BRUXA
"A criança nunca sabe o que é um martelo, até confundir o dedo com um prego" (STEPHEN KING)
Recife, 1990. Bairro de Longa Vista.
A ideia, como sempre, foi de Aninha. A menina olhou para todos os lados para se certificar que não tinha nenhum adulto por perto e declarou:
— Vamos invadir a Casa da Bruxa!
André foi o primeiro a concordar, o que imediatamente motivou João a fazer o mesmo. Não deixaria o amigo parecer mais corajoso que ele, ainda mais na frente das meninas. Elena permaneceu calada, como de costume. Vitória foi a única que perguntou pelo motivo da invasão.
— Então... não sei se vocês já ouviram falar de botijas. — Respondeu Aninha — Alguém? Ninguém? Sabia! É mais coisa do interior, coisa antiga mesmo. Mas minha avó é de Caiporana do Norte e ela me contou que o conhecido de um primo dela ficou podre de rico desenterrando uma botija em uma casa abandonada!
— É como um tesouro? — Perguntou Vitória.
— Exatamente, Vivi. Um tesouro, só que de verdade!
— Mas é perigoso... — Disse Elena, finalmente, mais para si mesma do que para a turma.
Era verdade. Nenhuma criança e muitos adultos não se arriscavam a passar se quer na frente daquela casa.
— Vocês sabem muito bem o que dizem... — continuou ela.
— Ai, ai, Elena. — Interrompeu Aninha. —Você não pode acreditar em tudo o que dizem por aí não! Você já viu alguma coisa lá? Eu mesmo nunca vi. — Ela deu de ombros.
— Então por que vamos acreditar que tem um tesouro? — Disse André, de repente. Ficando verdadeiramente intrigado.
— É. — Concordou João com os olhos brilhando — os adultos mentem. — Suspirou.
Aninha descruzou os braços e começou a andar de um lado para o outro.
— Pelo amor de Deus! Só vamos investigar! Se não tiver nada, a gente volta. Vamos poder contar nossa aventura para quem quiser ouvir. Seremos os únicos que já entraram na Casa da Bruxa. Até o pessoal da outra rua vai pagar para saber o que tem lá! Mas quem não quiser ir, tudo bem. Seus bando de molengas!
Após um breve silêncio, André falou:
— E as armas? Não se entra numa aventura dessas sem armas.
— Com certeza, meu filho. — Disse Aninha.
— E se a gente olhar só o quintal? — Perguntou Elena. — Outro dia a gente entra...
— Nós vamos entrar. — Disse Aninha — amanhã de tarde a gente se encontra aqui no calçadão. Quem não quiser ir, é só não vim, facinho, facinho. Pode ficar sozinha em casa chorando com a mamãe.
E agora lá estavam eles, reunidos no calçadão da Rua 63, cheios de expectativas.
— Tudo pronto? Trouxeram as armas? — Perguntou Aninha, mostrando discretamente um cutelo que tinha pegado escondida da gaveta de talheres da avó.
— Sim! — Responderam todos, menos Elena, que segurava um urso de pelúcia caolho e uma pequena e velha pá de plástico amarela.
André mostrou sua companheira de aventura inseparável, uma pistola de cano — um pedaço de cano hidráulico com uma bexiga de festa presa na ponta, que servia como estilingue — e os bolsos da bermuda cheios de bolas de gude que usaria como munição. Normalmente usava grãos de feijão, pedras acabavam por rasgar a borracha da bexiga, mas para aquela missão tão arriscada resolveu apostar suas bolas de gude. Levava também uma esfera de rolamento de carro, toda enferrujada, que usava como bola de gude especial e chamava de ferrança. Também levava uma pequena lanterna de brinquedo pendurada no pescoço, um presente de seu último aniversário. Na outra mão trazia um brinquedo ainda mais novo. Três dias atrás, sua avó o levara para uma consulta com uma pediatra, e, para ela passar o tempo de espera na fila de atendimento no IMIP, comprara um brinquedinho que era comumente vendido pelos comerciantes em frente ao prédio: um cachimbo de brinquedo azul e verde. Ele equilibrava uma bolinha de plástico na ponta se soprado com cuidado. Não era exatamente uma arma, mas "fumar" aquele cachimbo o acalmava.
