A Garganta Do Lobo
"Este é um texto importante pra mim. Esta foi minha primeira história, escrita em 2013. Tem sido um longo caminho desde então..."
Edgar Lins
Tudo aconteceu muito rápido.
Eu estava dormindo com a cabeça encostada no vidro da janela do ônibus e mal abri os olhos quando pude ver que o motoqueiro não teve chance alguma, sem dar nenhum tipo de alerta a van com o nome “ESCOLAR” pintado nas laterais virou bruscamente para a faixa à sua esquerda, bloqueando o tão conhecido corredor, onde motos transitam a maior parte do tempo. A moto que vinha em alta velocidade se chocou na traseira do veículo lotado de criancinhas, o impacto arremessou o condutor, que tentou desviar em um último momento virando à direita, com o corpo rodopiando para debaixo de um caminhão.
O som foi horrível. Lembrou o de uma daquelas bombas juninas que custam um olho da cara e que você guarda pra acender na comemoração daquele gol no finzinho do segundo tempo, de preferência na porta daquele vizinho sacana. Explodiu.
Mas ao invés de gritos de comemoração o que veio depois do estrondo foram os gritos e exclamações de pânico de pessoas que passavam nos carros e pelas calçadas, pessoas que assim como eu viram a enorme poça vermelha que se espalhava sob os pneus do caminhão, um rastro de sangue e massa encefálica de um ser humano que a menos de 1 minuto estava vivo e certamente planejava o futuro em cima de sua moto, que sentia o vento suave e agora nada mais sentia, alguém que já não existia...
Aquilo acabou com o resto do meu dia. Fiquei pensando em como a vida era frágil, como planejamos e construímos sobre um enorme monte de areia. Pensamos na possibilidade da morte, mas sempre como aquela hora em que podemos finalmente relembrar todos os bons momentos, rever pessoas há tanto esquecidas, passear pelas ruas da infância, agradecer àqueles que não agradecemos, perdoar os que nos machucaram e nos despedir dos que amamos... pra só então fechar os olhos para o desconhecido... Mas e quando a morte nos abraça à força? Quando nosso castelo de areia desmorona percebemos que nunca estamos verdadeiramente prontos, essa é a verdade.
Morrer sempre foi e sempre será inaceitável para o Homem. Talvez, não morrer seja mais desejado pela maioria do que viver pra sempre, o que certamente são coisas bem distintas.
Eu sabia bem o quanto a morte podia influenciar uma vida. Havia crescido com essa certeza desde que aos 6 anos descobri que meu papai astronauta não estava desbravando a galáxia em busca de vilões estelares como minha mãe sempre me dissera, mas sim enterrado no fundo da “Garganta do Lobo”.
A Garganta do Lobo era o lugar mais temido por todas as crianças da pequena vila de agricultores em que cresci. Histórias de fantasmas e espíritos giravam em torno do lugar. Este, ficava a mais ou menos 1 km do vilarejo esquecido, em uma área geográfica de chapadas e planaltos. Tratava-se de um penhasco com rochas acinzentadas, algumas dessas com formatos pontiagudos que lembravam o formato de uma enorme boca, de onde vinha seu nome. Alguns afirmavam que o nome vinha da presença ainda que rara de lobos-guará na região. Da beira do penhasco era possível contemplar uma imagem surreal de uma grande extensão de mata nativa, com frondosas árvores de um verde único, a neblina suave embaçando o voo dos pássaros e um brilho refletido sobre a superfície de um rio que serpenteava por entre o labirinto intocado que se intensificava sob o sol da tarde, tudo isso de um ponto de vista digno de um mirante, da ponta de um mergulho de aproximadamente 600 metros. Era impossível imaginar que alguém pudesse querer deixar de existir observando aquela expressão perfeita de equilíbrio e mistério. Só entendi o porquê da alcunha de local sombrio criado por mães protetoras quando me tornei adulto e percebi que nenhuma criança resistiria àquele lugar mágico e mortal.
Mas meu pai, pacato filho da terra, surpreendeu a todos. Pulou na Garganta do Lobo, mas antes deixou um bilhete e uma jovem esposa grávida e sem expectativas. Pulou aparentemente por vontade própria, ainda que minha mãe e minha avó tivessem deixado esse mundo afirmando que ele fora assassinado, sabe-se lá por quem, já que no tal bilhete ele deixava bastante claro que “pularia pra saber a verdade”. Nunca soube o real conteúdo desse bilhete, apenas o que acharam melhor que eu soubesse.
Então cresci querendo saber qual era essa verdade. Por que ele havia pulado? As perguntas ficaram sem respostas, mas minha vida passou a depender disso. O que seria tão importante pra se saber que pudesse valer um sacrifício tão insano? Teria sido um sacrifício?
