Conheci em Veneza

Minha mãe morreu. Deitou uma noite de outono e não se levantou. O médico não soube dizer se foi de velhice ou do coração. Que importa a causa? Eu acho que ela morreu da solidão que acomete os velhos. Casa vazia. Exclusão dos assuntos principais. Poupada dos problemas e soluções familiares. Creio que também morreria se estivesse na condição dela e de tantos outros idosos. Resguardados perante uma televisão, aguardando visitas representando a mais sublime manifestação de carinho para alguém de grande importância.

Minhas irmãs choram quase sem parar. Nossa mãe era boa em em sua maternidade desvelou a nós o seu melhor amor, os ensinamentos mais importantes. Um modelo a ser admirado e seguido.

Também chorei, aliás, passo noites chorando. Um peso na alma que deságua em pranto contínuo e só a noite assiste. Minha mãe era boa e eu sempre soube do amor nutrido por ela. Era tanto. Meu choro porém, difere do lamento de minhas irmãs. Elas sofrem da orfandade, ainda que tardia. Somos mulheres adultas e vividas. Acostumadas aos revezes propostos ou impostos pela existência. Eu choro de medo e vergonha. Tristeza também. Minha mãe está morrendo pela segunda vez, em menos de quinze dias. E sua morte é fragmentada e persistente. Antes que seu corpo realmente esfrie sob a terra seca de sua sepultura, minha mãe desaparece dentro de mim.

Sua imagem tornou-se uma bruma. Traços imperceptíveis. Não consigo divisar seu rosto. Por que ela se desmancha assim? Minha mãe, minha boa mãe que durante toda minha vida busquei agradar, respeitar e cuidar.

Inconsoláveis, minhas irmãs choram de saudade. Acusam Deus da perda injusta e irreparável. Eu,em sigilo, suplico a Deus que não leve minha mãe de mim pela outra vez. Que não permita que eu esqueça os traços de seu rosto, o som de sua voz. Peço para Ele não me deixar esquecer. Porque eu amo minha mãe.

Às escondidas, vivo a sensação de que minha mãe foi transformada apenas em alguém que conheci numa viagem, uma pessoas com a qual convivi num encontro de um dia. Eu tento tocar seu corpo, me enxergar em seus grandes olhos negros mas, tem uma neblina entre nós apagando, impedindo tudo.

Não, eu rogo. Não leve minha mãe de mim, Deus. Eu não quero esquecer. Não quero que ela seja uma confusão. Alguém que faça eu me perguntar se de fato, existiu. Se , realmente conheci.

Minha mãe morreu. Por que sou castigada a presenciar ela morrer tão depressa em mim?

(Esta é uma obra de ficção)

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 06/06/2021
Reeditado em 06/06/2021
Código do texto: T7272989
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.