— Preparadíssimo! — Disse ele, e ergueu a lanterna — Pode ser escuro lá dentro.
—Preparada! — Disse Vitória, exibindo um estilingue. — Peguei escondida do meu primo.
João levantou — meio desapontado com sua arma ao ver as dos amigos — uma lata velha de Nescau que servia de carretel para uma porção de linha de empinar pipa. Um pedaço de tijolo quebrado estava amarrado na ponta da linha.
— Trouxe meu bote. — Disse dando de ombros — tá com muito cerol! — E deu uma risada mostrando os dentes irregulares.
— E você Elena? Perguntou João.
A menina hesitou por um momento e então exibiu timidamente a pazinha de praia amarela.
— Vamos ter que cavar para achar a bojita, né? — Disse ela e apertou um urso de pelúcia contra o peito. — Também trouxe o Bombom para me proteger.
— E isso lá são armas? — Disse João, sempre incapaz de não dizer o que pensava.
— O Bombom pode ser! — Retrucou Elena — você nunca o viu com raiva!
João, Aninha e André começaram a rir, mas Vitória interveio:
— Não sejam maus! — Ela abraçou a amiga e o urso — a gente tá aqui para se divertir, não é?
— Tá bem, tá bem. Bombom pode ser o nosso mascote, Elena. — Disse Aninha. — E o nome é botija, não bojita... Vamos contornar a casa pela lateral, beirando o mangue, para que ninguém veja a gente entrando.
— Com todo cuidado para não acordar a bruxa. — Completou João.
Elena apertou o ursinho e trincou os dentes. E assim, tensos, uns mais outros menos, partiram em direção à Casa da Bruxa.
Ficava bem afastada de todas as outras casas da rua, no meio de um grande quintal abandonado. Passaram direto pelo portão da frente, todo enferrujado e trancado com um cadeado PADO, e viraram à esquerda na esquina do muro. Aninha pôs o cutelo no bolso de trás do short, descalçou as sandálias havaianas dos pés, as calçou nas mãos e foi andando cuidadosamente na frente, através do mangue que chegava até os pés do muro, pela lateral da casa. Os outros a imitaram com as sandálias e a seguiram em fila indiana.
Aquele era um lugar deserto. Primeiro porque não havia motivo para ninguém se meter naquele fim de rua e de mundo, onde só havia o mangue às margens de um rio poluído, o qual chamavam de maré, e um grande matagal após o rio. Ali só iam os caçadores de caranguejos verificar suas armadilhas pela manhã. Além disso, havia os ruídos que as pessoas diziam ouvir na casa à noite. E os cães e gatos que lá tinham entrado desavisados e jamais tinham saído.
E havia a história da antiga dona do imóvel.
Era uma idosa que ficou atolada no mangue, gritando por horas e dias, mas ninguém a ouviu. Como a casa era afastada e ela vivia sozinha, raramente saía ou recebia visitas, demorou muito até que alguém finalmente viesse a encontrá-la. Quando finalmente o fizeram, ela já estava enterrada até o pescoço. O queixo, os lábios e as bochechas já quase todos comidos pelos caranguejos, pombos e urubus. Repetia desesperadamente sobre alguma coisa na mata. Tentaram puxá-la da terra até que metade de seu corpo saiu, em partes completamente podres, quase esqueléticas. Diziam que o cheiro de podridão ainda podia ser sentido nas claras noites de lua cheia.
Depois disso começaram a chamar o lugar de a Casa da Bruxa. Ninguém sabia exatamente o porquê do nome, mas todo mundo concordava que era bem apropriado.
Nenhuma das cinco crianças falava enquanto passavam por ali naquele momento, mas todas conheciam muito bem as histórias, contadas em noites de susto, e só se atreviam a pisar ali porque o sol ainda demoraria cerca de uma hora para se pôr.
Chegaram ao quintal dos fundos, que estava tão assustador e selvagem quanto o esperado. Arbustos e ervas daninhas espinhosas se espalhavam por toda volta, sem deixar ao menos uma trilha. Aninha pôs as sandálias de volta ao chão, sacou o cutelo e seguiu em frente.
