O conto de Evelange
Pela primeira vez em seis meses os vidros da janela de Evelange estavam descobertos, permitindo os primeiros raios solares de março, adentrar no cômodo sombrio, sujo e caótico que chamava de quarto. Sua mãe batizou o lugar de covil, não tinha coragem nem forças para limpar a desordem nauseabunda. A filha por sua vez deixara há muito de se preocupar com a higiene e asseio doméstico. Debaixo das cobertas e lençóis agora podia-se notar uma protuberância comprida movendo-se sutilmente entre inspirações e expirações. Os pés brancos saltavam para fora da cama e apoiavam-se na pilha de livros empoeirados no divã. Quem os visse diria se tratar de um cadáver. Mais acima era possível ver um fraco brilho através dos tecidos. O ecrã do telefone não desvanecia um segundo sequer, denunciando que ela já estava acordada e seguindo compulsivamente os fluxos de mensagens, ações e reações de seu amado, a verdade é que não pregara os olhos, com aquela era a quarta noite seguida em claro, tal proeza só era possível graças a ajuda da cafeína e medicamentos misturados com álcool, continuaria ali, zumbificada, até conseguir o que tanto buscava… os louros da correspondência. A moça de vinte e oito anos sofreu uma mudança radical em sua aparência e vida, emagreceu terríveis cinquenta e cinco quilos de forma hedionda. Comia o suficiente para três pessoas e depois praticava seu ritual bulímico silenciosamente nas pias da lavanderia, esse e tantos outros vícios foram impulsionados por um estado melancólico incurável, adquirido ao conhecer, namorar e romper com o jovem Flávio. Evelange vivia por ele e apenas ele. Não se sabe ao certo quando o amor se tornou tão poderosa obsessão, o fato é que seus ciúmes foram crescendo numa violência maciça principalmente quando presenciava demonstração de atenção ou cortesia de Flávio com outras mulheres. Em determinada ocasião convenceu-se de que o namorado estava flertando com uma estranha no shopping que num ataque de ciúmes acabou por fraturar o antebraço do amado numa discussão seguida de um empurrão no topo da escadaria do estabelecimento comercial. Temeroso com o comportamento da moça, ele rompeu o relacionamento de um ano, apagou todos os vínculos das redes sociais e a bloqueou indefinidamente. Desde então, "Eevee" como ele a chamava passou a persegui-lo anonimamente no mundo virtual, as segundas e quartas ela era a jovem Ângela, 25 anos universitária cursando administração e moradora do estado vizinho, as terças e quintas ressurgia como Letícia, uma jovem carioca, técnica em logística. Estes eram apenas dois perfis fakes da sua coleção.
A claridade aumentou e com ela a temperatura começou a subir no cômodo, névoas de partículas levitavam contra a luz criando um minúsculo ballet sustentado pelo vento que entrava na fresta da janela, aos poucos era possível ver a decoração perecendo de hemorragia, as paredes exibiam feridas descascadas infectadas com mofo preto, as ataduras tecidas pelas aranhas pendiam do teto numa inútil tentativa de estanque. Evee tossiu debaixo das cobertas, odiava o verão mais do que tudo, sobretudo pela quentura que já a estava fazendo suar. Desfez-se das cobertas empurrando-as para o chão, colocou o celular na cama e levantou para abrir a janela. Infelizmente fora pega pelo espelho do guarda roupa, ela mesma já havia coberto o arauto da beleza com uma toalha a fim de não cair em seus enleios, mas na noite anterior não percebeu que sua mãe o livrara de sua prisão algodoada e agora ele se erguia sujo e inquisidor. Apontando e ressaltando as sobras de pele nos braços, barriga e pernas, os seios caídos, os cabelos desgrenhados e seborreicos. Dizem que a visão é um sentido superestimado e na sua ausência desenvolvem-se os outros, mas com Evelange ocorria o contrário, enquanto estava cega de si, o olfato e o paladar permaneceram atrofiados e qual não foi o despertar sensorial quando ela viu a si mesma ali refletida. Um soco no estômago teria doído menos, quando as células sensoriais do trato olfativo provaram do ar as fizeram vomitar. Dela, do quarto exalavam odores que nenhum banheiro rodoviário ou decadente meretrício sonharia alcançar. Estaria ela morta e em estado de decomposição esse tempo todo? Num ímpeto correu para a janela buscando ar puro, sentiu o pé deslizar úmido e caiu com um baque surdo, da cozinha sua mãe gritou alguma coisa inaudível. Levantou-se com dificuldade tentando encontrar o que a fez escorregar, mas falhou devido ao estado de podridão daquele possível alimento, abriu a janela, colocou a cabeça para fora, fechou os olhos e inspirou profundamente. Da rua vinha um misto estranhamente agradável de aromas, sentiu-se invadida pelo perfume de pão, temperos sendo refogados, fumaça de escapamentos, e dezenas de colônias trazidas pelos passantes da calçada, sentiu o sol beijoqueiro cobrir lhe a face de suaves ardências há tanto esquecidas. Ficou ali numa cega contemplação sensorial, voltou a si minutos depois quando o smartphone reclamou, uma borboleta alaranjada pousou no seu parapeito e Evelange desceu eufórica com os olhos vidrados na tela.
