou manter a respiração a mais calma possível, fechou a porta da cozinha atrás de si, abriu a torneira do filtro, encheu o copo de alumínio até o fim, sorveu toda a água em grandes goles, já era pra estar tudo terminado, pensou, voltou pra cama, tentou pegar no sono novamente, mas nada, olhos secos como o sertão onde morou quando menina.
A mente fervilhava, não conseguiria dormir mais essa noite, os olhos abertos encarariam a escuridão até que ela por fim fosse dissolvida pela luz da manhã.
A cabeça ameaçava doer mas decidiu ficar ali, não moveria um músculo sequer, em algum lugar do mundo o dia acabara de amanhecer, pensou. Nesse momento no planeta Terra quantas mulheres acabaram de matar o marido ou o companheiro? Provavelmente nenhuma, mas sabia que o contrário não era verdadeiro...feminicídio...quando era menina, nunca havia ouvido falar dessa palavra, só depois que veio pra São Paulo...Será que inventaram essa palavra agora? No final das contas, uma palavra nova para um problema tão antigo.
Que horas o marido acordava pra ir trabalhar mesmo, 5 horas?
Era muito tempo de espera.
Não queria mas os olhos acabaram pousando novamente no rádio relógio, e a hora agora eram 3:55, ainda tinha tempo se eu quisesse, pensou.
Virou o rosto para o Almir, parecia estar no melhor dos sonos.
Os olhos fitos no teto, sua mente retornou à infância, a vida dura que ela e os pais tiveram, as dificuldades para estudar morando longe na roça, eram muitas as privações, seus pensamentos foram se perdendo, tantos caminhos poderiam ser escolhidos...
Assustou-se com o barulho do despertador, agora o tempo passou muito mais rápido.
Fingiu dormir, Almir resmungou um palavrão mas rapidamente se levantou, arrumou e saiu.
Às 8 horas Silene saiu do barraco onde morava, pouco tempo depois voltou do mercado com algumas frutas.
Levou a sacola para o seu quintal minúsculo, como ainda era cedo todas as janela de barraco que davam para o seu quintal estavam fechadas, tentou primeiro com uma melancia, machado bem seguro, puxou e travou o fôlego, levantou o machado até o alto da cabeça, só então lembrou, iria estar bem escuro, até podia ligar a luz, seria tão breve, mas ao mesmo tempo não queria se arriscar, ele pressentiria quaisquer luz ligada no quarto, mesmo se fosse a chama de uma vela.
Fechou os olhos, calculou a distância mentalmente onde ficava a cabeça do famigerado marido e soltou o machado com tudo, sentiu o estrondo do machado... na terra, a única coisa que o machado cortou foi uma minhoca ao meio, a melancia contudo nem se mexeu, deu um passinho a mais, encurtou a distância dos braços, deixando-os mais próximos à ponta do cabo de madeira, isso demandaria mais força, mas aumentaria a precisão, pensou. Machado no alto, novamente; Agora sim, o golpe forte e preciso fez a melancia partir-se ao meio. E se o crânio do marido fosse duro como um daqueles cocos verdes de praia? Ainda bem que ela havia pensado nisso e trouxera um exemplar para o seu treinamento; machado novamente no alto, soltou o machado com toda a força possível, o impacto do corte foi o suficiente para vazar toda a água do seu interior e foi impossível na hora não imaginar a cabeça do marido ali. Chega de treinamento pensou, recolheu toda a sujeira e guardou tudo dentro de um saco plástico preto.
Silene sabia o quanto seu marido era um traste da pior espécie, que devido ao seu gênio irascível a qualquer momento seria esfaqueado ou morto a tiro em uma briga de bar mas não aguentava mais apanhar, a última surra que havia levado a fez ficar com hematomas por todo o corpo, um dos machucados deixou uma crosta do tamanho de uma laranja partida ao meio que demorou muito a sarar.
Por conta dessa Almir passou uma noite na cadeia, prometera que mudaria, ela besta aceitou-o de volta, nos primeiros meses ele realmente parecia um outro homem, inclusive com gentilezas insuspeitas, trazendo até acreditem flores para a esposa, mas com o tempo o velho Almir estava de volta.
Num belo dia de domingo do nada ele lançou um prato com comida e tudo pra cima de Silene, segundo ele porque ela salgara o feijão de propósito, tudo era motivo de implicância sempre punida da pior forma, depois que ele voltara da cadeia ela já colecionara quatro pequenas cicatrizes provocados por queimaduras de cigarro, sua nova maneira de torturá-la.
