ASAS BRANCAS E NEGRAS
"Realmente, o mundo está cheio de perigos, mas ainda há muita coisa bonita" (J.R.R. TOLKIEN)
1
Em longo prazo, acontecimentos aparentemente insignificantes são agentes de mudanças fundamentais em nossas vidas, como pequenas ondulações que surgem de uma pedra lançada num lago.
Foi num dia quente de férias de Julho que eu descobri por acaso o Lago das Garças. Perseguia uma borboleta azul e preta que passou voando em frente a minha casa. Pretendia criá-la numa garrafa PET de Coca-Cola — algo que provavelmente não daria certo —, mas acabei indo parar no lago... e, por isso, nunca a capturei.
Meu maior passatempo, por volta dos sete anos de idade, era observar e colecionar insetos. A borboleta daria um belo troféu para mostrar aos gêmeos, meus amigos Jorge e João, quando eles voltassem da escola — naquele dia eu não fora à aula porque minha mãe assim decidira (nunca soube o real motivo, se é que havia realmente um). Porém, o inseto deixou de me parecer tão interessante quando encontrei o lago.
Eu morava no bairro de Longa Vista, região metropolitana do Recife, um subúrbio imprensado entre a esquecida Estância, Jardim São Paulo e Areias. Era jovem e nunca tinha ido a um local mais longe que a escola ou a igreja que frequentava. Além dos filmes ou imagens em livros, nunca tinha visto uma paisagem como aquela. Nunca fora nem mesmo à praia — que tantos falavam, mas me parecia na época tão distante quanto Marte, embora, mais tarde, viesse a descobrir que não ficava a mais de nove quilômetros da porta da minha casa. Nunca havia feito o que alguns chamam de "entrar em contato com a natureza". Se isso existe (se é que não entramos em contato com ela desde o momento que passamos a existir neste mundo e com ela permanecemos inevitavelmente interligados até o deixarmos), aquela foi a minha primeira vez.
Era uma pequena bacia d'água. Assim creio, agora que já vivi o bastante para descobrir que certas coisas, que nos pareciam colossais quando criança, revelam-se ordinárias e diminutas quando crescemos e as comparamos com as imagens que temos na memória. Na época, me parecia uma enorme lagoa, do tamanho do universo inteiro, onde eu poderia içar as velas de um grande navio e navegar naquelas insondáveis águas azuis, salpicadas de branco com inúmeras garças e reflexos das nuvens no céu.
Fiquei um bom tempo observando tudo aquilo, surpreso e maravilhado. Perguntava-me como nunca tinha visto aves como aquelas antes e se elas estavam relativamente tão perto da minha casa. Como, aliás, meus pais, meus amigos, ou os pais deles, nunca tinham me falado daquilo? Seria possível que eu fosse mesmo o primeiro a descobrir aquele lugar? Impressionava-me o fato de que as pessoas podiam viver suas vidas normalmente, dia a dia, tão próximas dali, mas sem jamais visitar, nem sequer mencionar, um lugar que tinha o poder de me fazer sentir tão bem.
Porque estava mais que evidente para mim que aquele era um lugar especial. E daquele dia em diante fiz dele o Meu Lugar Especial. Não o mantive em segredo, claro; mostrei aos gêmeos e o mencionei aos meus pais mais de uma vez. Nenhum deles demonstrou qualquer interesse semelhante ao meu. Meus amigos, no primeiro dia em que os mostrei, dizendo que "tinha feito uma descoberta incrível que eles tinham que ver o mais rápido possível", disseram que passavam por o que chamaram de "aquele monte de lama" sempre que iam visitar a Vovó Rosa, e perguntaram o que é que tinha de tão incrível ali (a ponto de estarmos perdendo um episódio do Pica-Pau em pleno período de férias). Cocei a cabeça, sem saber bem o que dizer.
O que diria? Que aquele lugar fazia eu me sentir tão pequeno e ao mesmo tempo parte de algo tão grande que era impossível explicar aquela sensação tão... tão mágica? Mesmo que soubesse dizer isso na época, iria algum deles entender?