Entrou trêmula no banheiro, acionou uma música de sua playlist e colocou o telefone na pia, as mãos da jovem estavam tremendo quando abriu o registro do chuveiro. Pequenos cristais gotejavam de seus olhos, o ódio era tão intenso que das lágrimas só restavam o sal, tirou a roupa e embolou fazendo uma bola macia, levou até a boca, puxou o ar e gritou. Começou a se beliscar forte, parou depois de tirar sangue de si. Segundos depois sentiu-se mais calma, o suficiente para se molhar e se banhar, esfregava a própria pele com violência, estendeu o braço ao armário do banheiro, sacou uma tesoura e um aparelho de barbear. Lavou-se, depilou-se e cortou o próprio cabelo, em meios rompantes de raiva descontados nos azulejos, as juntas dos dedos já estavam roxas dos socos contra a cerâmica. Sentiu vontade de voltar para cama e não mais sair de lá, sentiu um formigamento familiar nos pulsos e braço, quase que num transe tocou com o polegar na lâmina do barbeador, queria rasgar os pulsos, ao menos para sentir dor, deslizou o dedo no fio e sentiu o pequeno talho abrir-se num botão de flor encarnada, lavou e devolveu o aparelho ao armário. Apanhou o celular e foi para o quarto, vestiu um conjuntinho velho e rasgado e buscou por vassouras, sacolas e panos, depois de meses acumulando lixo no recinto de seu leito estava na hora de renascer das cinzas, tal qual uma fênix, a crise havia sido leve em relação a outros términos, nas outras havia tentado o suicídio, mas sempre falhava, Evelange passou a acreditar que de fato vasos ruins não quebravam facilmente e que ela possivelmente era uma réplica barata dentro de um interminável ciclo. O tempo mudou fazendo jus ao popular dito de espanto, o céu outrora claro e ensolarado foi convertendo-se num cinza denso, anunciando um temporal. A atitude de reabilitação da moça emocionou até os santos, que das alturas choravam copiosamente pelo milagre suas lágrimas agora começaram a cair pesadas sobre as telhas. Pouco a pouco seguindo o ritmo da percussão tamborilando no teto, acrescida de suas músicas favoritas, Evelange limpou seu cômodo de descanso. Muitas roupas que não podiam ser salvas foram diretas para o lixo, os restos de comida, os papéis, livros embolorados toda aquela vida vinda da morte fora descartada sem uma gota de emoção por parte dela, faziam cinco horas ininterruptas que a jovem seguia limpando, o quarto parecia um doente em convalescença, estaria curado não fosse as chagas nas paredes e o espelho coberto, o aroma floral dos desinfetantes criava agora uma atmosfera asfixiante agradável. Quando acabou a faxina, desceu correndo e saiu rua afora, justamente no auge da fúria lacrimosa celeste, despreocupada abriu os braços e rodopiou de boca aberta provando da chuva. Das janelas embaçadas, olhares pontiagudos lançavam-se sobre ela, quase que audível dizendo “Uma mulher velha daquelas rodando na chuva”, “Ela não se compreende não?” “Aquela ali é inútil, só presta pra dar trabalho pra mãe”, Evelange gargalhava mais alto ao perceber as espectadoras da vizinhança, pois sabia que mais encruada que a língua delas eram seus corpos carcomidos pelos anos presas em casamentos infelizes, a jovem regozijava pela vitalidade e liberdade que tinha e que foram negadas as vizinhas amargas. Girou tanto, mas tanto que ficou tonta e esbarrou num estranho rapaz que passava de bicicleta pela calçada e não a distinguiu ali no temporal, ambos caíram numa poça enorme de água, Evelange ralou o joelho no concreto, o rapaz apenas sentia-se dolorido, mas não se preocupava consigo, apenas com a encomenda que levava nas costas. sem jeito e sem poder enxergar direito dada a violência das agulhas de água que caíam sobre eles e Evelange pediu desculpas e eles se levantaram juntos. Ambos estavam encharcados, mesmo ele de capa de chuva estava pingando litros. A jovem exclamou dando-lhe um leve empurrão:
- Homi você tá doido é? sair de bicicleta num aguaceiro desse.
