O voo do fim da vida - Parte 2

Já estava há três horas no ar. Sobrevoava o Atlântico rumo ao Reino Unido. O Brasil, apesar de toda negligência política, começava a sair do bloqueio internacional de viagens e, naturalmente, passava a liberar a saída de cidadãos brasileiros para países da Europa e para os Estados Unidos.

O avião já estava no piloto automático, mas Alberto nunca estivera tão acordado. Se pegou pensando na frieza de Maria, na de Júnior — seu filho que residia nos Estados Unidos —, nas medidas de corte da empresa e, por fim, nos exames que havia feito na semana passada.

Algumas horas antes de embarcar, Alberto recebeu uma notificação via SMS alertando que o laboratório já tinha o resultados de seus exames e que já poderiam ser retirados. Ainda que sua consulta fosse apenas três dias depois, sua ansiedade falou mais alto. Nunca foi especialista em resultados de exames; porém, após tanto fazê-los, já sabia interpretar um pouco do que diziam.

Aflito, esperou ansiosamente até seu copiloto — Fabrício — cair no sono. 2 minutos de ronco foram suficientes para sentir confiança em abrir os resultados do exame.

Alberto abriu o envelope devagar.

Tinha medo do que poderia ler. E se o resultado fosse ruins? E se os índices apontassem alguma alteração abrupta? E se falasse de sua tremedeira, dores ou esquecimentos?

Depois de muito sofrimento psicológico — poucos minutos pareciam longas horas—, optou por ler o resultado. O pior se confirmou.

Os exames apontavam índices alterados e fora dos padrões aceitáveis. Sua tremedeira foi reportada, assim como sinais de esquecimento — algo que não conseguiu controlar durante a consulta-exame.

Naquele momento, Alberto já sabia que aquele poderia ser seu último voo...Certamente seria impedido de pilotar de volta ao Brasil — principalmente se já soubessem dos resultados — e, com os pés em solo nacional, seria afastado de suas funções permanentemente. Aliás, que bela oportunidade a aviação teria para dispensar o seu mais caro piloto?

Seu semblante caiu, teve ataque de tremedeira e levou longo tempo para se controlar. Chorou silenciosamente, pois teve medo de acordar Fabrício...sabia que se chorasse como queria, seria substituído naquele momento — tanto por Fabrício quanto pelo piloto-reserva que estava na aeronave.

Foram os 30 minutos mais infernais de toda sua vida. A essa altura, já não mais chorava, mas centenas de pensamentos ruins bombardeavam sua mente. Pensava em "se perder" em solo britânico — e não voltar ao voo —, em não voltar pra casa quando chegasse no Brasil outra vez, em finalmente pedir demissão, em procurar ajuda profissional... eram tantas decisões que já nem mais sabia o que fazer.

Para se distrair e tentar esquecer de tudo aquilo, resolveu pegar o celular. Viu que Maria gravava algum áudio. Respirou fundo — "deve ser mais uma de suas reclamações", pensou — e já posicionava o celular ao ouvido, com o volume no mais baixo possível.

Bastou 20 segundos para se surpreender. Maria errou o contato e enviou o áudio para a pessoa errada, ou melhor, para a pior pessoa possível. No áudio dizia:

"Meu amor, só para avisar, Beto estará fora pelos próximos quatro dias. Pode vir pra cá. Não tenha receio algum. Já reagendei a escala das diaristas, ninguém saberá da sua presença. Não se esqueça de chegar pela porta dos fundos e..."

Enquanto ouvia, o áudio foi interrompido. Ao tirar o celular do ouvido, viu que Maria havia deletado o áudio enviado e já havia começado a digitar alguma coisa.

Em choque e certo de que seriam desculpas da esposa, travou outra vez a tela do celular. Pensava que seria alguma desculpa esfarrapada para justificar aquele áudio.

Seus olhos marejaram outra vez. Até porque, saber que estava prestes a perder o sonho de sua vida já era uma dor imensa, imagina saber que havia sido traído. Seriam duas perdas grandes demais.

Ainda que a traição parecesse óbvia pela frieza da mulher nos últimos tempos, custava acreditar que ela seria capaz de tamanha baixeza. Nem mesmo ele, nos piores momentos e crises do casamento, havia cogitado a possibilidade de trair a própria esposa.

A primeira sensação foi de culpa, pensando que aquilo era fruto do seu próprio vício no trabalho e falta de prioridade no relacionamento. Depois, a culpa deu lugar ao ódio. Sabia que, por mais culpado que fosse, nada justificaria uma traição.

Olhou pelo horizonte, só conseguia ver a escuridão da noite e as nuvens cinzas pela frente. A única certeza que tinha do voo era que as marcações de altitude nos radares e as comunicações periódicas com as torres de monitoramento entre as bases do Reino Unido e as do Brasil.

Em meio a tanta desgraça, restava-lhe uma última esperança...e estava prestes a perdê-la.

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Acompanhe a primeira parte em: https://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/7280286

CH Smith
Enviado por CH Smith em 16/06/2021
Código do texto: T7280329
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