Acabamos por brincar de lançar seixos na água, disputando quem conseguia fazê-los quicar um maior número de vezes na superfície do lago (uma brincadeira que — por algum motivo que desconheço até hoje — chamávamos de Pão-doce) até o sol se pôr. Não me lembro de termos voltado lá juntos outra vez.
Os gêmeos certamente continuaram passando pelo lago nos dias de visita à avó deles. E eu continuei indo sozinho com frequência. Geralmente ao pôr do sol, sentava-me em alguma sobra de alvenaria próxima à margem, e ficava vendo o lago, as garças dando seus passos cuidadosos sobre as águas rasas, e os reflexos da luz dançando na superfície, ouvindo o coaxar das rãs e seus longos saltos — ouvindo a canção da vida e do mundo sem nada entre mim e ela. Ali eu sonhava, esquecia quem achava que era, e lembrava, pelo menos por instantes, quem era de verdade. Não pensava assim na época, claro. Isso talvez nem seja realmente o que eu sentia, ou como entendia as coisas na época, mas é desta forma que me lembro. Eram pequenos momentos que pareciam durar uma eternidade. Pequenas caixinhas maiores por dentro do que por fora. Lá, eu lembrava o que devia lembrar e esquecia o que precisava esquecer.
É difícil compreender precisamente o conceito da passagem do tempo quando se é uma criança. E para mim, que acredito ter sido uma criança mais sonhadora que o normal, era ainda mais. Houve uma época em que achei que o lago estivera lá desde a aurora do mundo. Imaginava criaturas primitivas bebendo daquela água e vivendo nas entranhas dela. Via grandes pterodátilos caçando peixes em voos rasantes sobre o lago, com um vulcão cuspindo fumaça e lava vermelha num onírico horizonte distante. Imaginava o sol, a lua e as estrelas passando sobre ele por intermináveis dias e noites, enquanto o céu realizava sua infinita mudança sutil de tons, com nuvens passando pela superfície que refletia todo o cenário de lá de cima aqui embaixo. E imaginava o dia em que o primeiro ser humano abriu os olhos em algum lugar, em alguma época, desperto por algum poderoso primeiro amanhecer. E o lago já estava lá, capturando em sua superfície todo dourado dos primeiros raios solares a despontarem no céu como braços de luz espreguiçando-se, assim como sempre estivera, atravessando as eras como sempre fora e sempre teria de ser.
O lago parecia me comunicar, na linguagem da natureza, tudo o que eu realmente queria e precisava ouvir. Era meu acalento e minha resposta.
Não que ele respondesse a todas as perguntas, nem preenchesse todos os vazios da minha vida. Mas, de alguma forma que eu não entendia. O lago tornava as perguntas e os vazios irrelevantes. Não importava se naquele dia eu havia brigado com meus amigos, ralara o joelho enquanto jogava bola, sofrera um castigo por algo que fizera em casa, se meu pai tinha me batido por estar de mau humor, ou bêbado, ou porque o Santa Cruz tinha perdido uma partida de futebol... estas coisas deixariam de ser tão importantes ou mesmo dolorosas se eu pudesse correr para o meu lugar especial, sentar-me num pedaço de parede velha e contemplar as últimas luzes daquele dia brincarem no espelho da superfície aquática. O lago dava-me a certeza de que nada era em vão. Tudo, por mais tristes e ruins que alguns acontecimentos fossem, valeria a pena no final. Pois um grande plano envolvia tudo, e as pequenas coisas seriam esquecidas. Naquele lago, era-me dada a oportunidade de espiar este plano através de uma pequena brecha. E eu me maravilhava numa exultação silenciosa diante dele.
2
Cerca de quatro anos após a minha descoberta, minhas visitas ao lago foram se tornando menos frequentes. Era como se a brecha, mais aberta no início, se fechasse gradativamente com o passar do tempo. Ainda estava lá, claro, mas mais como uma memória do que uma presença de fato. E havia ocasiões em que eu levava algum livro de aventura para ler na tranquilidade do lugar.
