Vingança
A vingança é um prato servido frio e dividido entre as duas partes.
O bar estava vazio àquela hora o que era incomum, o bar de Zélia raramente ficava vazio e Egberto compreendeu aquele acontecimento como uma providência divina no momento em que pôs o pé na porta e viu o velho Nicolau sozinho ocupando uma mesa enquanto Waldick Soriano disparava seu vozeirão pelas caixas de som.
Lá dos fundos a voz da proprietária o cumprimentou num sonoro “dia, seu ‘gberto” e ele respondeu esforçando-se para falar no mesmo tom, não chegando nem perto. Nicolau lançou-lhe um olhar meio de lado e acenou, chamando-o. Era um velhinho miúdo que ocupava sua vida fumando cigarros feitos a mão e andando pelo mato acompanhado por seus cachorros com quem gostava de conversar de igual para igual; era inevitável a estranheza quando visto sem eles, parecia desprovido de um braço ou uma perna.
- você ta péssimo, menino – sussurrou o velho por entre os dentes. Para velhos como ele, todos eram meninos – não tem dormido?
- não muito bem. Farei cinqüenta e sete na semana que vem.
- te pago uma cerveja hoje, quer? Ou um cigarro. Não sei se estarei aqui na semana que vem.
- nem eu – sentiu as mãos tremerem e tentou disfarçar sacudindo-as.
Sem dizer nada o velho arrancou papel e um pacote de fumo do bolso e pôs-se a trabalhar no tampo da mesa. Em poucos segundos um cigarro estava estendido para ele que acendeu e fumou-o em silêncio.
Os minutos estenderam-se. No rádio Soriano passou sua vez para Erasmo Carlos que foi substituído por Vanuza. Os dois homens fumaram quietos. Zélia apareceu enxugando as mãos no avental.
- gostaria de algo seu ‘gberto?
- cerveja pra ele, mocinha – adiantou-se o velho - pra mim outra dose dessa cachaça com mel.
Ela assentiu e retornou em silêncio com os pedidos.
- já experimentou? – perguntou Nicolau, que apenas provou estalando a boca.
- não.
- deveria.
- um dia – suspirou - Amanhã é aniversário de Mônica, sabia? –Egberto tinha a voz ligeiramente embargada.
- e como ela ta?
- morta.
O velho nada disse por um longo tempo.
- eu sinto muito por ela – apagou o toco do cigarro na mesa e pôs-se a fazer outro - E você, o que vai fazer?
- eu nada. Você vai – enquanto falava meteu a mão no bolso e trouxe-a fechada. Mantendo-a sobre a mesa sem abrir.
- ah – fez Nicolau.
- é, ah! – havia desdém na voz de Egberto, mas, também autocontrole.
- quer mesmo seguir adiante com isso?
- quero.
- está ai? – apontou o punho fechado.
- está.
- você fez direitinho, como te ensinaram ou pagou para alguém fazer por você?
- eu tive ajuda.
- derreteram a prata, puseram num...
- Isso! Não preciso de uma aula agora.
- bom, que bom. Eu tenho meus cachorros e sei que vão sentir minha falta. Vai cuidar deles por mim?
Egberto pareceu pensar um pouco a respeito. Balançou a cabeça:
- não, eles nunca irão se adaptar a outro dono.
- é verdade, são bichos muito leais... Eles vão sentir dor?
- eu vou cuidar pra que não sofram. Prometo.
- obrigado. E eu? Vou sofrer?
- sinceramente... Eu não sei e não me importo.
Nicola encarou-o, os olhos brilhavam.
- eu lhe entendo – disse o velho – e se serve de consolo...
Egberto abriu a mão deixando a mostra uma bolinha prateada sobre a mesa. Nicolau calou-se de imediato atraído pela brilhante gota de prata. Então acendeu o cigarro e fumou-o até o fim. Quando acabou, pegou a bebida.
- é pra ajudar a descer – explicou.
- não vai implorar por sua vida? – indagou Egberto.
- não. Vivi muito, menino. Fiz coisas que não me orgulho e tenho bastante sangue nas mãos. Quito aqui minhas dívidas que são muitas – e assim dizendo apanhou a balinha de prata, engoliu lançando a cachaça por cima e voltou-se a seu cigarro. Não disse mais nada.
No rádio, Renato Russo iniciou com sua voz grave: Luz e sentido e palavra, Palavra é o que o coração não pensa...
Egberto ainda ficou um tempo sentado a mesa fitando-o. Sorveu os últimos resquícios da fumaça do cigarro como se buscasse preencher um vazio que se apossava do seu peito e quando sentiu que não havia mais nada a fazer ali, partiu.