O FUSCA 63
“Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos.”.
(CARL GUSTAV JUNG)
***
Recife, 1993. Bairro de Longa Vista.
Era uma madrugada fria e o céu estava nublado. Lâmpadas amareladas nos postes da rua lançavam pequenos pontos de luz no quintal — mas o resto permanecia em total escuridão. Uma coruja cantou uma nota melancólica ao sobrevoar o terreno e fez o coração do menino ir bater na garganta. Quis voltar para o quarto, para o calor do seu novo cobertor verde com desenhos espaciais infantis, mas se lembrou da Lagarta Feliz e da alegria que sentia quando estava nela junto com as outras crianças.
Então continuou.
Apertou a chave no bolso por cima do tecido da bermuda, sentindo cada vez mais frio e caminhou pelo quintal lembrando-se da última conversa que tivera com seu amigo Guga.
— Eu não acredito, Guguinha! — Dissera o menino, sorrindo abertamente, na manhã do dia anterior. — Mas nem painho sabe!
— Existem muitas coisas que o painho não sabe, não é, Gui? Veja, ele não sabe das nossas conversas, sabe?
O garoto, sentado no banco do motorista do carro — um Fusca branco cujo capô e portas traziam o número 63, branco, no centro de um círculo preto — descruzou as pernas e segurou o volante carcomido como se o acariciasse.
— Eu já falei para ele, Guguinha, mas ele pensa que é brincadeira. Nem mainha acredita.
— Tá vendo só, meu querido? Existem muitíssimas coisas que o painho não sabe. Ele também não acredita nos seus sonhos, não é mesmo?
— Bem... — o garoto suspirou — acreditar, ele acredita, mas... diz que não são reais... diz que são coisas da minha cabecinha. Que não existe nenhum Parque da Lagarta Feliz. Não de verdade. Só nos sonhos, só aqui dentro... — apontou diversas vezes para a própria cabeça e suspirou.
— Mas você sabe que existe, Gui, você viu... ou melhor, você vê! Não é mesmo?
— Sim... você sabe, Guguinha. Vou a muitos lugares quando estou dormindo, mas às vezes acho que painho tem razão, são só sonhos bobos...
— Não, meu docinho. Você até disse que sabia o caminh...
— Eu disse que aaacho... Acho que sei. — O menino coçou a cabeça por um momento, então voltou a falar com mais segurança — Tem um pátio. Um pátio enorme, grandão mesmo, cheio de carros novos e brilhantes. E tem uma placa com uma palavra escrita... só que não me lembro o que tá escrito quando acordo. Mas sempre que vejo no sonho percebo que já sabia há muito, muito tempo. Tá de noite, mas o pátio tem muita luz branca bem bonita sobre aquele montão de carros..., e depois vem uma área escura. Eu não lembro muito bem do que tem nela, só de umas luzes azuis e vermelhas e eu sinto um pouco de...
— Depois vem o parque!
— É! O melhor parque de todos! — Ele abriu os braços — Com um montão de crianças, todas tão felizes quanto eu fico lá... e tem a Lagarta! Amarela e preta, e dentuça, com um sorriso muito engraçado.
— E ela fala?
— Sim... quer dizer... não exatamente. Fala como você, Guguinha. Ouço a voz na minha cabeça, mas a boca não se meche que nem as pessoas. Ela fica só sorrindo com os lábios vermelhos e os dois dentes enormes.
— E tem sorvete, algodão-doce, pipoca, picolé de limão, maçã do amor e os melhores brinquedos que se possa imaginar, né não, Gui?
— Os melhores! E a gente come tudo e anda nos brinquedos o tempo todo! — O garoto ergueu os braços, formando um grande V.
— Mas o melhor é a Lagarta Feliz, não é?
— Sim! Ela anda pelo parque inteiro, uma montanha russa enorme que sobe, desce e faz curvas por todo canto. Sempre damos tchau para as pessoas que estão na roda gigante. Sempre estão felizes. Essa é a melhor parte... — O garoto suspirou mais uma vez.
— Olha, Gui, você sabe que eu te amo, e sou teu melhor amigo, não é? Mas eu já conheci outras crianças antes... — Disse Guga.