Os gêmeos haviam se mudado há alguns meses para São Paulo — quando o pai deles foi contratado por uma distribuidora de alimentos paulista. De acordo com as últimas notícias, estavam todos muito bem, mas por aqui eu me sentia mais solitário que de costume. Cursava então a 5ª série do ensino fundamental. Numa escola nova, pois na antiga só havia turmas até a 4ª série. Não tinha me adaptado muito bem a este colégio. Tinha a impressão de que a maioria dos garotos não gostava muito de mim. Pelo simples fato de eu levar as aulas e os professores a sério e querer mesmo aprender alguma coisa. Algo que era relativamente comum na antiga escola, nesta, para a grande maioria dos meninos, parecia ser a coisa mais abominável que alguém poderia fazer. Eles se certificavam de punir-me diariamente por ser aquele idiota estranho que lia nos intervalos das aulas em vez de brincar de atirar os biscoitos coloridos da merenda uns nos outros.
Naquele dia, Luís, que os garotos chamavam de Banguicela (mistura de banguela e magricela), batera em mim na frente de toda a turma da 5ª série C do Colégio Monte Claro. O motivo foi o meu trabalho de artes: um desenho do Lago das Garças feito a lápis grafite, então coberto com caneta preta e colorido com lápis de cera até as duas e tantas da madrugada. O trabalho foi elogiado pela professora na frente de todos — algo que me deixou mais constrangido do que orgulhoso. E pessoas que, como Banguicela, não tinham feito trabalho nenhum, foram chamadas à atenção pela professora, e incentivadas a se espelharem no meu exemplo. O que era constrangimento e timidez em mim pode ter sido confundido — como geralmente acontece — com presunção e arrogância por aqueles que não tinham feito nada. No intervalo que sucedeu a aula, enquanto fui ao banheiro, alguém transformou meu trabalho de artes num minúsculo quebra-cabeça com as peças espalhadas pela sala. E eu não seria capaz de montá-lo nem com toda paciência e durex do mundo.
Entrei na sala, vi aquele confete de cartolina espalhado, e logo percebi do que se tratava. Num dos pedaços, pousado sobre o assento da minha carteira, havia o desenho de umas garças do lago, borrado furiosamente por uma caneta preta — indicando que a brincadeira de rasgar tinha começado com uma inocente brincadeira de "repintar" o desenho do garoto estranho. Luís sorria e apontava para mim, sorria e apontava. Quase todos na sala riam com ele. Eu estava dolorosamente consciente dos meus olhos começando a juntar lágrimas, e certo de que iria me engasgar e morrer com toda aquela raiva se não a cuspisse para fora naquele momento.
— Foi você, seu Banguicela!... Foi você! — Disse, com uma coragem e seriedade que até então não sabia que possuía, enquanto caminhava em direção ao garoto, que parava de sorrir e de apontar, e fechava os punhos.
— Você me chamou de quê, seu veadinho? — Ele se aproximou estalando os dedos da mão, com visível satisfação no rosto — eu mordera a isca e era o tipo de peixe que ele adorava fisgar. — Ah, agooora você se fodeu bonitinho.
O primeiro golpe foi uma joelhada no estômago que me deixou imediatamente ser ar. Quando dei por mim estava no chão, tentando respirar. Senti outra pancada no mesmo lugar, desta vez um chute que encontrou meus braços em vez da barriga. Permaneci em posição fetal, para me proteger, tentando desesperadamente respirar. Senti ainda mais cinco chutes. Três nas costas, dois na cabeça. Então, ouvi Luís Banguicela gritar:
— ME SOLTAAAAAA! ME SOLTAAAAA! EU VOU MATAR ESSE PUTO! VOU MATAR ESSE VEADINHO FILHO DA PUTA!
Finalmente consegui respirar. Minhas costas doíam e minha testa ardia. Senti um líquido pegajoso escorrendo pelo meu rosto e provei o gosto de sangue e lágrimas na boca. Todos olhavam para mim, espantados. Mas alguns dos meninos ainda riam. E alguns meninos e meninas evidentemente sentiam pena de mim — o que era ainda pior.
