saudades; ressaca sem água
Deito a minha cabeça na janela trepidante. O vagão e os meus olhos correm por todas aquelas casas e vidas ao redor. Já fiz parte de uma dessas casas suburbanas, de uma vida convencional, uma que nunca pensei que a sorte me daria mas ela deu, e arrancou, a desfortuna é mais dolorosa. As memórias febris me turvam aridez na garganta e sinto sede do meu minúsculo cantil de vodka na mochila. O trem se aproxima daquele ponto específico e mais uma vez irresistivelmente ergo meus olhos àquela casa que me ameaço mortalmente a não fitar. E lá está ela, mas diferente dos demais dias àquela hora da tardinha ela não está sentada no terraço bebendo o que sempre supus ser chá, e sim à beirada do apoio com os pés agitados ao que parece ser no celular e balançando o braço livre como numa discussão entre linhas. Lembro que já gostei muito de chá e que também já estive à beirada do terraço numa similar posição discutindo ao celular. Hoje o amante dela não está em suas costas a massageando como me deparei anteontem. Eu os observo e aquele ponto rotineiramente. Observar aquilo que não possuo mais é o que me restou. Eles têm o que perdi há um tempo e como a um alcoólatra me recuperar tem sido impossível. A memória do sabor me coage a ansiar mais e mais me embebedar do passado. O trem bruscamente avança e passa, e num momento perco de vista. Perder em nossa vida é tão demasiadamente fácil. O que nos prende é a memória do momento. E a minha memória é uma prisão. Necessito me libertar. Quando desço do vagão me desprendo um pouco com o ar ventanoso gélido. Uma tempestade trovoa se aproximando, mas não tenho mais pressa para chegar em casa. A uma casa de só saudades desiludidamente paranoicas. Com tanto esperar que algo venha, decidi arrancar para mim, a espera portanto não me perturba mais. Entro em casa, tranco a porta, e me rumo à do porão. Beberico um gole profundo do cantil de vodka trepidante nas minhas mãos ansiosas. Abro a porta, e ranjo a minha chegada na escadinha, e sou respondido por outro rangido abrupto lá embaixo. Acendo o bocal de luz, e centralizadamente pelo foco alaranjado, o vejo preso amordaçamente à uma cadeira cravada ao chão. Ele é o que eu não poderia possuir mais. Ele pertence agora àquela alterada na beirada do terraço do que um dia fora o meu terraço também, a minha casa. Pertencia. A partir do momento em que ele reapareceu na minha porta ante a um pedido inesperado meu, fora a vez dela de perder. Retiro da minha mochila um punhal que comprei hoje, que me lembrou ao punhal que ele agora tão indefeso uma vez desferiu corajosamente ao meu iludido coração. “Eu não te amo mais,” essas palavras ditas tão sãs me turvaram por terra na pior e mais longa ressaca. Lágrimas se esparramam de seus olhos esbugalhados pidantes por piedade silenciado pela fita apertada na boca. Já chorei daquela maneira ante à irreversibilidade incontáveis vezes. Vê-lo chorar não me anima ou excita, caso suponha. Deslizo meus dedos com o punhal cintilante gentilmente pelos seus ombros, como já o vi fazer com suas mãos macias àquela outra bebendo o seu chá vespertino, como já fez em mim antes várias vezes. Mas hoje, ele é meu, em minha própria casa. E não estou com pressa para pegar o vagão amanhã e fantasiar com a vida que já tive. A fantasia se revigorou em realidade palpável mais uma vez. Mas tocá-lo não me é mais suficiente, ou tê-lo dentro de mim por minutos. Anseio ingeri-lo, por inteiro. Estive pesquisando mais cedo sobre receitas com bifes de coxas. É por onde irei começar. Irei tê-lo de uma forma completa, até os ossos. Só para mim.