— Mesmo? — Os olhos do garoto se iluminaram.
— Sim. Seu amigo tem girado suas rodinhas por aí desde o ano... bem, um ano que nem deve parecer real para você, que nem sonhava em nascer. Mas eu já estava por aí e levei muitas crianças para a... para o Parque da Lagarta Feliz.
— Então você pode levar a gente, Guguinha? Ah... mas painho diz que...
— Seu pai não sabe de absolutamente NADA! — Os limpadores de para-brisa do carro começaram a se mover rapidamente, raspando a poeira velha do vidro numa velocidade crescente.
— Desculpa, Guguinha, desculpa, me desculpa... — O garoto repetia as desculpas baixinho, abraçado ao volante do Fusca, de olhos fechados, com uma expressão de medo.
— Eu sei que ele acha que estou velho e que não sirvo para nada além de me desintegrar neste maldito lixão, mas ele não sabe QUEM EU SOU! — A voz era fria e rouca como ferro enferrujado.
— Ele diz que você é só um carro, mas...
— Está vendo? Eu sou só um carro? — A velocidade dos limpadores foi diminuindo aos poucos.
— Não, você é meu amigo... você é especial, Guguinha.
— Exatamente. Por isso mesmo é que eu conheço lugares incríveis... e posso levar meus amigos até eles, claro. Porque eu sou um carro muito do bonzinho.
O garoto abriu um sorriso largo, com um dente da frente faltando.
— Que maravilha, Guguinha! Vai ser maravilhoso. Vou mostrar meus amigos, o carrossel, a Lagar...
— Mostrar a mim, Gui? — A voz soou confusa.
— Claro... e a mainha e a painho. E eles finalmente vão acreditar! — Os olhos do garoto brilhavam como dois faróis de carro enquanto ele batia palmas.
— Gui.
— Oi, Guguinha.
— Eu disse que podia levar meus amigos, meus amigos, aos lugares especiais.
— Mas...
— Seu pai é meu amigo? Ele sabe quem eu sou? Ele pergunta como estou, ou ao menos passa um pano em minha lataria para remover essa maldita poeira, sei lá, uma vez na vida?
— Ele é muito ocupado...
— Ah, mas para o carrinho novo ele tem tempo, não é? E sua mãe?
— Ela gosta de você, diz que foi um bom carro...
— Fui?! Quer dizer que não sou mais! — Os limpadores de para-brisas voltaram a se mover, ainda mais rápidos que antes. — Deixei de existir só porque estou abandonado nesse maldito quintal desse bairro nojento... Longa Vista! Daqui eu não vejo é nada! E faz anos que não vejo nem a minha chave! Ah! Como sinto falta dela! — A última frase soou como um choro.
— Desculpa, Gu...
— Chega disso! Já estou farto! Vamos fazer um trato.
— Tá bem, tá bem...
— Você vai procurar onde seu pai guarda as chaves dos carros... dos carros que ele não usa mais... e vai trazer para mim aqui. Em troca, levo você, você!, ao parque da Lagarta Feliz para brincar o quanto quiser e comer maçã do amor e picolé até ficar com dor de cabeça. O que me diz?
O menino já não sorria.
— Só nós dois?
— Claro, seus amigos não estão lá?
— Mas meus pais não vão deixar, Gu...
— Gui, Gui... Guizinho, meu amor... Eles não vão saber!
— Mas...
— Você quer ir ou não quer? Quer continuar sonhando com a Lagarta e algodão-doce e depois acordar para ir para aquele colégio chato onde te chamam de coisas horríveis e te machucam? Acorde, Gui! Chega disso tudo! Decida-se!
— É que...
— Tudo bem, eu entendo, retiro a oferta. Saia e feche a porta. Feche a porra da minha porta. E não vamos conversar nunca mais. Agora sei por que ninguém gosta de você naquela escola nojenta.
Os olhos de Guilherme se perdiam em lágrimas.
— Não Guguinha, por favor — soluçava freneticamente — você... é... meu... meu amigo, meu... amigo...
— Só seu amigo?
— O melhor... o melhor amigo!
— Então devia confiar mais em mim!
