Olhos de Sangue

A consciência dele retornou. Quando deu seu primeiro passo, um calafrio o estremeceu. A escuridão ofuscava sua visão. Ruídos estranhos começaram a vir da casa afora; mas ele ignorou. Ao se encontrar no meio da sala, uma poça molhou seus sapatos. Ele se abaixou e seus dedos tocaram nela e, em seguida, os levou até seus lábios. Aquele sabor o penetrou, reverberando em todo seu ser. O gosto metálico gerou uma excitação exponencial. Cresceu tanto que o deixou inerte. Paralisado. Seus olhos se fecharam. Outra vez, aquilo ocorria. E não seria a última. Seus nervos, por fim, se acalmaram. A respiração cessou e, mais uma vez, ele se lembrou: não sou mais humano.

Relembrou-se de sua atual posição: apenas um lacaio daqueles que o levaram ao desespero.

Um lacaio destinado a desfalecer pela morte.

Ele andou até seu destino e as luzes se acenderam. A silhueta de uma mulher passou por seus olhos e, no mesmo instante, se encontrou ao lado dela. Seu crânio exposto faria a mais frívola das almas regurgitar. Uma moeda estava sob seus lábios e, ao levantar o rosto desfigurado do cadáver, viu o vácuo que ocupavam o lugar de seus olhos. O sangue que escorria até seu rosto, ainda estava fresco. Ele ouviu passos se aproximando, e pegou uma amostra do sangue e a moeda, antes de sair dali. Ele parou em uma esquina pouco movimentada, onde o farol se recusava a funcionar. Percebendo que ninguém se aproximava, retirou seu capuz e abriu a amostra do sangue. Pegando gotículas do mesmo, despejou-as em sua córnea. Seus olhos arderam tanto que seria impossível abri-los em um curto momento. Após isso, uma visão passou em sua mente: o momento da morte daquela mulher.

Ele viu tudo o que ocorreu e, ao ver a feição do assassino, soube exatamente quem era.

Naquela cidade deserta, ele andou por uma hora. A noite deixava tudo mais fácil para ele, passando despercebido por tudo e todos. Ele parou em um ponto de ônibus enferrujado, no qual a única companhia que o rodeava eram as árvores ao seu entorno. Seus olhos ainda ardiam, o que aumentava sua irritação e impaciência. Um ônibus se aproximava. Não havia ninguém, exceto o motorista e um passageiro. O passageiro era um pobre homem em sua meia idade. Ele desceu do ônibus e permaneceu à espera do próximo.

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Um estranho homem encapuzado me fazia companhia. Seu jeito e sua roupa me lembravam a morte; talvez ele estivesse aqui para me levar. Suprimi um riso e percebi que isso seria medonho se não fosse pela situação. Olhei para o céu estrelado e percebi que sua imensidão já não significava nada para mim. Eu não me importaria em ser julgado pelos meus pecados, embora ainda desejasse viver. O homem se mantinha afastado, e seu rosto nunca se encontrava com o meu. Tudo aquilo era inquietante; como uma avalanche a memória de horas antes passava em minha mente. Ela estava na janela, como sempre ficava em noites como essa; vislumbrando a lua que se apossava do céu. Ah! Ela estava tão linda naquela camisola! Cada vez mais que eu permanecia a observando, minha pulsão de ir até lá aumentava. Mas não era a hora certa de ir. Não ainda. Minutos depois, as luzes do quarto se apagaram e vi em meu relógio que já eram dez horas. Minha calmaria, naquela situação, me espantava. Passei pela portaria tranquilamente e me dirigi ao quarto dela. Bati na porta, chamando-a pelo nome. Esperei um tempo, e nada acontecia. Ela não me atendia. Aquilo ferveu meu sangue e me enfureceu. Minha calmaria se transformou em ira e, abruptamente, arrombei a porta. Como esperado, a escuridão permeava a sala. Adentrei mais a fundo na casa até chegar ao quarto dela. Ao chegar lá, algo me espantou: ela não estava lá. Me aproximei da cama e vi sangue esparsado no lençol. Me senti atordoado. “Era eu quem iria matá-la!”. E então, ouvi uma voz, muito, muito fraca me chamando.

-Me… me ajude. - Era a voz dela; da mulher que eu tanto amava.

Ela estava atrás da porta do quarto, tentando se manter em pé. Sua respiração ofegante me fez notar a vermelhidão de suas vestes. Sua camisola inteiramente ensanguentada. Corri em direção a ela. Antes de tombar ao chão, segurei-a em meus braços.

-Por favor… me salve. - Ela proferiu novamente.

Me senti tão excitado com a situação que não consegui respondê-la. Como eu a amava! A ferocidade se apossou de meu corpo e desembainhei uma adaga dourada. Sua beleza era tamanha que entorpeceu minha amada. A luz da lua reluzia em sua lâmina, e isso a fez encará-la, admirada. Da mesma forma que eu ficava, ao vislumbrar sua beleza! Em meio a esses pensamentos, finquei a adaga em sua cabeça; seu crânio perfurado chiou com o sangue que saía como um chafariz. Seus olhos opacos continuaram a me encarar e decidi fazer deles meu tesouro. Os olhos castanhos que tanto me fascinavam! A adaga, encharcada de sangue, pingou pela casa enquanto eu caminhava até o banheiro. Eu a lavei e me encarei no espelho: eu estou livre! Livre para sempre deste amor prisioneiro! Antes de sair da casa, tornei a olhá-la e coloquei uma linda moeda dourada sob seus lábios. A paz que reinava em meu ser jamais pude conceber. A partir de hoje, eu era um homem livre.

