SONÂMBULO
Essa história é uma mistura de comédia com drama. Como dizem por aí: “Seria cômico se não fosse trágico”. Eu prefiro dizer que é tipo um hilário terror. Bom, vou deixar a brincadeira de lado e ir direto ao que interessa... a história. Tudo começou um dia, quando meu primo Carlinhos foi passar uns dias na minha casa. Eu morava sozinho e ele foi pra lá porque eu estava de férias. Se não me engano, acho que o Carlinhos passou dois dias lá. Ele era bem mais jovem do que eu; um adolescente inexperiente. A ideia da visita era passear, conhecer os pontos turísticos da região e estar perto do primo mais velho que ele tanto admirava. Eu sempre tive um carinho grande por ele também.
Fazia um tempão que eu não via o Carlinhos; acho que a última vez que eu o vi ele era uma criança. Quando ele chegou lá em casa, no início da tarde, percebi que ele já tinha até barba na cara. Foi muito bom revê-lo. A gente conversou por horas, dando risada e contando histórias. Quando anoiteceu, comecei a preparar nosso jantar. O Carlinhos ficou sentado na mesa da cozinha enquanto a conversa não parava. Logo o jantar estava pronto e jantamos. Eu estava muito feliz por ter recebido a visita do meu primo. Depois do jantar o Carlinhos me ajudou... eu lavei a louça e ele secou.
A conversa continuou. Não nos faltava assunto, mas quando já ia passando da meia noite, eu já estava com sono. Eu disse ao Carlinhos que precisava ir dormir, mas antes eu iria preparar a cama dele na sala. Peguei um colchão, coloquei no chão com lençol e um bom cobertor e falei para o meu primo ficar a vontade. Disse ainda que se ele quisesse, poderia ficar assistindo TV. Foi aí que percebi que o Carlinhos estava estranho, com cara de quem estava preocupado; meio cabreiro. Perguntei se estava tudo bem com ele. Ele respondeu que sim, mas continuava parecendo inquieto. Perguntei mais uma vez se ele estava confortável ou precisava de alguma coisa... e aí, ele falou.
Nitidamente angustiado, Carlinhos me perguntou se eu poderia esconder todas as facas da cozinha em um lugar onde ele não tivesse acesso. Fiquei surpreso com a estranha pergunta dele e imediatamente quis saber qual o motivo da preocupação do meu primo. Ele suspirou e meio sem graça me contou que era sonâmbulo e tinha medo de levantar durante a madrugada, pegar uma faca e se machucar ou machucar alguém. Pedi que ele não pensasse naquilo e argumentei que ele provavelmente dormiria bem aquela noite, pois estava em um lugar diferente da casa dele; além disso, certamente teria um sono profundo por estar cansado após de um dia agitado. Ele concordou.
Avisei ao Carlinhos que se precisasse de qualquer coisa, era só me chamar que eu estaria no quarto ao lado. Antes de me recolher desejei uma boa noite e ele me respondeu da mesma forma; parecia mais tranquilo. Por via das dúvidas, tranquei a porta do meu quarto e fui dormir. Fiquei pensando que assustador seria acordar com um sonâmbulo de faca na mão decido a matar. Imaginei que aquele papo do meu primo era exagero dele, influenciado por aqueles filmes que os adolescentes gostam de assistir.
Eu sei que o assunto sonambulismo é algo muito sério. O sonâmbulo não tem uma noção real do que está fazendo. Por isso, muitas vezes cria situações perigosas, podendo não só se ferir com gravidade ou ferir alguém, mas também se colocar em risco de morte. O sonambulismo é mais comum em crianças e tende a ser superado na adolescência, mas não são raros os casos em pessoas adultas. Recentemente teve o caso de uma mulher que sofria de sonambulismo e caiu da sacada de um hotel. A mulher não morreu por pouco e segundo o próprio relato, ela acreditava estar indo ao banheiro quando pulou da sacada no segundo andar.
Tive uma ótima noite de sono e acredito que o Carlinhos também; afinal, quando eu levantei para preparar o café da manhã ele ainda estava dormindo como uma pedra. Chamei o meu primo avisando que o café estava na mesa e ele acordou e levantou. Perguntei ao Carlinhos se ele teve uma boa noite de sono e me respondeu que sim. Após o café nós saímos para passear pela cidade. Mostrei para o meu primo os lugares bonitos da cidade e ele adorou; fotografava tudo. Passamos o dia todo fazendo turismo.
No final da tarde, voltamos para minha casa. Decidi que não ia cozinhar, eu estava cansado por conta do dia cheio que tivemos; resolvi pedir uma pizza grande para nós dois. Tinha uma ótima pizzaria na cidade. A noite chegou e como sempre, a conversa estava animada. Peguei o telefone e pedi a pizza... trinta minutos depois, o motoboy entregou. Comemos tudo. A fome era grande. Depois de comer, lavei os pratos e convidei o Carlinhos para assistir um filme. Meu primo topou.