— Mas eu confio! — chorava abraçado ao volante do Fusca.
— Então faça como eu disse! Vamos juntos para o Parque da Lagarta Feliz, e eu duvido que você venha a chorar novamente como está chorando agora. Não vai chorar nunca mais!
— E meus... tá... tudo bem. — O garoto enxugava os olhos com as costas das mãos.
— Traga a chave para mim. Pode ser que ela ainda esteja presa no chaveiro da Pepsi. Descubra onde seu pai o guarda e venha. Vamos passear.
— Sei onde ficam as chaves velhas. Vou trazer para você, Guguinha.
— Agora não. Agora sua mãe está em casa, e tem muita gente na rua. Terá que ser de madrugada, quando estiverem todos dormindo. Você vem mais cedo e deixa o cadeado do portão aberto. Depois, quando todos estiverem dormindo, pegue a minha chave e venha para nossa voltinha.
— Tá certo... combi-combinado...
— Não vá falhar comigo, Gui.
— Não, Guguinha, não vou não. — O garoto deixou o assento do carro e fechou a porta com delicadeza.
— E, Gui, lembre-se: eles não vão saber.
O garoto partiu aos saltos, com um sorriso no rosto que ele imaginava ser do tamanho do da Lagarta Feliz do parque dos seus sonhos. Porém, agora, à noite, a ideia não parecia ser tão boa assim. Cada passo dado no quintal emitia um som dez vezes mais alto que o esperado. Lutou, com o coração batendo na garganta, para fazer o máximo de silêncio possível até se aproximar do Fusca. Um dos postes da rua lançava um feixe de luz alaranjada na porta do carro, destacando o número 63. Pôs a mão na maçaneta e a retirou subitamente com um grito, sentindo um arrepio que foi da mão até sua espinha e se espalhou pelo corpo inteiro. O metal da maçaneta estava frio como gelo.
— Gu... — Começou ele. Então ouviu um clique e viu a porta se abrir lentamente com um chiado.
— Sabe, Guguinha...
— Vai ficar tudo bem, meu bem... trouxe a chave?
— Tá... Tá aqui... — Ele ergueu o chaveiro velho da Pepsi, com uma chave pendurada.
— Então vamos logo. Temos que ser rápidos. Vamos que vamos!
O garoto entrou, sentindo-se confortavelmente aquecido, e lançou um olhar para a casa onde vivera toda sua vida acordado.
— Painho, mainha... me desculpem. — Falou baixinho.
— Vamos lá, Gui, se anime! Essa noite será i-nes-que-cí-vel!
O garoto notou a mudança no tom de voz do amigo. Parecia agora um apresentador de programa de domingo na televisão. Lembrou-se do parque, dos brinquedos, da lagarta... e dos amigos, tantos, todos tão felizes... e todos gostavam dele. E ninguém o machucava.
Enxugou os olhos com a mão e sorriu. Girou a chave na ignição e tomou um susto quando o câmbio de marcha do carro se moveu sozinho, engatando a ré, enquanto o motor do carro emitia um som que lhe parecia o engasgo do maior cachorro do mundo, intercalados com estouros estridentes.
— Ai, meu Deus, meu Deus do céu... — O garoto repetia, segurando firme no banco do carro.
Guga arrancou, cantando pneu, levantando uma imensa nuvem de poeira, e esbarrando de raspão em pelo menos três outros carros — um deles ficou cego de um olho com o impacto. O portão, que tivera seu cadeado removido mais cedo, restando apenas uma grande corrente enrolada, se abriu instantaneamente com a batida, dando passagem para o Fusca 63.
— Estou livre! Finalmente livre! Posso ir para casa, finalmente! — Guga gritou eufórico.
O garoto também gritou, mas de medo, aferrando-se ao banco rasgado do carro.
— Vamos voltar, Guguinha! Vamos voltar! — Implorava.
Então o rádio do carro ligou, estranhamente sintonizado na inexistente frequência de 93.63. Começou a reproduzir em alto volume uma das canções favoritas do garoto. À medida que a música prosseguia, o garoto ia parando de gritar, e começava a sorrir. Quando veio o refrão, ele já cantava alegremente, a plenos pulmões:
"Super fantástico!