— Estamos entrando na floresta da Bruxa, meu amigos. — Disse ela — a partir de agora tudo pode acontecer. — Seus olhos faiscavam de entusiasmo. Começou a desferir golpes de cutelo na vegetação. Galhos e folhas de mamonas voavam para os lados. Subiu um cheiro forte de mato cortado.
Vitória aproveitou para pegar um bom cacho daquelas estranhas frutas espinhosas para servir de munição para o seu badoque. — Tomem cuidados com os espinhos. Vamos devagar. — Disse ela.
André e João também a acompanhavam de perto. Golpeavam a vegetação com pedaços de ripas de madeira arrancados do que sobrara da cerca do quintal. Elena ficou afastada, bem atrás. Fitava as escuras águas da maré e o mangue onde grandes e peludos caranguejos perambulavam esquivos entre uma toca e outra. Árvores imensas e antigas espalhavam-se nesta e naquela margem do rio. Do outro lado a vegetação toda fechada tinha uma aparência assustadora naquela tarde que se encaminhava para o fim. Elena não gostava de nada ali, mas a escura água silenciosa do rio era o mais assustador. Sentia-se como se estivesse sendo observada e sua imaginação a mostrava o observador como uma horrível coisa gigante, cheia de tentáculos, embaixo da superfície.
Aninha finalmente terminou de abrir a trilha para a casa. Eles seguiram, sentindo um cheiro de coisa podre à medida que se aproximavam da casa. Havia uma porta de madeira velha, coberta de fungos e musgo, entreaberta.
— Ei! Aqui. Venham ver! — Falou João. Todos foram ao seu encontro, sentindo o odor podre cada fez mais forte.
A coisa estava coberta de moscas que voaram em sua maioria com a chegada deles, deixando inúmeros tapurus à vista. Se o inferno existia, tinha aquele cheiro.
— Parece um cachorro morto. — Disse João.
— Um cachorro podre! — Disse Aninha e cobriu o nariz e a boca com a parte de cima da roupa. Todos fizeram o mesmo.
Elena não quis se aproximar muito e Vitória ficou com ela, mais afastada.
— Meu Deus — Disse Vitória — de quem será que era ele?
— Quem sabe? — Disse João, debaixo da gola da camisa.
— Talvez fosse de rua mesmo — disse André. — Coitadinho.
Elena começou a chorar.
— Eita, Elena! Não sei por que você veio! — Disse João. — Ô menininha para chorar.
— Cala a boca, João! — Disse Vitória. — O que foi agora, Elena?
— Vamos enterrar ele... — respondeu a menina.
— Como é? — Perguntou Aninha.
— Temos que enterra-lo. — Elena soluçou — ele tá sofrendo.
— Ele tá morto, minha filha! — Disse João — mortinho, mortinho da silva!
Elena começou a cavar onde tinha menos pedras no chão com a sua pá de brinquedo amarela.
— Por favor, Vitória, me ajuda aqui.
Aninha não gostou nada daquilo.
— Assim você vai atrasar a aventura!
— Se todo mundo ajudar, a gente termina rapidinho — sugeriu Vitória. — Agora se a gente for ficar discutindo, vai chegar a noite e a gente ainda vai tá aqui.
— Bora lá, galera — disse André. — Se fosse o cachorro de vocês, ninguém ia querer que ele ficasse assim.
— Tá bom! Mas tem que ser rápido. — Disse Aninha, e começou a cavar, improvisando uma pá segurando o cutelo com as duas mãos. — E sem chororô daqui para frente!
— Vocês não acham que a gente tá fazendo muito barulho não? — Disse João, olhando para a mata. — Vamos terminar logo de enterrar o cachorro e seguir mais de mansinho, para Maria Florzinha não ouvir a gente.
Elena ficou tensa.
— Isso não existe não, gente — disse André. — Bicho Papão, Papa Figo, Maria Florzinha, tudo invenção. Minha avó disse...
— A minha diz que é verdade. — Interveio Aninha, dando de ombros.