Se existe algo que pode te fazer se pôr no lugar de alguém e tentar sentir o que se passou com ela é estar sob as mesmas circunstâncias. Na época do suposto suicídio meu pai andava um pouco isolado e compenetrado em exaustivas reflexões silenciosas e gestos assustados, regadas à álcool entre outros condutores. Era só o que eu sabia, era a única coisa que lembravam sempre que tocavam no assunto. Problema mental, quem sabe espiritual, a causa ainda que desconhecida parecia sempre levar ao diagnóstico de depressão ou esquizofrenia, embora na época tudo fosse resumido a “viagens de um drogado”.
E foi estando sob as mesmas circunstâncias em que acho que ele esteve que eu me vi à beira do precipício que por tanto tempo evitei. Após uma série de decepções entre voltas e revoltas da vida, acabei perdendo o interesse que me ligava ao plano terreno e um irresistível desejo pelo desconhecido passou a me consumir como uma dúvida corroendo a vontade de saber. Não conseguia sentir-me realizado em nada que fizesse, carecia de forças pra encarar as minhas fraquezas e defeitos, padecia lentamente. A bebida e diversas drogas já não me contavam verdades e eu apenas ouvia a voz dizendo que aquele que deveria ter me ensinado a ser alguém me abandonara... me deixando à mercê de porcos, sobrevivendo com quase nada e aprendendo desde cedo a não ser nada... restando apenas um destino repleto de ausência e fracasso... Seria ele o culpado? Seria eu? É uma longa e cansativa história. Não pretendo me estender.
Eu o odiava por isso. Odiava pensar que era o filho de um covarde, alguém que não conseguiu enfrentar os problemas, alguém que foi egoísta o suficiente pra resolver seu drama afundando as vidas inocentes de sua família em lágrimas e dor. Eu queria poder o encarar e despejar todo meu rancor mas sabia que isso jamais seria possível... talvez fosse melhor perdoá-lo, porém isso só seria possível se de alguma maneira eu pudesse entender seus motivos.
Resolvi ir ao lugar onde o destino de mãe e filho fora traçado movido pelas lembranças do quanto ela e eu sofremos, já que estando só minha mãe não mediu esforços pra suprir a falta de um pai, mesmo que pra isso ela tivesse que esgotar até a última reserva de saúde que lhe restava lavando banheiros imundos e trocando fraldas de bebês de casta superior, enfrentando a cidade, vivendo privações inconcebíveis para uma mãe solteira, desgastando seu corpo e seu estoque de sonhos, abrindo mão do que poderia ser dela pelo que poderia ser meu. Devo a ela tudo que restou de bom em mim, seria impossível expor nessas linhas seu real valor. Morreu aos 48 anos de um ataque cardíaco fulminante durante uma festa em família, numa das raras vezes em que se havia algo pra comemorar. Nova na idade, gasta na realidade. Que tremenda ironia... agora que ela descansava o sono dos justos percebia o quanto a vida lhe havia sido injusta. O rio de lágrimas que chorara agora me arrastava por recordações comoventes de um passado desolado...
Às vezes penso se realmente nossa vida poderia ter sido melhor se o homem que jurou sempre a proteger não tivesse feito o que fez. Parece confuso, mas em muitos casos a morte é a melhor maneira de se evitar outros males, dentre eles a morte ainda em vida, a morte do amor próprio, assassinado por pessoas que estão no mundo apenas para causar sofrimento aos seus semelhantes menos conscientes. Talvez seus vícios acabassem nos sufocando e o nosso destino fosse a autodestruição... Seja como for, pensar nele causava mais incertezas do que qualquer outra coisa.
E assim depois de tantos anos lá estava eu, a alguns metros do exato local de onde supostamente meu pai teria se jogado, seguindo trilhas e indicações de populares, pronto para a redenção. Hesitei a princípio encarar a visão assombrosa da imensidão que invadia o horizonte à minha frente, uma cena que poderia ser comparada a um quadro pintado às pressas por algum artista entusiasmado, ansioso por mostrar a todos o quanto era talentoso. Que vista maravilhosa! Não pude conter as lágrimas após momentos de sintonia com minhas convicções, ponderando se minha chegada àquele lugar era o começo de algo que eu não gostaria de conhecer... Não sabia se as consequências seriam ainda mais devastadoras pra minha existência fragilizada.
Aproximei-me o quanto pude da borda do abismo, sentindo um arrepio tenso que subia da região lombar e terminava na nuca, uma sensação de vertigem me impedia de ficar em pé, então quase de cócoras, com as duas mãos no chão segurando em arbustos e no mato alto, cheguei ao ponto mais próximo possível da beira do penhasco, de forma que pude com o coração aos pulos, olhar para o buraco negro que parecia existir no fundo do precipício por entre a mata virgem.