Um dia Silene esperou ele dormir, arrumou as malas e fugiu na calada da noite, no entanto ele conseguiu ir atrás dela, fez com que ela voltasse, prometendo mais uma vez que sim dessa vez seria diferente, disse que se sentia mal toda vez que era violento com ela, prometeu até mesmo que procuraria tratamento, mas de novo foi em vão.
A noite chegou e encontrou o barraco onde vivia Silene e Almir arrumado, comida pronta, Silene fez o prato de Almir e ele foi para o sofá assistir ao filme da Tela quente na globo como religiosamente fazia. Mal acabou e foi direto pra cama, em pouco tempo já dormia largado.
Silene não ia dormir nem agora e nem nunca mais com aquele homem, esperou pacientemente no sofá, ligou a tevê e ficou trocando de canal, vendo pedaços de séries que nunca acompanhara, esperou uma hora, duas horas, havia lido que o sono pesado da maioria das pessoas acontecia por volta daquele instante entre as duas e as três da manhã.
Olhou no relógio de parede engordurado da cozinha, eram 2:33 minutos, ficou pensando quais seriam as manchetes no Aqui e Agora ou no notícias populares se esses veículos ainda existissem, pensou num jeito de escapar, de não ser condenada, uma pobre fudida igual ela não ia ter jeito, além de tudo o marido tinha irmãos morando na Bahia tão ou mais perigosos do que ele, um dia acabariam por encontra lá, viver com medo o tempo todo, não ia ser fácil, pensou. Por mais que matutasse, nada lhe vinha à mente...
Mas a memória do extinto Aqui e Agora lhe fez lembrar do Gil Gomes, guardava na lembrança várias histórias suas mas uma em especial lhe chamou a atenção na época, e se ela fizesse aquilo? Por quê não?
-O desgraçado vai morrer dormindo, nem vai sentir dor.
Resoluta entrou no quarto com o machado em riste, é agora ou nunca, pensou, pulou rapidamente na cama, calculou a distância, machado o mais alto possível, em seguida soltou a pancada com toda a força que tinha, Almir não soltou um gemido sequer, tentou puxar o machado de volta mas não conseguiu, como se a ferramenta agora fizesse parte do seu crânio, com nojo pulou fora da cama, em seguida ligou a luz e apreciou o espetáculo.
Agora era executar a segunda parte do plano...
Deixou passar um dia, dois pra ser exato, findo , se apresentou na delegacia de polícia.
Declarou ao delegado ou mais especificamente ao escrivão de polícia que a atendeu o sumiço do seu marido Almir. Almir dos Santos Neves.
Todas as diligências da polícia deram em nada, o morro foi varrido de cima abaixo, toda a comunidade da favelinha São Luiz idem, ninguém sabia onde estava Almir, seus ajudantes de ordem foram chamados a depor, mas tava na cara que eles não sabiam de nada.
Na cidade de Praia Grande, disseram que alguém o avistara e que quando interpelado, fugira depressa, mas no final de contas era só alguém parecido com ele.
Semanas, meses se passaram, quando a polícia ameaçava esquecer do caso, Silene baixava no 95ª dp e exigia providências, seu marido não podia simplesmente ter desaparecido assim do nada!...
Mas a verdade é que a polícia há muito desistira do caso, segundo o delegado Paranhos, não valia a pena gastar dinheiro do contribuinte com um sujeito como aquele, que só fazia peso na Terra. ‘E ainda batia na esposa, ela que se desse por satisfeita’.
Os únicos que não desistiram de continuar procurando eram os seus irmãos da Bahia. Um deles, o Cosme, o caçula, gastou quase todos os seus recursos numa viagem para o interior do Paraguai, a dica que havia ouvido era quente, Almir teria fugido com uma mulher e estaria vivendo na região do Chaco. Depois dessa furada eles oficialmente também desistiram.
Ainda assim, ao menos uma vez por mês Silene batia cartão na delegacia e sempre ouvia do delegado a mesma coisa, o marido dela haveria de ser achado, passasse o tempo que fosse.
Passado dois anos as visitas de Silene à delegacia foram rareando cada vez mais, quando muito ela aparecia nos finais de dezembro, depois disso a cada dois anos, a última vez que ela aparecera na delegacia já tinha pelo menos 3 anos, era o final de 2015, o delegado quase tomou um susto ao vê-la e de novo ela teve a mesma resposta, ou seja nenhuma novidade, Almir tinha sido literalmente obliterado da Terra.