Quando o buraco ficou largo o suficiente, André e João empurraram o corpo do cachorro para dentro com as ripas de madeira, tapando o nariz e a boca com as camisas. Puseram a terra de volta no buraco e jogaram um pouco onde o cachorro estivera e passara ao o arrastarem. Por fim, ficaram os cinco em volta da cova improvisada, fascinados com o que tinham acabado de fazer. O odor tinha amenizado e pairava uma forte sensação de dever cumprido, antes mesmo de terem começado a aventura propriamente dita. Olhavam uns para os outros, como se procurassem algo para dizer em seus rostos. Era bom estarem juntos no primeiro contato próximo com a morte e com o horror que se segue ao corpo após ela.
João começou a recitar um pai nosso, mas os outros hesitaram. Olharam para ele, intrigados.
— A gente vai rezar para um cachorro? Isso num é pecado? — Perguntou André.
— Deve ser heresia — sugeriu Vitória.
— Ele também foi feito por Deus, não foi? — Respondeu João. — O que tem de errado?
Vitória e André deram de ombros e então todos acompanharam João na oração, de mão dadas, formando um círculo em volta da sepultura do animal. Quando terminaram, Elena colheu uma das flores laranjas que cresciam no quintal e a depositou delicadamente sobre o túmulo. Parecia um mini girassol sobre a terra revolvida.
— Você foi um ótimo cachorro. — Disse ela.
Todos se abraçaram instintivamente, exceto Aninha que já se voltara para a porta da casa da bruxa.
— Vem, André. Trás a lanterna aqui. — Disse ela.
Entraram fazendo o máximo de silêncio possível. A casa fedia a coisa velha e podridão. André iluminou o lugar, cheio de lixo e entulho espalhado. Havia uma garrafa de vinho vagabundo vazia sobre uma mesa velha de madeira e restos de armários com portas quebradas e penduradas, mas focou principalmente no chão de terra batida, buscando algo que pudesse indicar a presença da botija.
Deixaram a cozinha para trás e foram andando por um corredor estreito com portas de madeira velha fechadas de cada lado para o que eram provavelmente os quartos. Aninha segurou a maçaneta da porta à direita e girou lentamente. A porta abriu e para surpresa deles havia luz ali. Seguraram a respiração quando observaram uma vela vermelha acesa dentro de um círculo desenhado no chão.
Ficaram parados, boquiabertos, com os olhos iluminados pela chama.
— Nossa Senhora — sussurrou Vitória — tem alguém aqui.
— É melhor a gente ir embora — disse Elena numa voz quase inaudível.
Ouviram um barulho de algo se mexendo vindo da cozinha. Saíram do quarto lentamente, ouvindo a respiração funda de cada um deles.
— Pode ter sido o vento — disse André — a gente deixou a porta aber...
Então ouviram uma pesada batida.
Elena soltou um grito.
Aninha tampou a boca dela com a mão.
— Parece que a porta acabou de fechar— cochichou ela. — Deve ter sido o vento, mesmo.
— Vento de dentro? — Perguntou João, com os olhos arregalados — não tem vento aqui, galera.
— Temos que sair por lá, O portão da frente tá fechado. Não tem outra saída. — sussurrou André.
— Vamos lá, e sem choro, Elena! — Disse Aninha e foi na frente.
— Fechou mesmo — disse ela ao chegar na cozinha. — Ilumina ali, André.
André direcionou a luz da lanterna para a porta e ambos soltaram um grito de susto. Havia um homem de frente a porta que ele acabara de trancar.
— Eu tava só esperando vocês, seus merdinhas! — disse ele e começou a rir incontrolavelmente.
— Corram! — Gritou Aninha. Correram todos em direção à frente da casa.
André foi à frente, com a lanterna e os outros seguiram a luz. A porta da frente, feita de ferro e vidros basculantes, estava trancada. A maior parte dos vidros estava rachada ou quebrada de modo que era possível ver a ruína do quintal da frente e lá no final um pedaço da rua que agora parecia tão distante.
Gritaram, choraram e berraram, mas dificilmente alguém ouviria, e ainda que ouvisse, teria coragem para entrar e verificar o que estava acontecendo na Casa da Bruxa?
— Eu tava só esperando vocês. — Dizia a voz do homem, cada vez mais perto. Então ele apareceu na sala, lentamente, com uma barra de ferro numa mão.
As crianças gritaram ainda mais.
— Vamos começar a brincadeira. Se fizerem silêncio, alguns merdinhas saem vivos. Só fica o merdinha com a luz.