Eu tremia com o vento forte que soprava bravamente como se quisesse me expulsar dali antes que eu acabasse me complicando. Respirei fundo e decidi que iria ficar e deixar que meus instintos me guiassem. Esperava encontrar as respostas que a tanto povoavam minhas noites sobressaltadas, movidas por sonhos inquietantes onde eu podia reconhecer o convite feito pela curiosidade. Me virei com cautela pra direita e embolei para um pouco mais distante daquelas pedras afiadas quando percebi que algo me observava por detrás de um arbusto, parecia curioso.
Era um garoto, aparentava uns 10 anos. Estava descalço, cabelo desgrenhado, a pele morena avermelhada pelo excesso de sol, vestia jeans azul envelhecido com manchas de água sanitária e uma camiseta regata preta com alguns furos na frente. Seus olhos me fitaram. Algo me tocou.
Fiquei em silêncio, apenas o observando, esperando quem sabe que ele sumisse como uma nuvem de poeira, daí então eu teria certeza da minha insanidade, pois era impossível para um garoto andar a apenas um palmo da queda fatal sem demonstrar receio algum. Ele sorria.
Se aproximou um pouco e falou tímido.
— Cê tá com medo de cair? — disse isso de costas pra o abismo e com um dedo no nariz.
— Aqui não é um bom lugar pra brincar, vamos, saia daí! —, falei fazendo um aceno com a mão como que o apressando.
— Não vim brincar, e é normal sentir medo, quase todos que chegam aqui assim como ocê acabam desistino de pular, se acovardam — ao falar isso me olhou nos olhos como se aguardasse uma resposta.
Encarei o pequeno ser com olhos de surpresa. Como seria possível? Ninguém sabia das minhas intenções, e da maneira como ele falou me pareceu que outros já haviam passado pelo mesmo conflito que eu ali, na boca do abismo.
— Menino, não conheço você e quero que se afaste daí, cê quer cair é? Quer morrer? — falei e me desloquei ainda mais pra longe do penhasco, fitei o garoto, não estava com medo dele... temia por sua segurança. Não estava com medo...
Nesse momento ele andou dois passos para trás e se sentou numa pedra, olhou com semblante de satisfação a imagem estonteante daquele lugar.
— Não quer me contar por que que tu tá aqui não? — me fez a pergunta com um sorriso inocente, ainda que sua expressão nada tivesse de uma criança comum.
— Escute, cresci aqui perto na vila, conheço tudo por aqui, não quero conversar, agora vamos, venha — falei isso estendendo minha mão, que pareceu trêmula, para que ele segurasse, com a intenção de afastá-lo de uma queda iminente.
Como ele não pareceu dar a mínima importância resolvi tomar meu lugar de adulto maduro, afinal ele era só um moleque que certamente morava por perto e provavelmente conhecia bem o lugar, o que explicaria tamanha coragem, ou melhor, tamanha falta de noção do perigo, e arrisquei um diálogo simples, mudando de estratégia.
— Você vem sempre aqui? Acha bonita a vista? — falei com ar despreocupado.
— Não venho sempre, faz muito tempo desde a última vez... gosto de vir quando preciso ajudar... — disse atirando pequenas pedrinhas pelo precipício vertiginoso.
Esperava qualquer resposta menos a que ouvi, estava ficando louco ou aquele garoto estava falando como um adulto consciente?
Reparei que ele segurava algo que me pareceu ser um relógio analógico de pulso sem as pulseiras, olhava o horizonte e parecia pensar em algo distante.
— Acho que seu pai sabia que cê viria um dia — ele falou de maneira inesperada.
Ao ouvir isso senti meu coração disparar, meu sangue pareceu tornar-se sólido e instantaneamente meus movimentos cessaram. Fiquei como que hipnotizado olhando pra o garoto que continuava distraído com o relógio em suas mãos. Olhava-o com concentração, tocava a lente. Os ponteiros pareciam chamar-lhe a atenção.
Quero deixar claro que ainda não tinha certeza sobre a natureza daquele “ser” que me parecia um garoto, cresci ouvindo muitas histórias sobre o lugar onde estava e certamente considerava ainda mais a possibilidade de estar vivenciando algo sobrenatural. Algo que eu não entenderia...
— O que você ‘é’ e o que quer de mim? Diga logo! — falei isso com total convicção de que fosse lá o que ele fosse, me seria sincero. Ou talvez me enganasse. Não estava com medo...
— Sou o que cê quer que eu seja... sou aquilo que cê achou que encontraria aqui... Eu sou a tua verdade... — olhou-me nos olhos, os seus eram claros, lembravam flores do cerrado...
Não conseguia raciocinar com clareza, mas sabia que perder o controle não era o mais indicado tendo em vista que o motivo de eu estar ali era que já não queria mais viver se não soubesse a verdade sobre a história que determinou minha vida, ou pelo menos eu acreditava que sim. Estava decidido a morrer por alguma explicação para tantos desencontros em minha estrada.