— Ei, você tá bem? — Perguntou Alex, um garoto que devia ter duas vezes o meu tamanho, e, assim como eu, não era muito de falar. — É melhor você ir para coordenação, boy, tá sangrando tudo aí. Bora lá.
Mais tarde soube que fora ele quem tirara o Banguicela de cima de mim. Talvez, se eu não tivesse mudado de escola depois do ocorrido, eu e o Alex tivéssemos virado amigos.
Da coordenação fui parar num pronto socorro, onde recebi três pontos sobre a sobrancelha direita e conselhos dos enfermeiros:
"Brigar não leva a nada, meu filho";
"Violência só gera violência";
E quando eu disse que não queria brigar:
"Não briga dois se um não quer!"
Isso era até certo ponto verdade, mas não tinha sido uma briga. Eu apenas tinha apanhado.
Mais tarde ouvi as reclamações da minha mãe:
— Sinceramente, eu não esperava isso de você. Onde você tá com a cabeça, menino? Brigar por causa da porcaria de um desenho?
— Não era só um desenho! — Falei, chorando, pensando em tudo que o Lago das Garças significava para mim.
— Eu sei que era um trabalho, mas você não já tinha recebido a nota, não tinha? Ia querer ficar com aquilo para quê? Para juntar mais lixo dentro de casa?
Em casa, depois de chorar por meia hora no chuveiro, almocei ainda soluçando, ouvindo mais uma chuva de conselhos. Esperei minha mãe ir tirar sua soneca da tarde e fui para o lago. Não sabia exatamente por que precisava dele, mas precisava desesperadamente.
A quantidade de garças havia diminuído nos últimos tempos, e havia dias em que não havia mais que uma ou duas.
Eu estava tão absorto em meus pensamentos que só notei a presença dos urubus sobrevoando o lago ao chegar e ver dois dos três que estavam pousados alçarem voo, com suas grandes asas negras. Só para voltarem, instantes depois, após perceberem que o garoto da testa emendada ali não estava interessado em comer o lanche da tarde deles.
A comida boiava próximo à margem oposta à que eu costumava ficar, e sobre ela, eles pousavam, bicavam e comiam. Contornei o lago a fim de ver do que se tratava. O cheiro de coisa podre, e os próprios urubus, indicavam que não devia ser algo muito agradável.
Os urubus alçaram voo novamente, gritando protestos, quando me aproximei e dei uma olhada bem de perto no banquete que estava sendo servido ao ar livre.
Boiava no meu lago algo morto e podre, com a carne rasgada pelos bicos das aves expondo ossos e vermes.
Meu primeiro impulso foi querer vomitar, voltar correndo para casa e tentar esquecer que uma coisa tão repugnante daquelas estava nas águas do meu lago justamente no momento em que eu mais precisava dele. Mas se eu fizesse isso, quem iria remover aquilo do meu pequeno paraíso? Quem se importaria em limpar um lugar que aparentemente só era visitado por animais, insetos e um garoto qualquer?
Ninguém.
Mas se aquela coisa se espalhasse por toda a água, contaminando-a de uma maneira que viesse a matar as rãs e os peixes que eram provavelmente a razão das visitas das garças? Aliás, será que não era por isso que as garças visitavam cada vez menos o lugar? Será que aquela podridão estivera oculta nas águas, assassinando toda vida dela, e agora finalmente se revelara à superfície? Bem, se eu não tirasse aquela coisa dali, meu Lago das Garças, em pouco tempo, se tornaria um lugar fedorento, desprezível, sem garças e sem vida nenhuma. E eu não teria mais para onde correr quando um novo idiota resolvesse me bater.