André começou a tremer. Tremeu tanto que acabou soltando a lanterna. A luz que entrava pela porta de vidros quebrados, contornando as silhuetas das crianças, era cada vez mais amarela, indicando que o sol começara a se pôr.
Aninha respirou fundo e deu um passo à frente. Os outros se surpreenderam com a sua coragem, mas não deixaram de notar como suas mãos tremiam.
— Ninguém vai ficar aqui! — Gritou e levantou o cutelo.
O homem soltou uma gargalhada e deu um passo à frente, entrando no raio de luz que vinha da porta. Ele tinha diversas cicatrizes nos braços e no rosto, onde faltava um olho. Um golpe rápido com a barra de ferro na mão de Aninha mandou o cutelo para longe no escuro.
Nesse meio tempo, André havia preparado um tiro com sua pistola de cano. Vitória bem que tentou atirar com o estilingue, mas Elena a abraçava com tanta força que era impossível se mexer direito. João atirou seu bote tentando acertar o braço do homem que segurava a barra de ferro. O tiro da bola de gude de André acertou a barra, arrancando uma faísca e quebrando a esfera de vidro em inúmeros pedaços. A linha com cerol de João passou direto sobre o ombro do homem, sendo imediatamente puxada com força. O homem deu grito de dor quando ela passou cortando sua nuca. Livrou-se da linha e partiu para cima das crianças. Aninha, que já sofrera um golpe, levou outro no braço, ao se defender da barra de ferro. André aproveitou que o homem tinha se distraído e atirou mais de perto, acertando bem na testa dele, que começou a sangrar, cobrindo metade de seu rosto de sangue. Ele partiu furiosamente para cima do menino. André desviou uma vez, mas acabou caindo com um golpe da barra de ferro nas pernas. O homem arrancou a pistola de cano da mão dele, a jogou no chão e pisou, deixando o cano em pedaços.
A essa altura os outros quatro tinham conseguido recuar para a cozinha. Respiravam fundo e tinham lágrimas de dor, raiva e terror nos olhos.
— Cadê o André? — Perguntou Vitória.
Aninha estava se esforçando para levantar uma pesada tora de madeira que trancava a porta da cozinha.
— Puta que pariu! Alguém me ajuda a levantar essa porra! — Gritou ela.
— Vou voltar — disse João. As mãos cortadas por causa da força com a qual tinha puxado a linha com cerol.
Virou-se e deu de cara com o maluco de cabelo vermelho. Prendia André com uma mão e com a outra segurava o cutelo com a lâmina próxima a garganta do garoto.
— Todo mundo quietinho aí, se não o aço vai cantar! — Disse ele. O sangue escorria por onde deveria haver um olho até o canto da boa, mas ele lambia e engolia, sem se importar.
As crianças ficaram imóveis.
— Muito bem, seus merdinhas. Lindos cachorrinhos obedientes.
— O que você quer? — Perguntou Aninha.
— O que todo mundo quer, minha filha. O que todo mundo quer. — Respondeu, aproximando a lâmina ainda mais do pescoço de André. — Mas no momento vou ficar satisfeito apenas com o portador da luz aqui. Quando eu acabar com o ele, o fim virá! A escuridão vai se reerguer das profundezas! Mas antes disso vocês poderão continuar com as suas vidinhas de merda. Uns por mais, outros por menos tempo. — Ao dizer "menos", fixou o olhar em Vitória. Elena soltou um grito e começou a chorar ainda mais alto.
— Socorro, Bombom, me ajuda. — Repetia ela para o urso de pelúcia. — Me ajuda!
— Ei, coisinha, tá falando com quem?
Elena não respondeu. Vitória então falou:
— Bombom é o ursinho dela.
— Nossa, que coisa mais fofa. A porra de um ursinho. Eu nunca tive um. Sabe o que eu tinha? Um cinto velho e um cipó de goiabeira para apanhar quando fazia coisas errada! E eu fazia muitas, pode apostar!
— É um ursinho muito bonito. De olho verde. — Disse Elena. — Você quer para você?
O homem ficou tão surpreso quanto as crianças com a pergunta.
— Agora fodeu! Para que eu ia querer a porra de urso?
— Para abraçar — disse Elena — ele é bem fofinho.