Respirei fundo, estava ofegante, a adrenalina invadia meu cérebro. Precisava pensar mas resolvi confiar em minha intuição.
— Quero que me prove que posso acreditar no que vai falar à partir de agora, seja você quem for... — disse encarando-o não mais como sendo um garoto, enfrentando o desejo de sucumbir ao medo.
— Suas dúvidas alimentam minha responsabilidade, não pense que verdades são entregues de graça meu jovem — disse levantando-se da pedra e caminhando lentamente em minha direção, eu que ainda me achava agachado como num reflexo de autoproteção. Meu jovem... Por que ele falou assim? Meu corpo tremia.
A palavra verdade nunca esteve tão presente em minha realidade como naquele momento. Pensava em todos os motivos que me fizeram viajar tantos quilômetros da cidade grande em busca de um sentido pra continuar desejando existir num mundo onde as pessoas pareciam anestesiadas pra o sentido real das coisas. Meu pai morreu querendo saber algo, parecia extremamente importante, os detalhes do bilhete nunca me foram revelados e seu conteúdo pareceu sangrar a vida dos que o leram, tamanho o seu teor de desespero. Esperei jamais lê-lo. E agora o estava vivendo.
— Já que parece saber meus motivos, vamos, diga-me algo que eu queira ouvir e aceitarei seus termos pra que me conte o que vim saber de verdade — falei e me pus de pé decidido, como se precisasse vencer uma pressão invisível sobre meus ombros. Tentei parecer desafiador.
— Homens, vocês... Sempre preferem duvidar. Como queira então — colocou o relógio entre as mãos em formato de concha, fechou os olhos, abaixou a cabeça e então continuou suavemente. Sua voz mudou...
— Acreditar só depende de você... talvez o melhor seja não escolher... mas, consegue se lembrar do dia em que um pressentimento, uma sensação inquietante te fez ligar enlouquecidamente pra sua mulher em pleno horário de expediente? Creio que se lembra do que ela alegou pra justificar o fato de não ter atendido suas ligações, chegar tarde em casa com cara de quem havia chorado e ir pra cama cedo, não lembra? — sua voz já não soava como a de uma criança, a voz mais parecia um sussurro distante que reverberava em minha mente, falando de uma maneira que meus ouvidos nada mais podiam ouvir além de suas melodias sombrias...
Pensei rapidamente, estava muito assustado com a profundidade daquele momento que com certeza faria parte de mim dali por diante como uma grande revelação do que sempre me pareceu improvável. Foi muito claro. Lembrei que esse fato havia ocorrido há pouco menos de duas semanas e havia sido motivo de uma das mais acaloradas brigas que havíamos tido nos três anos de nosso farsante casamento. Ela me disse ter ido a uma reunião de negócios em uma cidade do interior que não possuía sinal de celular nem de internet. Uma história bem contada. A cara de choro seria consequência de um fracasso na transação que teria lhe custado uma tão sonhada promoção. Não havia acreditado nela.
— Seu Eu adormecido sabia de toda a verdade o tempo todo, você a viu em seus devaneios enciumados inúmeras vezes. Mesmo com todas as juras e promessas de amor verdadeiro, lamento dizer que ela, sua querida, como a chama... docinho...?, estava sob lençóis encharcados de desejo, suor e outras secreções corporais com seu amável colega de trabalho... o único que você afirmou por tantas vezes ser digno de sua confiança, o único o qual você ousou mostrar sua coleção de revistas eróticas bebendo cerveja escura... Sabe quem é, não sabe? — falou e abriu os olhos que me pareceram totalmente brancos como os de um cego.
Iria desmaiar. Meu corpo pulsava e o calor da tarde pareceu dar lugar a um frio que vinha de dentro pra fora, uma sensação de derrota me envolvia lentamente. Havia meses pensava no declínio de nossa vida amorosa, mas ser traído não estava em minhas possibilidades. A certeza me acertou com um soco de realidade no queixo, me levando a um estado de compreensão similar a um transe. Ele não podia estar errado, eu revivi tudo que ele disse em minha mente, eu desconfiei da traição... eu quis encobrir o óbvio do sábio, sentia que me enganava... Como aquilo podia ser real? Eu sabia de quem ele falava.
— Não posso esquecer — ele continuou — de contar que as lágrimas que denunciaram seu estado moral foram na verdade fruto do arrependimento que ela sentia por te amar tanto a ponto de não te incomodar com fantasias sexuais tão intensas, acredita? De ter que trair o homem que ela um dia tanto desejou, preferindo deixar que você vivesse sua angustiante busca por respostas desprezando-a dia após dia, sendo egoísta e exclusivamente voltado pra o que te fazia bem, sequer se importando com o que ela sentia ou pensava. Ela foi uma de suas vítimas.