Quando passou tempo suficiente para me acostumar um pouco com o odor, me pus ao trabalho de tirar aquilo dali. Fosse qual fosse o bicho que resolvera bater as botas no meu lago, deveria ser removido e enterrado bem longe dele. Como e onde enterraria a carcaça seria algo para se pensar mais tarde, no momento, sabia apenas que tinha que fazer aquilo o quanto antes. A região em volta era desabitada — motivo pelo qual raramente passava alguém por ali — havia restos de casas derrubadas (o que indicava que a região talvez já fora algum dia habitada), e terrenos baldios, onde havia coqueiros erguendo-se entre os charcos e regatos que alimentavam o lago. Foi num destes terrenos que encontrei um grande galho de pé de coco. Seco, julguei que ele ofereceria resistência suficiente para ser usado como uma pá.
Quando voltei havia quatro urubus sobre a carcaça, enquanto outros observavam com negros olhos famintos, empoleirados nos coqueiros ou planando em círculos no céu acima. Três dos quatro que estavam comendo levantaram voo quando me aproximei.
Um deles não.
Encarou-me com seus olhos negros e guinchou abrindo bem o bico. Vi uma língua nojenta e uma garganta ainda mais escura que os olhos, e que me parecia a caverna onde todas as coisas morrem.
Recuei um passo — o galho seco de coqueiro vacilava em minhas mãos e o urubu tornou a guinchar. Imaginei uma cena, como se um filme tivesse começado a ser exibido involuntariamente na minha cabeça. Ou como se todo aquele dia se revelasse um terrível pesadelo.
Eu largava o galho e corria. O urubu perseguia-me como uma sombra e derrubava-me com suas garras penetrando fundo em minhas costas nuas através da camiseta regata do Pato Donald que eu usava. E então todas as outras aves caíam sobre mim como uma grande e faminta nuvem de gafanhotos negros. Bicos e garras arrancavam nacos da minha carne, fresca, macia e ainda com sangue inocente, muito mais saborosa que a carcaça no lago. E cada um daqueles pedaços suculentos — que um dia tinham formado meu corpo, assim como a folha de cartolina inteira um dia tinha formado meu desenho do Lago —, juntamente com órgãos inteiros, desapareceriam nas escuras gargantas daquelas criaturas — engoliam avidamente meus intestinos como pintos comendo minhocas. Em instantes, não restava nada além dos ossos que um dia tinham me mantido em pé. Brancos, manchados de vermelho, sobre o solo de terra e os menores sendo disputados pelas aves que ainda não estivessem satisfeitas ou que estavam atrasadas.
O pavor me dominou. Não conseguia tirar os olhos da ave em minha frente. Certo de que, se me virasse, tudo aquilo iria acontecer exatamente como eu havia imaginado.
Soltei o galho e recuei mais um passo para trás, querendo mais que tudo chorar. O urubu voltou-se para a comida parecendo não fazer a menor distinção entre carne podre e tapuru. As aves que tinham fugido se aproximaram novamente.
Não sabia o que fazer. Se chorasse e fizesse barulho, atrairia a atenção daqueles olhos carniceiros novamente — e eu preferiria levar outra surra do Banguicela, na frente de toda a escola, a isso. Estava paralisado. Inesperadamente, uma criatura alada pousou sobre as costas da minha mão paralisada de medo. Foi um pouso leve, mas me fez sentir um formigamento passar pelo meu corpo. Gritei balançando o braço com força. Mas então percebi do que se tratava.
Uma borboleta.
Não uma borboleta qualquer, mas uma azul e preta, as mesmas cores daquela que anos atrás me levara a descobrir o Lago das Garças. Subitamente todas as lembranças do lago acenderam-se como se unidas num único poderoso jato de luz que afastava toda escuridão da tristeza e do medo. Foi ai que percebi que os urubus tinham fugido com o meu grito de susto, e agora me observavam novamente, afastados, parecendo se perguntar se eu era uma ameaça ou não.
— Vão embora! — Gritei — este lago não é de vocês. — Eles permaneceram lá, provavelmente esperando que eu fosse embora para que pudessem continuar a refeição.
A borboleta pousou na folha de uma das plantas do lago, e lá ficou, indiferente à vida ou à morte, ou aos meus gritos. Na ocasião, eu não tinha dúvidas que se tratava da mesmíssima borboleta — e ainda hoje penso assim, mesmo tendo descoberto que o tempo de vida delas é em média de apenas um ano.