No Balão Mágico
O mundo fica bem mais divertido!"
E o Fusca 63 prosseguiu através da madrugada por ruas desertas até a Avenida Recife.
— Tá perto? — Perguntou o garoto, quando a música acabou e o rádio se apagou como se nunca houvesse ligado.
— Vamos abastecer primeiro. A gasolina que você me deu de beber semana passada já está quase acabando.
— Mas eu não tenho dinheiro, Guguinha...
— E quem disse que a gente precisa disso?
— Eu quero ouvir outra música...
— Se você se comportar, terá mais...
— Mas...
O carro acelerou em direção a um posto Shell, que estava fechado àquela hora, e esbarrou na corrente de proteção. Um dos pinos de ferro que segurava a corrente foi arrancado do chão e voou direto no vidro do lado do menino, que tomou um banho de estilhaços.
— Desce logo antes que alguém nos veja! E me abasteça como você já viu os homens fazendo.
Com a adrenalina a mil, o garoto desceu do carro, no mesmo instante começou a chover. Ele parou por um momento para enxugar o rosto. Tinha pequenos cortes nos braços e um grande talho na testa. Sangue escorria pela lateral do seu nariz até a boca.
O garoto viu que a pistola da bomba de gasolina estava numa altura que ele não iria alcançar. Arrastou um caixote de madeira que estava sobre um monte de lixo. Correu com o caixote para a bomba, subiu em cima dele e retirou a pistola de abastecimento.
— Rápido, Gui, rápido! — Apressou Guga.
Pouco depois ouviram as sirenes.
— Chega, chega! Entre no carro, a polícia tá vindo, vamos embora!
O menino deixou a pistola de combustível cair e voltou esbaforido para dentro do carro.
— Pé na estrada! — Guga gritou e saiu cantando pneu com os limpadores de para-brisa limpando água e poeira acumulada por anos no vidro.
— Estamos chegando?
— Quase. O portal fica numa rua sem saída, mas se formos pegos antes de atravessá-lo nunca chegaremos ao parque.
Guga acelerou, abafando o ruído das sirenes com o ronco do motor. A perseguição durou por cerca de trinta minutos, mas o fusca não reduzia nas curvas, invadia as calçadas, furava os sinais vermelhos, e atropelaria qualquer animal que resolvesse aparecer na frente sem pestanejar — como de fato aconteceu com um gato que voltava de uma aventura noturna e foi quase dividido em dois pelo pneu do fusca. O garoto só ouviu a pancada e viu sangue espirrar sobre o para-brisa, sendo lavado em seguida pela água da forte chuva que caia.
— Após essa curva, próxima parada: Parque da Lagarta Feliz! — Disse Guga, finalmente. Então ele fez uma curva fechada, invadindo a calçada e derrubando dois baldes cheios de lixo e ratazanas. No fim daquela rua havia um muro alto, velho, cheio de lodo e pichações. Não parecia um portal aos olhos do garoto. Uma das pichações dizia:
"Num precisa parar o trem não, é só sair quebrando os vagão",
em grandes letras tortas e relaxadas. Um 63 pintado em preto e amarelo estava coberto por um X em tinta spray vermelha. Abaixo havia o número 93 pichado da mesma cor.
A ansiedade era visível nos olhos do garoto que trincava os dentes enquanto fitava o muro à sua frente. As viaturas estavam tão próximas que ele podia ver as luzes azuis e vermelhas refletindo no retrovisor do Fusca.
— Chegou a hora! Chegou a hora! Conseguimos, Gui! Conseguimos! — Gritou Guga.
Cada vez mais perto, cada vez mais perto... Muito, muito perto e... um forte impacto seguido de um flash.
Havia um pátio enorme, repleto de carros novos. Luzes fluorescentes em altos postes iluminavam cada um deles como se estivessem imbuídos de uma energia sagrada. Cada carro parecia a coisa mais bela que o garoto já tinha visto na vida. Cada contorno, cada peça milimetricamente projetada para encaixar-se com perfeição no projeto maior. Cada farol era como os olhos dos apaixonados. Cada para-choque, uma testemunha da organização perfeita e do amor que havia na criação, em todas as criaturas e coisas que pudessem existir. O garoto caminhava extasiado.