Ao ouvir tais palavras percebi que não havia mais nada a fazer a não ser aceitar o que o destino me reservara. Olhei para o garoto com olhos petrificados de terror. Não sentia mais medo. Não sabia o que sentia. Só sabia que ele seria a resposta...
— Preciso saber por que meu pai pulou daqui...— olhei em direção às rochas, os dentes da fera pareciam vorazes.
— O que está disposto a me oferecer por essa tão sonhada verdade? — disse com um leve sorriso amarelado.
— Quero que me liberte... me deixe descansar de toda dor que me foi deixada como herança por ter o sangue de um fracassado! — falei com o peso das palavras arrastando meu orgulho goela à fora, a raiva irrompendo sem pudor.
— Pessoas corajosas e verdadeiramente amantes da vida sabem o verdadeiro valor da liberdade, tantos lutaram e morreram por ela, tantos viveram e viverão sem jamais conhecê-la. Este é um desejo digno do meu tempo, a única coisa que quero é o que sempre peço a todos; eu quero que você pule... Pule pra saber a verdadeira verdade... Mas antes, contarei o que quer saber.
A sugestão pareceu ecoar em minha mente me fazendo ouvir a queda livre chamar meu nome... me convidando pra um último suspiro de felicidade... até que minhas asas falhassem e meu corpo fosse tragado pelo verde da mata virgem, sumindo pra sempre em meio ao seu esplendor...
— Conte-me... e eu o prometo que pularei... — falei e tentei não deixar que as lágrimas escorressem pelo meu rosto vazio. Estava confuso mas não hesitei nas palavras.
— Está feito; as palavras saíram da tua boca; não há mais volta. Vamos então ao que nos interessa — ele então começou com uma espécie de reza sinistra a história que era o centro do mistério ao redor da minha existência. Sentia-me ligado à ela por uma força a qual não saberia explicar. Mesmo sem nunca tê-lo conhecido, meu pai, de alguma forma sua presença estava sempre à espreita, como que vigiando meus passos, ou quem sabe caçoando dos meus tropeços...
A história estava repleta de detalhes os quais não conseguiria recordar agora e que talvez não mereçam destaque para esse enredo tão confuso. Alguns preferi esquecer. Tentarei descrevê-la sob minha melhor perspectiva, tendo em vista que as palavras aqui escritas não podem expressar a maneira como ele, a influência disfarçada de garoto, projetou em todos os meus sentidos e na minha alma, se é que tenho uma, os acontecimentos que ia narrando. Ouvi com os olhos e vi com o coração, mergulhei nas profundezas de um passado distante, deslizando no espaço e no tempo... Nunca lembrarei perfeitamente.
Eis o que me recordo...
“Meu pai não era uma pessoa comum. Não falo do aspecto físico, falo do que preenchia seu corpo franzino típico de garotos do interior, criados com o que a terra oferecia quando bem entendia. Ele guardava uma Essência antiga em seu ser. Percebeu desde cedo, por acaso, que podia ver além do que as pessoas normais enxergavam, havia sido contemplado pela Natureza com um sentido capaz de estabelecer contato com formas que povoam a parte invisível ao olho humano, o mundo mascarado que subsiste das escolhas e desejos feitos pelos primeiros e pelos últimos homens da Terra. Ele via demais. Era mais que intuição. Ele via a Vida... além da barreira da Consciência... ele conheceu SereS...
Esses “SereS”... incognoscíveis... conforme seus interesses, precisavam se alimentar, e a Humanidade fornecia os meios que sustentavam suas existências eternas. Por meio de intervenções dessas forças, de diversas maneiras, seguimos tecendo a mortalha que encobrirá nosso mundo quando o nosso maior bem for apenas uma lembrança. Por meio de influências sobre os nossos vícios e virtudes, o mundo além da carne perpetuaria sua existência ao passo que o Homem seguiria rumo ao fim...
Ele então passou a ter conhecimento de diversos segredos, os guardou até o último instante, se sacrificando, vivenciando momentos que ninguém pode sequer imaginar. Seria impossível exprimir os medos que sentiu ao viver entre dois mundos, sendo tocado pelos dois lados e transformando-se em uma porta entre eles. Através de meu pai incontáveis formas da Essência do Mundo vieram ao nosso lado e semearam suas vontades sobre pessoas que sucumbiram diante do que se alastrava em forma de escolhas e ações. Outros se salvaram. Alimentavam-se dos sentimentos projetados por ele, assim sendo, meu pai servia como um disseminador de influências de acordo com o que sentia com a verdade de seu ser. Seus sentimentos eram como armas. Pessoas ao seu redor influenciadas por tais forças começaram a semear a dor onde antes só havia a paz do campo e seus incontáveis aromas, poucos despertaram e começaram a viver a Vida Verdadeira, os alicerces de sua moralidade foram corrompidos pelo poder de destruição que adquirira sem que pudesse escolher. Não era sua intenção destruir. Ele estava perdido...