Os urubus estavam empoleirados nas árvores. Apenas um sobrevoava o lago a uma altura razoável. Apanhei o galho seco do chão onde o largara e fui até a margem do lago novamente. Tentei revirar a carcaça e vi que o que havia abaixo da superfície do lago era muito maior que aquilo que se mostrava acima. Indo aos limites de minha força, consegui por fim colocar a maior parte da carcaça para fora da água.
— Meu Deus do céu! — Exclamei.
A carcaça era um homem, ou aquilo que sobrara dele. Um de seus olhos fora arrancado — provavelmente comido por algum bicho de dentro ou de fora do lago — e da cavidade onde ele deveria estar saiu uma pequena criatura escura, para então se esconder novamente numa das narinas. O olho que sobrara — que tinha um tom de azul muito semelhante ao da borboleta, ou assim ficara após a morte do dono, a pupila negra contribuindo para a combinação com as asas do inseto — estava aberto, sem brilho, fitando o céu azul de fim de tarde de julho como se perguntando:
"Por quê?"
Numa das bochechas havia um buraco com uma pequena colônia de vermes. Os lábios haviam sido comidos; o cadáver, com poucos dentes tortos à mostra, não parava de sorrir para mim. Havia três aberturas ao longo do peito e do abdômen — talvez feitas, pensei mais tarde, por tiros de arma de fogo. Sob uma delas, algo começou a se agitar, até que saiu um muçum, arrastando-se e debatendo-se desesperadamente, à medida que passava pela abertura que era pequena demais para ela, em direção à água.
Contemplava tudo aquilo como quem vê um filme de algo distante ou irreal. Como se separado de mim mesmo. Então fui tomado por uma tontura e um enjoo incontrolável. Não conseguia parar de pensar em como o lugar que eu amava tanto, desde criança, podia conter algo tão ruim... e como as próprias criaturas daquele lugar que era, para mim, de alguma maneira sagrado, quase uma janela para o paraíso, estavam se alimentando daquilo.
Senti o mundo se abrir como um alçapão sob meus pés.
Cai.
E girei, girei e girei.
Estrelas nasciam, dinossauros rugiam, carros se locomoviam, aves voavam, mamíferos sangravam no nascimento e na morte e mesmo as estrelas, as distantes e belas estrelas, morriam. O tempo deixava de ser uma reta e se tornava um círculo, um círculo que girava, girava e girava dentro de outros infinitos círculos menores e maiores.
E eu caía, caía e caía.
Quando finalmente voltei a mim, meu almoço estava fazendo o caminho inverso, escapando pelo nariz e pela boca. Tudo ia parar nas águas do lago. E eu chorava e tremia. E via o vômito avançar cada vez mais pela superfície da água em minúsculas ondas, lago adentro.
Quando senti que não ia colocar mais nada para fora (porque agora meu estômago era a única coisa que havia lá dentro), sentei-me ao lado do corpo daquele infeliz que seguramente morrera por causa de alguma dívida de drogas, (com minha camiseta ensopada de vômito na cara do Pato Donaldo, sorrindo irreconhecível), contemplando a superfície das águas, como fizera inúmeras vezes antes.
Então houve paz.
Exatamente como sempre houvera em ocasiões anteriores. Sem pensamentos, dúvidas, medo, sofrimento, ou dor, nada além de existir durante uma eternidade. Não houve nenhuma resposta, mas todas as perguntas eram, naquele momento, irrelevantes. O sol se despedia daquele longo dia, o silêncio reinava, e quanto mais escuro o mundo ficava à minha volta, mais sereno e tranquilo eu me sentia.
Quando a escuridão se fez por fim completa, já sem me importar com o que tinha acontecido na escola, fui para casa. Se quando me afastei os urubus voltaram para comer aquilo que sobrara de um homem, não tiveram muito tempo para isso. Assim que cheguei em casa, contei o que havia encontrado à minha mãe, sem dar muitos detalhes. Ela ligou para a polícia que veio com o carro do IML e recolheu a sobra do homem mais tarde — observados por uma multidão de curiosos que deixavam a novela de lado para acompanhar a remoção do corpo.