Minha mente se voltou para o presente. O homem encapuzado continuava ali; tão inerte como uma estátua.

-Esse ônibus demora mesmo, hein? - Disse, de forma bem-humorada.

Ele não respondeu. Eu pigarreei e prossegui:

-Está tão quente hoje! Não se sente sufocado com esse casaco? - Sem resposta. De novo. Aquilo me inquietava.

Me amedrontava.

Desnorteava.

-Você não dirá nada? Não me deixe falando sozinho! - Falei, aos berros. Eu realmente odeio pessoas como ele! - Talvez eu devesse matá-lo também. - Sussurrei inaudivelmente e, ao levantar meus olhos, vi o rosto daquele homem me observando.

Seu sorriso psicótico me estremeceu. Uma máscara vermelha cobria seu rosto inteiro, deixando sua boca e seu queixo expostos. Eu tinha que correr. Eu tinha que fugir. A adrenalina me despertou. Eu realmente odeio pessoas como ele!

Antes de chegar até ele, empunhei minha adaga. Mas ele não se moveu.

Seu sorriso ainda me torturava, como um rato roendo todos os meus ossos. Estampado em seu rosto como se fosse uma maquiagem, ele perdurou mesmo quando finquei minha adaga em seu peito. Ele continuou me encarando. Sua expressão funesta continuava. E então, algo surgiu em suas mãos: uma linda moeda dourada; a mesma que eu havia deixado com minha amada. Isso tudo deveria ser uma brincadeira. Apenas uma grande piada! Comecei a rir descontroladamente, e ele fez o mesmo. Aquilo emergiu como uma fisgada. Eu estava enlouquecido.

Tentei retirar a adaga de seu peito mas ele segurou meu pulso, me impedindo de completar a ação.

Meu coração pulava tanto quanto uma criança em um trampolim.

- Você já sabe, não é? - Perguntei, desejando por uma resposta. Eu estava ávido por ela. Em um frenesi de emoções e medos, continuei. - Eu gastei quase dez mil reais comprando essa adaga. Um evento tão especial como aquele, tem que ter preparativos à altura! - Minha gargalhada reverberou por toda a cidade. E continuei. – Você não se sente culpado por privar a segurança de minha amada, ao retirar a moeda de seus lindos lábios? – Ao perceber que era inútil conversar com ele, a tristeza de memórias antigas logo se apossou de meu ser: - Me arrependo por ter sofrido tanto tempo em agonia; eu deveria ter feito isso antes. Um amor tão forte… quase me perdi por ele. Mas isso não importa mais! Meu sofrimento de outrora foi-se embora! - Com o peito estufado me ergui. Consegui desvencilhar meu pulso de suas mãos frias, mas minha adaga, logo após retirada de seu peito, estava em suas mãos.

Percebi sua ideia macabra: me matar com a mesma adaga que matei minha amada.

Isso era cômico. Irônico. Nada como uma bela sátira! Decidi adentrar na brincadeira.

Me direcionei até a estrada. Um carro vinha em alta velocidade, chegando tão perto a ponto de sua luz me cegar. E então, eu voei pelos céus como a mais triste das andorinhas.

No entanto, a morte era expurgada de meu ser. Ela não veio; pelo contrário, meus sentidos estavam tão aguçados como nunca. Era difícil me mover, meu corpo não respondia; permaneci estirado ali, naquela estrada. Ninguém veio me socorrer; nem os malditos que me atropelaram!

O homem encapuzado se levantou e começou a vir em minha direção. Eu sabia que ele não me salvaria, tudo que ele faria seria me levar até a morte.

Permaneci nas nuvens, embora estivesse tão longe delas. Talvez eu fosse a pessoa mais longe delas nesse momento.

Ele banhou a lâmina da minha adaga com gotículas de sangue contidas em um plástico e continuou andando. Tudo isso se deu como uma eternidade; o mundo se movia tão lentamente. E então, eu percebi: esse seria o meu fim.

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Ele invejava o pobre homem. Sua morte não traria paz a nada e a ninguém, mas ele deveria fazê-lo.

Por baixo da máscara estúpida, seus olhos irritados ameaçaram marejar. Era fácil conceber sua dor. Antes de fincar a adaga no crânio do pobre homem, sua voz ressoou por toda a extremidade do universo:

-O sangue é o meu avatar e meu selo. – A vermelhidão e o horror do sangue despejaram-se como uma cachoeira. Uma morte rápida mas tão dolorosa quanto uma tortura.

Como forma de honrar sua vítima, ele colocou a moeda sob seus lábios. Esses rituais fúnebres não fazem sentido. Antes de sair dali, ele pegou o sangue do cadáver e o despejou em sua córnea. Suas memórias.

Suas emoções vívidas.

Seus sonhos.

Sua vida.

Tudo passou e reverberou em seu ser como uma faísca.

Ao menos alguém se encarregaria de carregar suas dores.

Ele se viu, outra vez, e sua sede de se sentir humano novamente foi saciada.

Era a única forma de não perecer no abismo de seu ser; a dor que ele sentia era a prova disso.