Resolveu dar um fim a tamanho sofrimento, procurou uma explicação para seu pesado fardo, buscou na exploração dos sentidos as respostas guardadas nos recantos mais profundos do seu inconsciente, da boca dos homens e dos ‘espíritos’ ouviu direções que eram conflitantes, opiniões que se embaraçavam ainda mais com o turbilhão de incertezas que assolava seu mundo, seu calabouço secreto. Rogou à luz, também pediu às trevas, desejou com a força do seu coração que pudesse haver alguma maneira de libertá-lo da maldição independente do preço a ser pago. Não aguentava assistir sem escolha o teatro oculto que se desenrolava com os infortúnios dos personagens principais, seres humanos movidos como peças de um xadrez, que sequer imaginavam que a verdade era tão assustadora que mesmo com suas possíveis chances de graça, nunca perdia seu lado cruel...”
À medida que o garoto orquestrava a sinfonia de acontecimentos, sentia minha consciência deslocar-se numa passarela de imagens familiares, era como olhar para um negativo de fotografias que me remetiam aos acontecimentos reais.
“No entanto, após muitas derrotas ele descobriu que a única saída para o fim de todo seu drama seria transmitir seu legado ao único filho que estava destinado a ter em toda vida, bastando apenas ver, ouvir, sentir, desejar estar com a criança em qualquer momento de sua existência, o que significava que então jamais poderiam se conhecer sem que o presente funesto fosse transmitido arbitrariamente. Era um paradoxo. Nenhum pai que ame de verdade seu filho permitiria um arranhão sequer a troco de nada em sua pele, quanto mais sentenciar a vida que preencheria o ser que seria seu único herdeiro com a destruição que sua visão agraciada traria consigo. Era uma escolha e tanto.
Mas o desejo da paternidade era o mais poderoso e vivo sentimento que existia no coração de meu pai, simples homem do campo, amante da terra e da arte de cultivá-la, não havia nada mais belo para ele do que ver brotar do solo a vida em seu estado primal. Ele não aceitou a ideia de não poder conviver com o filho tão sonhado, o qual ele conversava todos os dias encostado com a cabeça na enorme barriga de sua amada, minha mãe, contando sobre como juntos passearíamos pelas trilhas secretas da mata próxima ao sítio, como tocaríamos violão juntos assim que meus dedos pequeninos de criança fossem suficientemente fortes para tal, sobre como ele e eu seríamos felizes...
Meu narrador se encontrou pela primeira vez com meu pai ali, na boca do abismo. Nesse dia ele chorava em silêncio, precisando de um consolo que jamais viria, perdido num labirinto formado por tantas indecisões e que agora lhe tirava a única coisa que lhe traria a tão sonhada paz de espírito conseguida através do amor puro. Alimentado por todas as suas incertezas, o “ser’’ que pertencia à natureza ancestral daquele lugar místico seduziu meu pai com propostas tentadoras, provou a ele assim como o fez pra mim que era digno de confiança, pediu seu preço pra que pudesse sarar aquela ferida mortal... Meu pai só precisaria escolher ficar do outro lado do mundo das coisas e dos seres, colocando em risco sua chama imortal para então poder me ver crescer, poder me livrar de um destino cruel. Sob influência dos seus desejos mais sinceros meu pai se despediu com poucas palavras da mulher amada, seu abrigo nas noites de gritos silenciosos. Partiu e no segundo encontro deles, sem pestanejar, fez o que sua força vital o pediu; pulou para a morte com o pensamento na imagem do rosto que ele sabia que um dia veria frente a frente, viu o sorriso de seu amado filho... Haviam prometido a ele o encontro...”
Não podia distinguir o que me acontecia durante tal experiência. As palavras proferidas pela boca do garoto preencheram as lacunas que por tanto tempo me impediram de acreditar na felicidade por meio da entrega. Fugi dos sentimentos verdadeiros sempre por medo de tragar a vontade de viver das pessoas ao meu redor por ser tão egoísta e por ter sempre que culpar alguém por minhas quedas. Talvez a influência do último desejo de meu pai tenha assombrado meus dias desde que me dei conta do que era a vida. Ele queria me conhecer, e só havia um jeito, eu deveria pular; deveria morrer...
— Bom, acho que isso tenha sido o suficiente para que você honre sua palavra — sua expressão enegreceu o semblante infantil que servia como recipiente do que quer que ele fosse de verdade.
— Ele ainda me espera? — perguntei com os olhos voltados pra o chão, parecia ter acordado de um desmaio. Não acreditava que tinha sido real. Mas havia sido...