Antes, quando acordado, não conseguia lembrar-se de todos os detalhes do sonho, mas agora tudo fazia sentido. Deveria cruzar o pátio dos carros novos, deixar para trás toda sua luz fluorescente e beleza. Deveria prosseguir até a área escura se desejasse mesmo chegar ao parque. E deveria cruzar a área escura.
Começou a correr e percebeu que o fazia como nunca antes. Não se cansava. Seu corpo não parecia sujeito à gravidade. Corria com um enorme sorriso, vendo os carros à sua volta passarem belos e iluminados. Aquilo durou por um tempo paradoxalmente longo e breve. Como se toda uma eternidade passasse em segundos diante dele. Então encontrou a placa que anunciava a chegada do que chamava de área escura. Havia apenas uma palavra escrita em tinta spray amarela:
VOLTE
Guilherme respirou fundo, decidido a seguir em frente. Não tinha ido tão longe para desistir por causa de uma pichação qualquer. Continuou e chegou à área escura com a sensação de que dias tinham se passado. Não via nada além da neblina. O frio era tão forte que seu corpo quase recuou automaticamente para o pátio dos carros. Então ele se lembrou dos amigos que o esperavam no Parque da Lagarta Feliz, onde não fazia frio, e continuou.
O caminho começou a ficar cada vez mais íngreme. Cada passo que dava era mais difícil que o anterior e a temperatura ficava ainda mais baixa. Finalmente chegou ao topo do que parecia um grande monte cujo cume se erguia acima da neblina. De lá, ele viu, distante, à frente, o Parque da Lagarta Feliz, com os infinitos e sinuosos trilhos vermelhos por onde a lagarta trenó levava as crianças mais felizes que já encontrara, com o maior dos sorrisos estampado no rosto. Seus olhos verteram lágrimas mais carregadas de emoção que qualquer uma já vertida. O garoto começou a descer a colina, correndo e sorrindo, sorrindo e correndo ainda mais rápido.
No meio da descida, lembrou-se de Guga. Com o susto que a lembrança o causou, perdeu o controle das pernas que corriam cada vez mais rápido e acabou tropeçando e caindo de barriga no chão. Suportou a dor sem chorar graças, mais uma vez, à certeza de que em breve estaria no parque. Levantou-se, limpando a sujeira da sua camiseta do Mickey Mouse. O amigo não era criança e saberia se virar sozinho, talvez até já estivesse lá esperando por ele.
— Me espere, Guguinha, não vá começar a brincar sem mim...
Inúmeros pontos de luz acenderam-se subitamente à sua frente. Azuis e vermelhas, as luzes pareciam emoldurar uma grande máquina. Poderia ser uma espécie de retroescavadeira, ou um grande robô, não conseguia discernir a forma entre feixes de luz colorida e neblina.
A coisa movia-se resolutamente em sua direção.
— Corra, Gui, fuja! — Falou a voz de Guga, pela primeira vez desde que Guilherme estava ali, mas ele não estava visível em nenhuma parte.
— Guguinha, é você? — Gritou o garoto, começando a correr de volta, colina acima.
— Você está quase conseguindo, não desista Gui, não desista!
Mas subir a colina, diferentemente de como era no pátio dos carros novos, era um desafio grande demais para suas pernas pequeninas. E a coisa se movia rápido. Tudo em sua volta era uma confusão de formas indefinidas, escuridão e luzes vermelhas e azuis que não paravam de se mover. Uma espécie de pinça mecânica o segurou pela cintura.
— Socorro, Guguinha! Socorro! — Gritou o garoto começando a chorar.
Então ouviu um estralo e soube, pela dor dilacerante, que algo importante dentro de si estava irremediavelmente quebrado. As luzes vermelhas e azuis se intensificaram até que sua vista escureceu. Sentiu-se numa viagem, através de um longo túnel escuro sem nenhuma luz no final, durante a qual tinha alguns lampejos de consciência.
Luzes azuis e vermelhas piscando.
Pessoas gritando seu nome.
