Último abraço.

Tanta gritaria...

Só ela ia contra aquela maré. Forte maré. Águas agitadas, almas desesperadas. O teto desabara noutro corredor, o jeito era ir por este, que duraria pouco tempo, mas era a única forma, apesar de tudo. Já começava a fumaça negra a chegar, aquela multidão, estagnada como estava, logo viraria tranquilidade eterna caso não conseguissem destruir o portão principal, mas não importava sair com vida se a razão dela lá dentro ficasse a ser sufocada e, mais tardar, ser esmagada pelo edifício.

Avançava poucos centímetros a cada minuto, tanta gente...

Pisou n'algo diferente da laje, olhou para o chão e viu sangue: um idoso que fora pisoteado...

Ou continuava o percurso insensível ao defunto ou todo o esforço serviria como tirar água do oceano com uma colher. Mas espaço para sensibilidade, respeito e humanidade não havia mais ali, adiantaria isso de quê? Já estava morto, dois pés entre outras centenas não faria diferença. Seguiu.

Já estava perto do corredor que possuía as camaratas, um breu nevoático e mortífero...

Seguiu mais, fazendo o esforço que seu corpo nunca fez ao longo dos seus quarenta anos de vida. Assim conseguiu chegar. Viu arrastar-se uma mulher que muito tossia. Essa, chorando, pediu-lhe ajuda. Ela olhou no fundo de seus olhos agoniados, olhou depois para o corredor, ouviu um choro que não existiu e tomou a decisão. Mais uma das tantas que aprendeu a não sentir remorso.

Correu, se guiou apenas pela memória. Os olhos ardiam tanto... Respirar, ali, virou fonte de dor. Sentia a morte entrando pelas narinas. Havia um redemoinho obsidiânico sobre si, era a tontura. Mas, cambaleando, caiu sobre a porta 3-B...

Aquela porta.

A que dava acesso à sala que brilhava por dentro. Tentou abrí-la, mas a maçaneta estava travada, apenas queimou a mão. Gritou, chorou, bateu, chutou... Mas estava tudo tão quente que, por causa disso, os ferrolhos se dilataram de modo a afrouxar a porta. Insistiu mais um pouco e ela veio a baixo, quase caiu junto.

Um pequeno foco de fogo iluminava um volume num cantinho da parede. Estava coberto de panos pretos. Sorriu, aliviada. Correu tropegante até ele, rindo de alegria. Abraçou o filho... carbonizado. As lágrimas saíram para aliviá-lo. Foi o último abraço na vida terrena. A mulher esvaiu-se, virou pó.

~

ñ. r.

ñ. p.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 08/09/2021
Código do texto: T7338045
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