Surgiu uma expressão de dúvida no rosto do homem.
— Você quer me dar, para mim?
— Uhum. — Elena balançou a cabeça.
O único olho do homem ficou úmido por um instante, voltando à expressão anterior em seguida.
— Ele só tem um olho. Que nem você — completou a menina.
— Lascou! É agora que eu morro! — Disse André, chorando.
— Cala a boca! — Gritou o homem e apertou o menino com ainda mais força. — Só quem fala agora é eu e a menina do urso...
— É-Elena.
— Você quer me dar seu ursinho, Elena?
— Que-quero.
— Cuidado — sussurrou Vitória.
— Ninguém nunca me deu nada, a não ser ela — disse o homem, com a expressão sonhadora — o mundo só me deu merda e dor. Agora você quer me dar esse urso. Repleto do amor e atenção que você o deu por tanto tempo. Um filho da puta mais sortudo que eu. Um urso com um olho só. Um olho verde... verde é mais bonito que vermelho, eu acho... — Um lampejo de uma lembrança antiga passou pelo rosto do homem. — Vou aceitar o presente. Vou aceitar seu ursinho sem olho, Elena. Quem sabe não posso o dar a ela, quando a reencontrar no inferno para onde vou? — Ele soltou uma gargalhada histérica. — Traga aqui, florzinha.
Elena hesitou um pouco, então deu um passo, ficando na frente de Vitória. Até que alcançou um feixe de luz do sol que descia de uma telha quebrada no telhado. A luz amarela avermelhada iluminou perfeitamente a menina de pele negra com o cabelo preso em marias-chiquinhas e um vestido verde, segurando um ursinho de um olho só numa mão e uma pazinha amarela na outra. Ela se aproximou mais três passos e estendeu o urso na direção do homem que fazia seu amigo de refém.
— Coloque em cima da pia. — Disse ele, indicando um resto de pia quebrada que havia na cozinha em ruínas.
Elena deu um passo para o lado e ele percebeu que a menina com quem ela estivera abraçada se mexera.
— Toma isso! — Disse Vitória e disparou uma mamona com o estilingue. O tiro atingiu o homem no meio do nariz, onde a dura frutinha espinhosa se desfez em pedaços. Ele praguejou e André imediatamente meteu com força a canela no meio das pernas dele, se soltando.
— Ah, seu fi de quenga! — O homem gritou e golpeou André com o cutelo, fazendo um corte nas costas do menino. Mas logo foi acometido por uma crise de espirros, devido ao disparo de Vitória, o que ajudou André a escapar.
André correu na direção da porta e ajudou Aninha e João a levantarem a trava da porta, enquanto o homem se acabava nos espirros. Destravaram a porta e correram pelo quintal, pelo meio do mato, arranhando e esfolando as pernas nos espinhos, sem tempo para cuidados agora. O sol estava quase se pondo, tingindo de vermelho as nuvens e a maré que estranhamente tinha subido, cobrindo a faixa seca por onde tinham passado antes de entrarem na casa.
Aninha, João e André entraram na água escura que chegava até os joelhos e começaram a correr através dela. Vitória e Elena ficaram para trás.
— Elena, vamos! Ele tá vindo! — Gritou Vitória, vendo Elena parada, com medo de entrar na água.
— Tenho medo — disse Elena. Suas pernas tremiam e logo uma espessa urina amarela começou a descer por elas.
O homem de cabelo vermelho surgiu no quintal com o cutelo da avó de Aninha numa mão e a barra de ferro enferrujado na outra. Vitória não teve outra opção a não ser carregar Elena nos braços, mas ela era menos de dois anos mais velha que a outra e era quase impossível correr pela água com aquele fardo nos braços. Após alguns passos, ela acabou tropeçando e derrubando Elena na água suja.
— Pensaram que iam fugir? — Falou o homem, ao se aproximar, na mesma hora que Aninha e André recuaram para ajudar as amigas.
Vitória jogou o badoque para André e ele o pegou no ar. Pôs a mão no bolso das bolas de gude e a primeira que veio foi a esfera de ferro, sua ferrança. A carregou e mirou a cabeça do homem. Lembrou da história de Davi e Golias que ouvira na escola dominical. Deus, se tem uma hora que preciso de você, é agora. Pensou. Por favor, me escuta... faz com que eu acerte a cabeça deste grandíssimo filho da puta. Puxou o máximo que pode o elástico e soltou.
