A puxada para a vida
A puxada para a vida (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
O luxo e a ostentação são sinônimos para a família de Manuela. Ela, com seus dezenove anos. Rica. Vaidosa. Trajando lindas roupas da época dos anos cinquenta. Frequentava os melhores lugares da sociedade. Tinha alguns interessados, mas o casamento ainda não estava nos planos da jovem. Gostava de trabalhar no campo, pois o pai era proprietário de cinco fazendas produtivas e várias cabeças de bois para engorda. A mãe era herdeira de mais três fazendas recebidas de herança da família. Única filha. Além das fazendas, muito dinheiro, muita joia e muito luxo.
Manuela estudava e queria fazer o curso de engenharia agrônoma. No ano seguinte, já estava tudo preparado para morar na cidade vizinha para ser agrônoma. Depois de formada, iria assumir a administração dos bens da família.
João Pedro era um rapaz muito tímido. Pobre, a família passando muitas dificuldades financeiras, sustentava-se no serviço de coveiro arranjado pelo prefeito da cidade. Fazia outros serviços para reforçar o orçamento. Era estudioso e sendo o primeiro aluno do colégio. Fazia os estudos à noite e do baixo orçamento ainda reservava algum dinheiro para estudar. O sonho era ser professor de Biologia. A família sendo pobre e ele o único filho. Órfão do pai muito cedo, ele se virava nos serviços e nos estudos. Muito honesto. Conta-se que há alguns meses ele saia do cemitério e queria andar rápido para chegar em casa. Tomaria um banho, jantaria e iria para o colégio. Tinha prova de inglês. Assim que chegou em casa, uma forte chuva caiu sobre a cidade. O casebre em que morava sofreu bastante as consequências da chuva. Uma parte do telhado de seu quarto caiu. Com os vizinhos, ele arrumou lonas plásticas e improvisou um telhado. Ficou triste, porque não conseguiu chegar a tempo da prova. De cabeça baixa, aproximou-se da igreja e lá ficou por algum tempo. Rezava. Nas orações, pedia a Deus que lhe desse um pouco mais de dinheiro para trocar o telhado da casa, pois o salário da prefeitura estava atrasado naquele mês. Por algum tempo, ficou ali rezando. Quando foi embora, perto da esquina, deparou-se com algo diferente no chão. Aproximando com muita calma, ele viu uma carteira com muito dinheiro. Tinha até um par de alianças em ouro maciço. Apanhou a carteira, colocou-a dentro do saquinho de plástico onde estava o material escolar e se dirigiu para a casa. Contou para a mãe sobre não ter chegado às aulas. Comentou que esteve por algum tempo na igreja e quando retornava para a casa encontrou a carteira. Mostrou-lhe e falou que teria que devolvê-la ao dono. Aquilo não lhe pertencia. Ficou acordado praticamente à noite toda. Revirando a carteira, logo achou o primeiro nome do dono. A carteira pertencia a um juiz de direito que morava na cidade vizinha. Arranjou uma bicicleta emprestada e logo saiu na madrugada indo à residência do juiz.
O sol já nascia quando o franzino coveiro foi logo chamando pelo nome da autoridade. Não o conhecendo, o magistrado entrava no automóvel, mas pela insistência do rapaz perdeu alguns minutos. O jovem lhe entregou a carteira e contou-lhe o que aconteceu. Disse que não mexeu em nada do que ali estava. Mencionou que era paupérrimo, mas tinha caráter e honestidade. Sabia conviver com o pouco, mas este pouco lhe tornava muito.
Admirado com a honestidade do jovem, o juiz queria-lhe dar recompensa, mas ele se recusou. Explicou que estava fazendo o cumprimento da obrigação. Nada tinha que pagar por isso. Foi agraciado com o belo café da manhã e a carona de volta para casa.
Outros fatos também sobre a honestidade dele foram relatados por mais pessoas. Encontrava dinheiro e pertences de pessoas e logo descobria de quem pertenciam. Devolvia e sentia-se o peso da consciência ser muito leve, pois dormindo no casebre com telhado de lona, ele se sentia feliz e a cabeça era posta no travesseiro com dignidade.
Manuela despertava interesse em vários rapazes da cidade. Muito bonita, inteligente, meiga, corpo bem trabalhado pela natureza, ela tinha algum olhar diferente quando avistava o coveiro. A idade dos dois era semelhante. Tinham a mesma idade. Quando a via caminhando pela rua indo para a escola, sempre parava para conversar. Muitas vezes ele ensinava algum exercício escolar para a jovem, que era protegida pela babá dela, uma senhora mais velha, mas muito radical. Muitas vezes queria afastar o coveiro dela, mas ela insistia em ficar.