- Mais doida é você que tava aí igual uma barata tonta rodando no meio da calçada em plena chuva, diferente de burguesinhas como você eu estou trabalhando – retrucou o entregador.
- Eu sou burguesa? Ah meu filho! Se toda burguesa fosse igual a mim a burguesia já teria seguido a aristocracia rumo a decadência, de fato foi minha culpa, desculpe, por favor entre e se seque ao menos. – respondeu a moça tocando no braço dele.
- Nem se eu quisesse poderia – ele puxou o braço – preciso entregar isso ou se não estou no olho da rua. – respondeu enquanto levantava a bicicleta avaliando algum possível estrago.
- Ah não se preocupe, eu arrumo um emprego pra você na empresa de meu pai – disse ela sorrindo – Eu insisto por favor, entre e se seque, meu pai deve ter alguma roupa que caiba em você, ele também é alto. – disse ela agora o puxando pelo braço.
- Então virei amanhã mesmo trazer meu currículo e minha carteira de trabalho, moça entenda estão me esperando eu já estou atrasado e além do mais é só uma chuvinha b... - O rapaz foi interrompido por uma tosse.
- Viu aí? Já está gripando ande logo venha– Evelange arrastou o homem até a porta, voltou, pegou a bicicleta dele e a colocou encostada do lado de dentro próximo a porta. Sem poder recusar nem retrucar, ele entrou sem graça.
Antes que a mãe reclamasse de alguma coisa ela foi e explicou a situação, Dona Hermínia, que veio às pressas falar com o rapaz e pedir-lhe desculpas. Desabafou que já não sabia o que fazer com a filha.
O nome do jovem era Vinicius, ele estava completamente constrangido com aquela situação toda, não queria estar ali ouvindo as lamentações daquela dona de casa por conta de uma garota claramente mimada e problemática. Evelange voltara do quarto do pai com uma toalha limpa e uma calça e camisa nem tão novas nem velhas, mas precisas o suficiente para o rapaz ir terminar sua entrega, se é que ainda iriam querer receber a encomenda depois daquele atraso todo. A jovem o direcionou até o banheiro e voltou pra sala, sua mãe lhe dera bons beliscões e sussurrava reclamações sobre o quanto ela era inconsequente.
Evelange subiu para pegar o seu celular, completamente descarregado e desligado, quando chegou ao pé da escada seus olhos pousaram gentilmente sobre a face de Vinicius, agora livre da máscara e os dele mergulharam nos poços negros e sem fim dos dela, no mesmo instante um sonoro e vibrante “clock” fora ouvido e sentido por todos ali presentes na casa, o rapaz pulou para trás em sobressalto. Tal evento foi tão intenso sobretudo para a própria moça, tal ruído viera das profundezas de seu seio esquerdo, ela sabia exatamente do que se tratava, Ângela e Letícia estavam libertas de seu cárcere e levavam consigo um corpo sem vida e repleto de cicatrizes. O cadáver tinha na face preservada uma expressão diferente das convencionais, estavam estampadas felicidade e alívio. Flávio finalmente escapou das câmaras de tortura do coração de Evelange deixando um vazio costumeiro, entretanto, por muito pouco tempo, pois dentro daquela casa de tons encarnados a sala de estar abriu-se tal como uma dionéia, exuberante, adocicada, suculenta e atrativa. Pronta para capturar mais uma vítima e Evelange apaixonada pronta para conquistar mais um amor.