— Não responderei mais nada, não faz parte do que acordamos, respondi o que você veio saber de verdade, agora cumpra sua parte no acordo! — seu olhar tornou-se inquisidor.
A explosão de pensamentos que estremeceu minhas estruturas me acordou para como eu havia perdido tempo com minhas aflições, como poderia ter vivido melhor sem a presença constante dessa raiva fundida ao desespero por ter que culpar alguém pelo que me tornara. Fui injusto com tantos em minha vida, até mesmo com quem jamais conheci. Identificara-me com o que antes estava envolto pela escuridão em meu inconsciente, a mesma vontade de deixar meu legado a alguém, o desejo de colher meu próprio fruto, cria-lo e vê-lo alimentar e se alimentar do mundo. Éramos iguais. Eu e meu pai. Criador e criação. A vontade que selara o destino de tantas vidas inundou meu corpo com uma maré de planos para o futuro, eu soube então do que queria pra mim; eu queria viver! Viver...
Recuei alguns passos, o garoto me olhou com olhar assustado, ergueu o relógio e o soltou no chão. O crepúsculo banhava o horizonte com cores mortas, cores que resistiam até o último momento à escuridão que se aproximava impiedosa. Eu podia sentir que minha decisão traria consequências irrevogáveis, mas numa atitude instintiva e decidida virei-me na direção oposta ao precipício e parti em descontrolada corrida, tropeçando em arbustos secos e arranhando mãos, braços e pernas em espinhos pelo chão. Corri. Fugi.
Esperei ganhar espaço em campo aberto, corri o mais rápido que pude com minhas pernas pesando toneladas, e só então olhei para trás. Vi que o garoto continuava parado a me observar, a cara era de uma criança decepcionada com seu presente de aniversário, pude sentir em seu olhar que não seria tão simples pra mim fugir do que havia se iniciado ali... Foi então que tranquilamente ele se voltou para a face do abismo e... pulou... emitindo um som que me pareceu um grito de dor e angústia... Uma ave negra alçou voo pouco depois e subiu até sumir...
Fiquei parado, atônito, pensei experimentar um alívio por não vê-lo mais. Pisquei os olhos. Subitamente, senti uma dor excruciante em meu tornozelo esquerdo, próxima ao tendão de Aquiles. Caí de joelhos levando a mão ao local e pude sentir o sangue quente que escorria de dois pequeninos orifícios. Contorcido pela falta de ar deixei-me cair sobre a vegetação seca e quando meus olhos perdiam as imagens que captavam, ainda pude ver quem me abatera sumindo nas sombras que se intensificavam: uma serpente. Seus olhos eram vermelhos...
Acordei num quarto que lembrou minha infância. Atordoado, olhei ao redor e vi móveis simples sob a penumbra, um luar pulsante entrava pela janela. Estava me sentindo completamente esgotado e um latejar em meu tornozelo me fez lembrar do que acontecera. Acontecera. Acontecera...
Fui encontrado agonizante por nativos e medicado com o antídoto antes que fosse tarde demais. Eles me salvaram. Fiquei inconsciente por dois dias mas agora sentia apenas as sequelas do que ainda não conseguia acreditar que vivera, sim, era verdade, havia sim motivos pra recomeçar. Jamais contei a alguém o que vivi naquela tarde, guardei comigo toda a grandeza do que havia feito, sentia que havia enganado o destino... o destino...
Minha vida parecia ter resgatado o sentido e a lembrança do ocorrido naquele lugar misterioso me fez recriar-me a partir do nada, consertando minhas falhas mais intrínsecas e lavando meu ser de todos os impulsos sórdidos que me seguiram por tanto tempo. Divorciei-me sem ressentimentos, constituí uma nova família e depositei com toda a minha fé na vida a esperança de renovação através do olhar inocente de um pequeno ser dotado de tantas responsabilidades, inclusive de me trazer libertação; queria ser pai, queria ser tão bom quanto o que não pude ter. Após inúmeras tentativas e com determinação inabalável conseguimos conceber vida onde antes só havia um sonho. Agora erámos o sonho. Eu amava. Amava o que vivia. Amava minha família. Meu falso centro se desfizera...
Cresci ao lado de meu filho e testemunhei com meus próprios olhos a mudança que a pureza existente somente no coração intocado pela verdade pode causar, aprendi com o amor e o afeto a ser melhor e por 5 anos convivi ao lado da única razão pra continuar rastejando nesse mundo agonizante. Quis ser e tentei ser o melhor que pude. Fiz muito mais do que o meu melhor. Mas sou eu quem acha...