Assim que o filme acabou, eu já estava morrendo de sono. Falei para o Carlinhos que ia dormir, desejei uma boa noite e fui para o meu quarto. Meu primo também se deitou e provavelmente dormiu logo em seguida. Acordei de madrugada ouvindo uma voz... fiquei tentando entender o que estava acontecendo. Pensei que o Carlinhos tinha deixado a TV ligada, mas não. Era o meu primo falando sozinho, ou melhor, falando dormindo. Lembrei que ele havia me avisado que era sonâmbulo e eu lembrei imediatamente das facas na cozinha. Fiquei preocupado, mas achei que falar dormindo era mais comum do que se pensa. Porém, era só o começo...
Carlinhos começou a ficar alterado, como se estivesse discutindo com alguém e antes que eu levantasse da minha cama, ouvi meu primo levantando, abrindo a janela da sala com violência e gritando como um louco. Dei um pulo da cama e quando cheguei à sala, o meu primo já tinha pulado a janela. Carlinhos saiu pela rua gritando, esbravejando e ameaçando de matar. Pensei que ele pudesse ter pegado uma faca na cozinha... e bem que ele me alertou. Fiquei com medo que ele se ferisse ou ferisse alguém. Corri para alcança o meu primo na escuridão da madrugada.
Provavelmente a vizinhança toda acordou e devem ter achado que era mais um bêbado incomodando na rua. Quando consegui alcançar o Carlinhos, fiquei com receio de me aproximar, pois eu não sabia se ele tinha algo nas mãos; eu não conseguia ver. Falei com ele mantendo uma distância segura, mas ele parecia estar em transe. Cheguei mais perto e o chamei pelo nome; ele resmungou alguma coisa ameaçadora. Fiquei com medo, aquilo estava parecendo um filme de terror. Se o meu primo não tivesse me contado que era sonâmbulo eu acho que nem chegaria perto dele, pois ele parecia estar possuído por um espírito maligno. Ele ficava o tempo todo de cabeça baixa, com uma respiração ofegante e resmungando coisas estranhas.
Eu precisava acordá-lo e leva-lo pra casa em segurança. Ao contrário do que se pensa, não tem problema algum em acordar um sonâmbulo; o máximo que pode acontecer é ele acordar, ficar confuso por um breve momento e logo fica bem. Percebi que Carlinhos não tinha nada nas mãos. Foi então que cheguei perto, abracei o meu primo e com voz firme o chamei pelo nome. Ele acordou parecendo meio perdido e confuso, quis saber o que houve e eu pedi que me acompanhasse.
Finalmente consegui leva-lo pra casa. Fiquei preocupado com a reação dos vizinhos, pois não sabiam o que estava acontecendo e se chamassem a polícia, seria um saco explicar aos policiais sobre o sonambulismo do Carlinhos àquela hora da madrugada. Caminhamos quase uns mil metros e entramos em casa. Meu primo parecia cansado, sonolento. Acompanhei-o até a cama e pedi que deitasse e descansasse; falei pra ele que pela manhã eu contaria tudo que aconteceu. Carlinhos deitou e dormiu quase que instantaneamente. Já eu, passei a noite em claro tomado pela adrenalina.
Pela manhã, fiz o café e esperei meu primo acordar. Não quis chama-lo. Carlinhos não demorou em acordar e levantou cedo. Quando chegou à cozinha, me olhou com cara de quem sabia que tinha feito bagunça por conta do seu sonambulismo. Antes de dizer bom dia já foi pedindo desculpas pelo transtorno. Eu abracei o meu primo e falei que não precisava se desculpar. Eu disse que compreendia perfeitamente toda a situação e que graças a ele, eu tive uma madrugada extremamente “divertida”.
Enquanto tomávamos o café da manhã, narrei de maneira leve para o Carlinhos todo o episódio ocorrido na madrugada. Deixei bem claro o imenso carinho que eu sentia por ele e o aconselhei que procurasse um médico especialista em sonambulismo para tratar o seu caso; para sua segurança e das pessoas ao seu redor. Meu primo concordou comigo e disse que faria isso ainda naquele dia. Preocupado, decidiu voltar para sua casa imediatamente e pedir ajuda dos pais para que o acompanhassem ao médico. Ele percebeu que precisava buscar ajuda.
Seus pais já cobravam isso dele há algum tempo. Carlinhos arrumou suas coisas e antes de ir embora, me abraçou, me agradeceu por tudo e novamente pediu desculpas. Eu disse que não precisava se desculpar. Abracei-o com força, disse que o amava e que ficaria muito feliz em saber que ele estava buscando um tratamento. Pelo que fiquei sabendo, Carlinhos buscou um tratamento médico com o apoio de seus pais e nunca mais teve que passar por aqueles traumáticos episódios de sonambulismo. Passou a poder dormir tranquilamente como qualquer pessoa.