Em uma manhã de domingo, soou a notícia de que Manuela havia perecido. Estava bem na noite anterior. Sofreu uma crise de desmaio e não mais voltou. A cidade ficou toda apavorada. Muitos diziam como uma linda jovem morrer assim tão rápido. A única herdeira do império dos mais ricos da região.
O velório foi muito bem preparado. A urna mortífera foi comprada na capital e chegou de avião na cidade vizinha. Contratou-se uma costureira para fazer o mais lindo e alvo vestido para o sepultamento. Manicure e cabelereira foram contratadas para a última maquiagem da menina. Os sapatos foram feitos exclusivamente. Enfim, tudo de bom e do melhor.
O velório foi realizado na igreja, pois a influência da família era grande. O corpo da jovem ficou muito bem arrumado dentro da urna. Penteada e maquiada, com várias joias de ouro que foram ali colocadas. Brinco de ouro maciço, colar de ouro, anéis, pulseiras, enfim, boa parte das joias da família estava ali.
Após a missa de corpo presente, discurso por parte de políticos, padres, pastores, diretor e professores da escola onde ela estudava, colegas de escola, seguiu o cortejo para o sepultamento. A tarde já findava quando o coveiro acabou de colocar o último tijolo na sepultura.
Todos se retiraram. Somente ficou ali o coveiro. Neste dia, não haveria aula em razão de luto pela morte da jovem. Ele, muito cansado, resolveu fechar o portão e lá ficar, pois queria estudar um pouco e aproveitar a tarde.
Quando se preparava para a saída, a mente pedia para ir olhar a sepultura, pois algo lhe dizia estar errado. Desfez da parede do jazigo. Abriu a urna e lá estava a linda jovem, toda bonita, cheia de joias em ouro maciço. Na mente, ele vendo todo aquele ouro, imaginava que poderia fazer uma bela casa para ele e sua mãe. Era errado furtar parte daquele ouro ali. Poderia imaginar que seria um tesouro que algum arqueólogo descobrisse no futuro. Não se confortava em ver a amiga presa ali dentro do caixão, sem vida, sem futuro. Ela que sonhava em ser agrônoma, porém estava ali morta, sem vida, sem sonhos, sem amor... Por algum tempo ficou olhado, mas sua honestidade era tão grande que dizia que o ouro era dela. Ele, algum dia, tinha certeza de que reformaria a casa dele e da mãe com os recursos ganhos honestamente. Ele jamais precisaria furtar joias para sanar os problemas. Estendendo a mão em direção da jovem, ficou segurando a mão dela por algum tempo. Chorou por algum tempo e disse em voz alta que a amava. Algumas lágrimas caíram por sobre o corpo da jovem. Disse que a situação financeira estava difícil. Ele poderia furtar as joias, mas sempre foi honesto. As joias que você leva são suas, pertencem a você mesma.
Quando enxugou as lágrimas, retirando a mão serenamente e dizendo para descansar eternamente, sua mão ficou presa entre as mãos dela, pois pulseiras e anéis impediam que ele retirasse a mão sem atrapalhar o formato do corpo. Tentou várias vezes e nada. Pensou em usar a força, mas atrapalharia o corpo. Então, puxou com toda força imaginando que já estava morta e se atrapalhasse o corpo não tinha problema. Assim o fez. Puxou com toda força e ouviu um gemido. Conseguiu livrar-se do impedimento e já com a mão livre, percebeu que a moça respirava. Puxou-lhe algumas vezes até que ela abrisse os olhos. Ele, rapidamente, tirou o caixão do jazigo colocando-o na área livre. Mais uma vez, ele a sacudiu imediatamente. Ela acordou. Ficou apavorada com o que havia acontecido, mas logo sentiu a presença do coveiro e este lhe contou tudo.
Saíram os dois juntos do cemitério. Logo, eles foram até a delegacia e dali para a residência dos pais dela, que ficaram muito felizes em vê-la viva. O coveiro contou tudo, inclusive a ideia de pegar dois anéis para vender e reformar a casa, mas sua honestidade não lhe deixou. Chorou e pedia arrependimento. Foi recebido como homem digno. A moça pediu permissão para namorar com o coveiro, pois ele era o amor de sua vida. Namoram, estudaram, ficaram noivos e casaram, levando a mãe dele para morar na sede da fazenda junto com os pais dela. Formaram em agronomia e administram as fazendas juntos.