Certo dia, enquanto comemorávamos felizes a chegada da Páscoa durante uma festa anual em uma cidade próxima, distraí-me por alguns segundos e perdi meu filho de vista, sua mãe e eu o procuramos em meio a uma multidão de pais sorridentes e filhos barulhentos, mas não conseguíamos achar nenhum sinal dele.
Um sentimento familiar acariciou minhas lembranças e eu pude por um breve instante ver como um flash a imagem daquelas rochas pontiagudas que já haviam testemunhado tantas coisas. Respirei fundo e procurei manter-me focado em meu objetivo, precisava afastar do pensamento meu maior medo... não queria sequer pensar que minha escolha naquele fatídico dia poderia estar me perseguindo agora, temores adormecidos pareciam haver despertado das profundezas do esquecimento.
Foi com imensa alegria que vi, a pouco menos de 30 metros de onde estávamos, aqueles cabelos encaracolados inconfundíveis, meu filho estava de costas e olhava pra um grupo de crianças que brincava de um tipo de jogo onde era preciso passar o balão cheio de água para o jogador ao lado, estando eles em círculo, antes que a música parasse de tocar. Senti um alívio indescritível, meus receios se dissiparam por um segundo. Em seguida vi que ao cessar da música um garoto estendeu o balão em sua direção, fazendo com que ele esticasse os braços para pegá-lo.
Nossos olhares se cruzaram e um calafrio percorreu todo meu corpo num reflexo imediato ao choque. O garoto que estendera o balão e tomara meu filho pelas mãos vestia jeans azul e uma camisa regata preta com furos na frente, seu cabelo desgrenhado estava um pouco mais cheio, porém sua expressão era inesquecível... era o mesmo daquele dia... pra ele não havia o tempo, ele era o Tempo... Seus olhos que antes lembraram-me flores do cerrado agora refletiam um brilho de velas trepidantes. Ele viera... Viera cobrar-me a dívida! O Tempo!
Corri apavorado, mas as pessoas movidas pela música e pelas brincadeiras em grupo bloquearam minha passagem, tentei desviar, mas continuei esbarrando em todos à minha frente, desgovernado e com a sensação de que iria desmaiar antes de chegar até eles, quanto mais me esforçava parecia que não conseguiria alcançá-los. O desespero tomou conta de mim quando notei que os perderia em meio à multidão que continuava alheia ao meu pavor explícito.
Eles seguiram de mãos dadas como irmãos contentes e pareciam conversar animadamente enquanto se distanciavam, tentei gritar mas minha voz não passou de um soluço embargado pelo pânico de estar vivendo um pesadelo. Antes de virarem em uma das ruas o garoto me olhou, curvou-se e disse algo ao meu filho, que se virou e me acenou em despedida. Sua expressão era triste... Não consegui evitar! Não podia me mover, estiquei minhas mãos aos prantos mas era tarde demais, eles haviam sumido pelo mar de gente. Sumido para sempre...
Não preciso dizer que seu desaparecimento foi o estopim pra uma série de demolições emocionais em minha concepção de justiça terrena e divina, me recusava a aceitar tamanho desprezo por minha dignidade vindo de um plano superior onde a vida perdera o valor e a morte tornara-se a única alternativa palpável. Seja como for eu havia falhado, fui egoísta em todos os momentos e paguei por escolher o meu caminho subjugando o mundo de possibilidades que a alma esconde... A verdade tem sempre seu preço...
A Garganta do Lobo se alimentou de sonhos e desilusões através dos tempos, comprou a liberdade de muitos, aprisionou os caminhos de tantos outros. Depois de perder tudo que poderia ter tido assim como tudo que um dia tive, ela e eu ainda não havíamos perdido a esperança de estreitarmos nossos verdadeiros laços, sabíamos que não era possível reescrever com mentiras e negações o caminho de uma vida. As verdades não nos são entregues de graça, cabe a cada um de nós termos certeza do que estamos dispostos a oferecer, e o mais importante, o que vale realmente à pena saber...
Se você que estiver lendo esse relato não conseguir entender o que realmente me aconteceu não se sinta culpado, existem coisas nessa vida que só podem ser vistas com os olhos da experiência. Talvez não o tenha contado bem. Por outro lado, se você entendeu de alguma forma esse escrito, pode estar se perguntando se ele é uma despedida assim como o pequeno bilhete de meu pai...
Prefiro que tire suas conclusões, não posso te pedir nada, na verdade te agradeço, mas nesse exato momento em que encerro minha história, estou ouvindo alguém chamar-me pelo nome... é uma voz de criança... uma voz familiar que parece brincar alegremente com alguém que não conheço, mas que quer me conhecer... quer seu encontro...
E essa voz vem do fundo... do fundo das entranhas do lobo... do abismo que me derrotou uma vez mas que agora será vencido... Porque sei o que quero, tudo que mais espero...
Quero abraçá-los, e ouvir deles, a verdadeira verdade...