Só voltei ao lago mais uma vez. E foi para me despedir.
Um dia, no meio daquele ano, nas férias de Julho, a mesma época em que eu encontrara o lago pela primeira vez, encontrei minha mãe chorando com a cabeça sobre a mesa redonda da cozinha. Soluçava muito e me pediu para deixa-la só, sem explicar o motivo das lágrimas.
Meu avô chegou por volta das duas da tarde.
— Você agora vai morar com o vovô. — Disse-me ele, pondo a mão sobre minha cabeça, mas sem olhar para mim, e sem mover a mão.
— Eu não quero. — Foi a minha resposta automática, enquanto afastava a mão dele. Meu coração acelerava.
— Não fale assim, olhe o respeito! Vim buscar você e sua mãe.
— E o meu pai? Cadê meu pai, vovô? — Não consegui conter as lágrimas — Minha mãe chorando, e agora isso...
— Ele está bem. Vai vim mais tarde pegar as coisas dele... Mas não vai morar com a gente. Seus pais... — Ele suspirou — seus pais não vão morar mais juntos...
Meus avós maternos moravam em Cavaleiro. Longe o bastante para eu saber que passaria muito tempo até que houvesse um motivo para visitarmos Longa Vista e eu pudesse ver meu lago novamente. Talvez nunca mais o visse. Meu avô tentou me segurar, mas eu corri. A compreensão total da situação e a falta do meu pai era um golpe que só iria me atingir e ferir mais tarde. No momento, eu precisava apenas do Lago das Garças. Corri até ele e disse um último adeus.
Não havia nenhuma garça naquele momento. Sentei-me, como sempre fizera, num resto de parede e o observei. Contemplei cada folha que vestia o lago. Cada gota que o enchia. Cada ponto de reflexo de luz. Cada micro-onda soprada pelo vento na superfície. Não havia mais mágica em lugar nenhum. Tudo aquilo me parecia seco. A brecha para o mundo encantado que me fora apresentada ali, anos antes, fora fechada no dia em que eu encontrara o corpo. E era por desconfiar disso, e temer constatar esta verdade, que eu não voltara lá desde então.
Chorei um choro composto de nada além de uma única lágrima para cada olho.
— Adeus. — Falei e respirei fundo.
Nunca mais vi o Lago das Garças.
3
Julho, 20 anos mais tarde, eu, Ricardo Villar, professor e escritor nas horas vagas, escrevo tudo isto após sonhar novamente com o Lago das Garças. Então resolvo fazer uma breve visita a Longa Vista. Sei que está tudo estará diferente, e dificilmente encontrarei o lago. Mas o lugar não pode ter desaparecido. Posso não encontrar o lago, mas encontrarei alguma coisa.
— Aonde você vai? — Pergunta minha esposa grávida com voz de quem ainda não acordou.
— Resolver umas coisas. — Era minha palavra chave para pedir permissão para sair sozinho. Em outras condições, Vitória me faria explicar exatamente que coisas eram essas, com quem e exatamente onde essas coisas seriam resolvidas.
— Hum... — Ela volta a dormir. Sei que vai me ligar preocupada mais tarde, quando acordar de fato, mas são cinco horas de uma manhã de sábado e sei que ela, de férias assim como eu, só vai acordar depois das dez — e de uma caneca fumegante de café extraforte.
Antes das seis, já estou na Avenida Recife, deixando meu apartamento recém-comprado para trás, seguindo em direção ao bairro de minha infância, me perguntando se havia mesmo um motivo para aquilo.
A primeira impressão que tenho ao chegar a Longa Vista é que o progresso econômico dos últimos anos por fim o alcançou — ainda que de raspão. Ruas antes de terra batida agora estão asfaltadas. E estradas que não existiam, agora estão repletas de veículos.