Silene sentiu que a partir daquele momento nenhuma suspeita pairaria sobre ela e decidiu que a partir daquele dia nunca mais pisaria naquela delegacia. E já não era sem tempo, pois o ano de 2016 foi o ano que a indústria de refrigerante Frutty, uma marca de refrigerantes populares na região, proprietária de parte do morro onde Silene morava ganhara na justiça a ação de despejo contra os moradores daquele lugar, a ação já se estendia há quase 10 anos, mas os moradores do morro foram avisados a tempo e tudo transcorreu de forma muito tranquila, com a prefeitura inclusive conseguindo transferir algumas famílias para abrigos temporários, a única coisa que Silene exigiu era que a prefeitura ao menos pagasse sua passagem de volta para Minas e foi o que conseguiu, não queria mais saber de São Paulo, dinheiro recebido, não tardou em voltar pra sua amada Santo Antônio do Retiro no Estado de Minas Gerais quase divisa com o sul da Bahia.
Eis que é finda a história de Silene ou não...
Epílogo
A empresa Frutty contratou uma empresa de demolição e terraplenagem, e toda aquela barriga de morro onde Silene morara daria lugar à uma das novas filiais da indústria de envasados, a promessa é de que todos ali em volta no morro, sairiam ganhando, pois emprego é que não faltaria, então em poucos dias tudo ali veio abaixo, os barracos de paredes frágeis não resistiram às potentes bolas de ferro, às imensas demolidoras e aos tratores com escavadeiras que vinham raspando e deixando tudo liso atrás, ninguém reparou mas em meio à toda aquela balbúrdia, no ponto onde ficava o barraco da Silene, ossos muito alvos se espalharam em meio à poeira da demolição, misturados a cacos de telha amianto, blocos azuis de cimento, pedaços de madeira carcomidos, ninguém reparou quando foram jogados em uma das caçambas em meio a todo aquela entulheira dos diabos.
De longe, Silene da sua minúscula cidadezinha mineira onde há pouco chegara, soubera por meio da ligação de uma amiga do dia que começaria o trabalho das máquinas e aguardou apreensiva; teria cometido o crime perfeito pensou?
Silene relembrou de toda aquela noite, depois de ter matado o seu marido ou companheiro, porque nunca fora casada de fato no papel, como fora trabalhoso para esconder o corpo, teve que afastar vários móveis, o guarda roupa caindo aos pedaços quase se desfez, afastou a cama o máximo que pode, o fato do barraco ter sido construído às pressas era uma vantagem para ela, pois o piso do quarto era um cimentado com rachões em vários pontos, mesmo com uma pequena marreta que pegara na caixa de ferramentas do agora finado marido, não fora difícil quebrar em pouco tempo aquele piso oco, o mais difícil no final das contas fora cavoucar toda aquela terra socada e a cova não poderia ser rasa pensou, pois morria de medo do defunto começar a feder, ou de algum cachorro cheirar onde não devia, mas Silene se entregou com tamanha tenacidade àquela macabra empreitada que antes mesmo do dia amanhecer ela se dera por satisfeita com o trabalho por ela executado, tudo lindamente cimentado, cama de volta ao lugar, nada poderia gerar desconfianças e sendo assim poderia ter dormido ainda por muito anos a mais na cama em cima do corpo do marido se não fosse a tal empresa que ganhara a ação de despejo, lembrou que tal qual a mulher do causo do Gil Gomes nunca havia se dado ao trabalho de ter medo de assombração de qualquer coisa que fosse, tinha medo sim do Almir quando ele era vivo, depois de morto, nunca mais. O único momento aliás que agora ela lembrava de realmente ter tido medo foi na vez que em que um policial fora ao seu barraco atrás de mais informações do Almir e parecera a Silene e ela era capaz de jurar isso, que em um breve momento quando a conversa girava de onde possivelmente Almir estaria, ela percebera um sorriso zombeteiro como de alguém que acaba de descobrir um segredo, dava pra ver, parecia que as pupilas do olho do policial iam de um lado para o outro apontando a direção do quarto, ela sentiu até um breve arrepio; mas no final das contas ele se despediu dela e desejou paz e ela nunca mais o viu;
Por um breve momento desejou retornar, nem que fosse por um instante, nem que fosse para olhar para uma das últimas cicatrizes, aquela em que Almir apagara um cigarro de Derby no pulso até o fim e olhasse para o morro agora novo e reconstruído e dissesse bem alto sem medo, "nunca mais"!