O homem se abaixou na última hora e a ferrança mergulhou na água escura formando uma bolha. André começou a carregar uma nova bola de gude e o louco atirou a barra de ferro contra ele, derrubando ele e o estilingue na água. O brinquedo do primo de Vitória afundou lentamente na água agora avermelhada pelo sol.
Enquanto isso, Aninha ajudava Vitória a levantar Elena da água, mas o seu pé prendera em alguma raiz submersa.
— Me ajuda! Me ajuda! — Gritava ela em desespero. Perdera a pá de brinquedo na água, e abraçava Bombom com ambos os braços.
— Eu ajudo. — Disse o homem, então chutou Aninha e empurrou Vitória para longe.
— Socorro! Me ajuda! Tem um bicho me pegando! — Gritava Elena, abraçada ao ursinho de um olho só, chorando.
— Vou ajudar sim, florzinha. — Disse o homem e a empurrou dentro d'água.
— Socor... Não! — A menina lutava, mas os braços fortes do homem não a deram chance.
André encontrou a barra de ferro e correu na água que chegava até a metade das suas coxas em direção ao homem que afogava sua amiga. O ferro era muito pesado para ele, então ele usou o próprio peso da barra para descê-lo com força nas costas do homem. Ele rugiu e se virou com um chute que acertou André na barriga. O menino caiu sem ar, na água suja, e ficou tentando se levantar para não se afogar. Vitória correu para ajudá-lo enquanto Aninha mergulhou para tentar soltar o pé de Elena, que tinha emergido tossindo e cuspindo água suja.
— Vocês são uns demônios! — Gritou o homem e pisou nas costas de Aninha, a afundando na lama do fundo.
— Me ajuda! Me ajuda! — Elena gritava, em meio ao choro, ainda sem soltar o mascote da turma. Então o homem a desferiu um soco e ela caiu de costas, desacordada. André se recompôs e foi para cima do homem, junto com Vitória. Tentaram tirá-lo de cima de Aninha, mas ele era forte e pesado e os afastava com socos e empurrões.
Ele mesmo acabou tirando a perna de cima de Aninha, sorrindo. Ela se levantou, engasgada, cuspindo lama preta e com os olhos muito vermelhos.
— E agora? Cadê sua coragem, sua porrinha? — Perguntou ele e a pisou novamente, afundando-a.
Vitória correu para tirar Elena da água e André tentou mais uma vez tirar a perna do homem de cima de Aninha.
— Solta ela, seu monstro! — Disse em meios às lágrimas. Agarrou-se à perna do homem e a mordeu com a fúria de um felino.
O homem saiu de cima de Aninha e chutou o tronco de uma árvore, com André preso em sua perna, até ele soltá-la.
— Muito bem. — Disse ele, olhando para André e tirando o cutelo da cintura. — Tudo isso é por sua causa. É por isso que deve ser sacrificado. Portador da luz. Maldito atirador. — Falava caminhando lentamente em direção a André, enquanto alisava a lâmina do cutelo.
Aninha cuspia e vomitava na água que subia de nível cada vez mais. Vitória levantara Elena e fitava arrepiada os olhos revirados da amiga. Só se via a parte branca. Elena começou a repetir novamente:
— Me ajuda! Me ajuda! Me ajuda! Me ajuda! Me ajuda! Me ajuda! Me ajudaaaa!
Então soou um assobio agudíssimo e alto que fez todos ficarem imóveis. Coisas começaram a se mexer sob as águas, como serpentes submersas.
— Que porra é essa? — Disse o homem, olhando rapidamente para todos os lados. As raízes das árvores do mangue começaram a se mover fluidicamente sob a água. Uma delas escalou o corpo dele até a altura das costas. Ele sentiu uma pontada na altura do peito.
— Eita... — Disse ele e olhou para baixo.
Uma raiz pontiaguda saia de seu peito, tendo o atravessado desde as costas.
— Estou indo, meu amor. Fodam-se as porras dos porcos! — Disse ele.