Dirijo por aquelas novas estradas e antigas ruas, percebendo que quase tudo ali me é estranho. Perguntando a alguns moradores, descubro que a minha antiga casa foi uma das removidas para a construção de um retorno para a Avenida Nova da Consolação. Depois de me informar mais um pouco, percebo que esta mesma avenida passa no lugar onde antes havia restos de casas derrubadas, e um pequeno lago que algumas garças e um garoto solitário costumavam visitar. Curiosamente, as pessoas se lembram bem dos terrenos baldios e das casas que foram derrubadas para a passagem da avenida, mas nenhuma entre as que eu perguntei, se lembrou de qualquer lago.
Estaciono e vou até um bar e lanchonete na beira da Avenida Nova da Consolação. Ainda não são nem oito horas, mas eu peço uma Coca-Cola mesmo assim.
— Há quanto tempo fizeram essa pista? — Pergunto ao dono, um homem baixo, com poucos cabelos brancos sobrando na cabeça, e uma camisa aberta pela metade, enquanto observo os carros passarem em direções opostas nas duas mãos da estrada, procurando algo que confirmasse que aquele era mesmo o lugar onde o Lago existira.
— Têm uns 20 anos, num tem, Rosa? — Grita o homem, enquanto destampa a garrafa do refrigerante com um abridor feito de um pedaço de madeira e um prego.
Viro-me e vejo uma senhora morena, com uma camiseta encardida, com um Patolino estampado, quase apagado, na frente.
— É... por aí... — diz a mulher, num tom desinteressado.
— Vinte anos... parece que foi ontem. — Suspiro e ergo um pouco a vista, por acaso, até a fachada interna do Bar.
Leio
BAR DAS GARÇAS
em gordas e simpáticas letras vermelhas. Há até mesmo um desenho meio torto de uma garça sorridente bebendo cerveja com o bico colado no gargalo — ela sorri e bebe ao mesmo tempo. Com a asa que não está segurando a garrafa, faz um sinal de positivo com um polegar levantado.
Sorrio disfarçadamente e dou um gole no gargalo da minha garrafa. Uma tempestade gelada de gás e açúcar invade minha boca.
— Posso fazer uma pergunta indiscreta, senhor? — Pergunto, pigarreando.
— Isso vai depender do seu tipo de indiscrição, meu rapaz. — Responde ele, acedendo um cigarro com um palito de fósforo, então cai numa risada que me parece um tanto deslocada.
— De onde veio a ideia para o nome do bar? — Pergunto sem mais rodeios.
Ele para de sorrir e começa a coçar a rala barba branca sobre o papo.
— Ô, Rosa, de quem foi a ideia para o nome do bar mermo? — Rosa está assobiando enquanto limpa as mesas de ferro, acompanhando uma canção do Roberto Carlos que toca numa estação má sintonizada.
Sem parar de trabalhar, ela fala:
— Foi de Elena, ômi... A menina queria porque queria esse nome... sabe lá Deus porque... Essa menina saia com cada uma...
— Isso, mesmo. — concorda o homem, com o rosto iluminando-se novamente num sorriso de dentes amarelos — Foi minha filha mais velha que pediu... — ele dá um trago e sopra a fumaça lentamente.
Elena. O mesmo nome que sua esposa escolhera, caso o bebê em sua barriga fosse uma menina.
O dono do Bar das Garças continua falando, mas eu só consigo pensar naquela estranha coincidência.
Até que uma ainda maior acontece.
Uma borboleta, vinda não sei de onde, pousa no gargalo da garrafa de vidro transparente do refrigerante. Possui exatamente as mesmas cores que àquela que me mostrara o lago em minha infância e mais tarde me salvara do medo dos urubus.
Asas pretas e azuis.
Lá está ela novamente. Não diz uma palavra; indiferente à vida, à morte, e ao refrigerante borbulhante sob ela.
Mas eu ouço o que ela diz, naquele discurso sem voz.
De alguma forma eu ouço cada sílaba.
E, embora eu talvez nunca seja capaz de explicar, eu entendo.
Entendo tudo.
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