Uma confusão de ferro retorcido.
Gritos.
Choro.
Cheiro forte de gasolina.
Medo.
"Ainda bem que o motor não é na frente..." — Uma voz distante.
A porta do Guga retorcida, luzes vermelhas e azuis refletiam nas gotas de chuva que a cobriam, focada como num zoom que destacava o número 63.
Uma maca.
A voz de sua mãe.
O choro dela.
A dor insuportável.
Por fim o confortável nada.
***
A suspeita de sequestro do garoto Guilherme Batista Moreira, que resultou na colisão de um veículo com o muro de um terreno baldio do bairro de Jardim São Paulo, foi uma das notícias mais comentadas no noticiário local. Perguntas como: “por que roubar um carro velho quando havia outros mais novos no quintal?” E “como o sequestrador escapou ileso de uma colisão que transformou um Fusca numa bola de ferro retorcido?” Aliás, “quem foi o sequestrador, para começo de conversa?” O fato é que o garoto jamais poderia ter dirigido o automóvel, seus pés não alcançavam se quer os pedais... mesmo ele tendo sido encontrado no banco do motorista.
***
39 dias após sua aventura noturna, Guilherme finalmente teve alta do Hospital da Restauração, onde permaneceu em coma por nove dias.
Seu pai está no banco da frente de um táxi, comentando o último jogo do Sport com o motorista, e sua mãe, ao seu lado no banco de trás, parece estar no meio de um dilema sobre como expressar o quanto está feliz em seu filho estar voltando para casa depois de mais de um mês internado. Ela abre a boca como se fosse dizer algo... então se cala. Se aproxima como se fosse fazer algum carinho no menino... então recua. O garoto apenas observa as folhas nos galhos das árvores à beira da estrada passando através da janela do táxi. Estar ao ar livre depois de tanto tempo é bom, mas seus olhos parecem perdidos. As coisas mais comuns lhe parecem estranhas.
— Fiz batata frita para o almoço. — A mãe diz, finalmente. E faz um breve cafuné na cabeça do filho. Ele parece nem notar.
Quando o táxi entra no quintal da casa de Guilherme, a primeira coisa que ele faz é procurar por Guga, fitando o local onde seu único amigo sempre estivera. O Fusca, claro, não está lá, assim como o carro novo do seu pai, o que tanto causara ciúmes a Guga, também não está. Só as velharias caindo aos pedaços ainda permanecem no quintal que mais parece um ferro velho.
O carro estaciona próximo à entrada da casa. O motorista e o pai desembarcam. A mãe parece ainda não ter percebido que chegaram em casa. Com a cabeça baixa, enxuga os olhos e soluça. Guilherme ainda olha pela janela para o lugar onde antes ficava o Fusca. A porta do seu lado se abre e seu pai se curva para pegá-lo nos braços. Nenhum dos dois fala.
Seu pai empurra uma cadeira de rodas que viera no porta-malas do carro com uma mão. No outro braço carrega o filho. A mãe vem logo atrás, ainda soluçando baixo. O motorista murmura um "obrigado", e dá partida no motor do Gol. Não há resposta. Ele dirige devagar em direção à saída da propriedade.
O pai coloca a cadeira de rodas no terraço... então pousa o filho gentilmente sobre ela. Sem dizer uma palavra, ergue-se e encara a esposa, como se esperasse encontrar nela o que dizer. Ela abafa uma crise de choro e entra em casa, soluçando sem parar.
Quem quebra o silêncio é o garoto.
— O que foi, painho?
—Nada. Você está bem. — O pai apressa-se em responder.
— Gostei dela. — Diz o menino. — Confortável. — “Que nem o Guguinha”, ele pensa.
O pai fecha a grade do terraço. E começa a empurrar a cadeira de rodas com o filho para dentro.
O garoto observa uma numeração gravada do lado de dentro do apoiador de braço:
3.39.36.3.63.63
— O que é esse número, painho?
— Isso? É o número de série, eu acho.
O garoto, com os olhos agora mais presentes e úmidos, passa o dedo lentamente por cima dos números, suspira e murmura:
— Me espera, Guguinha. Me espera.
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