Porque tem de ser assim?
Não devia ter bebido cerveja no posto de conveniências.
Os olhos teimam em fechar. Se a mulher não estivesse dormindo no banco traseiro, a cabeça encostada no ombro da filha que também dorme, pediria que dirigisse um pouco.
A chuva torrencial de uma hora atrás transformou a pista num sabão. Felizmente poucos se aventuraram a encarar a estrada como ele. Por isso o movimento de automóveis é quase nulo.
Três horas. O certo seria parar no acostamento e prosseguir de manhã. Mas a casa da praia está toda desarrumada e antes de se divertirem terão de arruma-la primeiro. Um saco!
A curva adiante é perigosa. Já ouviu contar de motoristas que se estrumbicaram nela. Diminui a marcha. “ A prudência é a melhor aliada na estrada”.
A paisagem escura circunda o carro. O filho no banco dianteiro resmunga ao ser sacolejado mas não abre os olhos. Terminada a curva , acelera. O próximo trecho é um retão de mais de dez quilômetros, sem perigo algum. Alguns segundos e o sono volta com tudo. Um cigarro ajudará.
A chuva recomeça. Primeiro alguns pingos esparsos, depois mais fortes, conjuntos. Leva o cigarro à boca, apertando o acendedor automático. Acender fósforos dirigindo é um perigo. “ Raciocinar direito é o melhor aliado contra encrencas”.
O acendedor dá um tic. Estica a mão. Apanha-o. Percebe em meio à fumaça da água os faróis do carro vindo em sentido contrário. Fracos. De olho na estrada acende o cigarro, prestando atenção nos faróis, agora um pouco mais fortes.
Um vento repentino entra pelo vidro deixado semiaberto por causa da fumaça e para espantar o sono, arrancando o cigarro da boca e derrubando no colo. Ainda de olho na estrada e nos faróis, agora bem pertos, tenta encontrar o cigarro que resvalou para o banco do carro ao abrir a perna. Encontra. A brasa queima a ponta dos dedos. Instintivamente leva a mão à boca numa tentativa vã de diminuir a dor. Instintivamente também desvia o olhar da estrada um milésimo de segundo.
É o suficiente!
O carro em sentido contrário bate de frente. É jogado para fora. Desmaia quando bate a cabeça no asfalto molhado.
Acorda no hospital. Quanto tempo se passou desde o acidente não pode precisar. Deve ser muito, pois o sol entra pela fresta da janela.
- Minha mulher!Como ela está? – pergunta para o médico com cara de menino. – E meus filhos? Eles estão bem?
É informado que apenas seu filho sobreviveu. Mas, tetraplégico.
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Apanhou o copo d’água pedido.
Ia perder a resposta do entrevistado.Voltou rápido para o quarto com a água.
. . . pegou na testa e saiu atrás da cabeça. O sangue melecou todo o muro.
- Obrigado! – não responde, interessado que está na entrevista da teve. – Dá para o senhor me trazer um pedaço de bolo também ? Estou com fome.
Volta para a cozinha , o olhar na teve. Apenas um pedaço pequeno de bolo na geladeira. Também sente vontade de comer, porém leva inteiro para o filho.
Um último olhar na tela confirma o esperado: a entrevista com o matador de menores terminou. Uma pena não ter podido acompanhar.
O novo entrevistado não desperta o menor interesse. Um escritorzinho furreca comentando o primeiro livro. Desliga a televisão e liga o som.
- Por favor! – o filho pede. – Deixa ligada. Tá interessante!
Senta na beirada da cama e liga com o controle remoto. Ouvirá músicas mais tarde quando o filho conseguir dormir.
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- Você não vai conseguir sozinho. – os amigos aconselharam. – Contrate uma enfermeira!
- Ele é meu filho! – protestou. – E está assim por minha culpa! Não vou deixar aos cuidados deuma pessoa que não tem o mínimo amor por ele. É minha obrigação de pai! – murmurou um tom mais abaixo, se arrependendo em seguida pela palavra usada. Não podia encarar como obrigação cuidar do filho. Ele ficara assim por sua culpa. Sua exclusiva culpa.
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Duas da manhã.
Os gemidos fazem-no retornar ao quarto. Nem é preciso acender a luz para perceber que o menino não está bem. A mão passada na testa vem molhada de suor. Suor frio.
- Você está bem, filho? – pergunta quase encostando a boca nos ouvidos.
Não obtém resposta.
