Detective

Noite de lua cheia, casa totalmente escura,  o rasgar do crepúsculo é anunciado. Tacteio em cada canteiro sem acender a luz.

“Não posso dar nas vistas, estou num ninho de marimbondos. É uma colmeia”, penso.

Vejo espalhado no chão, pedaços da sua roupa, só os mais íntimos, um em cada metro quadrado, como se tivessem sido rasgados, mas não com aquela violência de ferir o corpo, talvez não o corpo dela, o meu. Sinto um aperto, o som, os batimentos não cabem no meu peito, há uma espécie de conflito entre o corpo e o coração, como se tivessem descoberto uma incompatibilidade. Anuncia-se um colapso.

Seguro a tentação, chilreio por entre o corredor, manso, trémulo, mas não posso ser notado então redobro o esforço.

“É apenas uma foto, uma espreitadela na vida dela, em tudo na verdade. O que tem feito na minha ausência?”, me pergunto, enquanto cambaleio com a mão direita sobre o peito.

Ouço gemidos abafados, gritos, mas não é de dor. Arrependo-me. Paro, fico praticamente plantado na sala. Há uma secretária no centro, brilha, é do verniz . Flutuo até ali e confiro a foto no cimo.

O corpo parece engolido pela escuridão, mas o rosto se apresenta nítido, com luzes, consigo enxergar mesmo no escuro. Tem também papéis e uma lanterna minúscula sobre a mesa. Tiro cuidadosamente a lanterna e pressiono o botão, iluminando apenas o papel.

“Divórcio”, consigo ler.

Num súbito, faz vento, muito vento e os gritos aumentam freneticamente. Entro em desespero, quase grito, os meus olhos humedecem.

“Já não consigo ignorar, não posso”, lamento.

Corro até aquela porta no fim do corredor e já nem me importo com a discrição. Estou muito zangado. Dispenso as instruções do detective. Preparo-me para o pior. Afasto-me para apanhar balanço e jogo-me naquela porta.

“Ela é minha!”, grito.

Estou numa cama, nem acredito. Luzes envolvem o meu rosto, é manhã. Há uma carta sobre a escrivaninha. Olho à volta, o ambiente parece-me familiar, as roupas no chão, minhas roupas creio eu. Desço da cama e caminho até aquele guarda-fato enorme. O cheiro de perfume feminino ainda paira no ar. Abro o guarda-roupa e confirmo as minhas suspeitas.

— Ela se foi.

Fim.

#ésobrenós

Siga-nos no Instagram: lucascassule.ao

Lucas Cassule
Enviado por Lucas Cassule em 15/08/2021
Código do texto: T7321436
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.