E então gritou. Gritou como se sofresse os maiores tormentos do inferno, mas logo foi silenciado, sendo completamente envolvido por raízes móveis e arrastado até a água funda do rio.
Os olhos de Elena voltaram ao normal. Ela viu seus três amigos de boca aberta.
— Cadê ele? O que aconteceu? Cadê o João?
— Foi buscar ajuda, — disse André — mas acho que vai demorar para convencer todo mundo a vim aqui. Melhor a gente ir logo.
— Gente, o que aconteceu? — Perguntou Aninha, toda suja de lama preta.
— Meu pé ainda tá preso. — Disse Elena.
Então uma figura pulou de uma árvore próxima e veio andando na direção deles. Era uma forma feminina que movia-se como folha ao vento. Estava coberta com plantas, fungos e raízes por todo o corpo e tinha uma longa e espessa cabeleira que não se sabia exatamente o que era cabelo e o que era vegetação. Fumava um cachimbo tosco e velho de madeira.
— Meu Deus! — Gritaram todos, menos Elena. Pela primeira vez era ela que não estava com medo no grupo.
— Me ajuda? — Perguntou ela, olhando para a criatura.
A criatura farejou o ar e caminhou lentamente até ela. Quando parou na frente da menina, apenas Vitória teve coragem o suficiente para ficar ao lado da amiga, André e Aninha se afastaram uns dois metros e ficaram olhando apreensivos.
— Ela é uma menina boa, por favor, Maria Florzinha, solta ela! — Implorou Vitória.
A criatura apenas olhava para Elena, tinha os olhos verdes como um calango.
— Me ajuda, por favor — Disse Elena, e instantaneamente a raiz que prendia seu pé afrouxou.
A criatura se virou na direção da qual viera, mas Elena interveio:
— Espera.
A criatura voltou-se, intrigada, mas quando viu que Elena a estendia seu urso de um olho só, todo sujo de lama, assumiu uma expressão amistosa. Estendeu a mão, recebeu o presente e curvou-se levemente, como em agradecimento. Retirou uma das folhas que cobriam seu corpo e esfregou na mão e colocou o pó dentro do fornilho do cachimbo. Uma espessa fumaça esverdeada subiu dele. Ela inalou e assoprou lentamente a fumaça sobre Elena. Em seguida fez o mesmo com Vitória. André e Aninha olharam-se incrédulos. Então a criatura começou a andar na direção deles. Eles que se orgulhavam por serem os mais corajosos do grupo, deram-se as mãos e fecharam os olhos, sentindo a fumaça ser soprada por seus corpos.
Quando abriram os olhos a criatura já se afastava, caminhando com uma graça felina. Ela se aproximou da árvore da qual descera e colocou o dedo indicador em riste em frente aos lábios. Então, rápida como uma onça, subiu na árvore e não foi mais vista nem ouvida.
Agora o céu estava quase completamente escuro. Os quatro, apesar de tudo, sentiam-se estranhamente leves e curados. Aninha já não sentia dor no braço atingido pela barra de ferro, nem no peito pela água suja que entrara em seus pulmões. Todos tinham suas feridas curadas como se nunca tivessem existido e se sentiam melhor do que antes daquela aventura maluca. Olharam-se, sorrindo, encantados e foram andando pelas águas escuras de mãos dadas.
Quando chegaram na rua, deram de cara com uma multidão de gente, entre parentes e curiosos, que João finalmente trouxera com ele. Estavam armados com enxadas, picaretas, facões e ciscadores, mas não encontraram mais nada contra o que lutar. Apenas quatro crianças saudáveis e estranhamente felizes.
As cinco crianças aventureiras contaram a verdade, exceto o encontro com a criatura da mata — que só revelaram a João — mas a maioria, como era de se esperar, não acreditou. Todos eles ficaram de castigo ou apanharam, ou os dois. E jamais voltaram à casa da bruxa nem planejaram mais aventuras como aquela.
Um a um foram se mudando daquela região com o tempo e a história foi pouco a pouco esquecida pelos moradores. Elena, porém, jamais esqueceu o encontro com aquela que chamava de Maria Florzinha. E fez e viveu coisas estranhas que a maioria das pessoas sequer sabem que existem. Coisas que fazem parte de uma outra história.
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