Encosta o ouvido no peito, também molhado de suor. O coração está acelerado. Pelo menos 120 por minuto. Foi alertado sobre isso, o choque sofrido poderia acarretar taquicardia. “Fique atento! Se acelerar demais procure o médico imediatamente!” No momento imaginou ser exagero da enfermeira. Não era. Três vezes neste mês correu com o menino para o hospital mais próximo.
As pílulas estão no armário de cabeceira. Tremendo, abre o vidro. Pega duas.
A custo consegue enfia-las na boca do filho, semicerrada. A água, metade cai no lençol. Aguarda um pouco e mede a pulsação de novo, o ouvido encostado novamente no peito do rapaz. Aprendeu a contar as pulsações mentalmente um , dois, três, sessenta e sete, oitenta e dois. Quase normal.
A respiração do filho é compassada agora. Ele sabe que o sono virá logo. Normal. Há duas semanas não consegue dormir direito. Quase todas as noites acontece alguma coisa. E quando não acontece nada , também não consegue dormir. Preocupação.
Passa a mão de leve na testa no menino. Seca. Parece bem depois do remédio.
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Bebe o refrigerante gelado.
Se o sono passasse estaria melhor. Dirigir com sono nesta estrada molhada como sabão é um perigo.
A mulher dorme, a cabeça no ombro da filha de 15 anos, que também dorme. O filho mais velho, feliz por ter sido aprovado no vestibular de Medicina está acordado no banco da frente, conversando como uma matraca.
- Vê se se torna um bom médico! – fala entredentes .- O máximo que conseguimos na família foi seu tio engenheiro. E dos brabos! Está nas suas mãos honrar nosso sobrenome.
O sorriso do rapaz é algo de compensador.
- Quer que eu dirija um pouco, Pai?
- Não precisa! É só continuar conversando comigo para espantar o sono.
A chuva parou. Mais um pouco e a estrada seca. A curva se aproxima. Tira o pé do acelerador. “ O saber dirigir é o melhor aliado da estrada.” Terminada a curva acelera um pouco mais. Pouco. Apenas para mudar de terceira para quarta marcha. Tem pressa em chegar na casa da praia para descansar. A vida na capital é estressante demais.
Vontade de fumar. Apanha o cigarro. O filho abre a janela do carro. Aperta o acendedor. Clic! Apanha-o . Os faróis no sentido contrário alertam para ficar atento. Acende o cigarro. Uma tragada só. O vento derruba o cigarro no colo. “Filho! Segure o volante só um pouquinho!” Estende a mão e apanha antes que comece a queimar o estofamento. O carro esterça sozinho e bate de frente com o vindo em sentido contrário.
O rosto do médico , ao abrir os olhos tem a mesma aparência do rosto do seu filho.
- Como estão eles? – pergunta angustiado.
O médico-menino abaixa os olhos antes de responder que todos morreram.
- Todos !? – não sabe se a dor dentro do peito é da pancada ou da notícia.- Todos morreram?
Então é informado que apenas o filho sobreviveu. Porém paralítico do pescoço para baixo.
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Gostaria que reclamasse mais.
“ A reclamação é a melhor aliada da justificativa.” Mil vezes gritasse que ele era o único culpado de tudo o que acontecera. Mil vezes o acusasse de ter sido inconseqüente. Bêbado. Irresponsável. Doeria bem menos que o silêncio na voz e a culpa no olhar. Mil vezes viu o olhar. Mil vezes não resistiu e abaixou os olhos, envergonhado.
O filho sofre. Noites houve que ouviu soluços no quarto ao lado e quando entrou as únicas provas do sofrimento foram os olhos vermelhos e ainda molhados .
- Você está bem, filho? – a pergunta invariavelmente a mesma.
- Estou bem, pai! – a resposta também.
- Está com dor? – repetia-se todas as noites.- Posso fazer alguma coisa?
Ele sabia que o filho não podia sentir dor física. O médico alertara que os nervos haviam sido afetados no acidente. E ele não podia fazer mais nada, a não ser fazer as eternas perguntas já sabendo as respostas de antemão.
“Se , pelo menos , ele me xingasse às vezes.”
- Obrigado, pai! Pode ir dormir. Já fez muito por mim.
Os olhos, no entanto falam diferente. Bem menos doce. Bem mais real.
- Você chorava.- fala suplicando uma resposta.
- Saudades da mamãe!
Este é outro fator impossível de ser mudado.
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- Você vai acabar ficando doente! – o plantonista do hospital percebeu seu estado deplorável. – Se quiser eu conheço uma enfermeira ótima.
- Não! – cortou a conversa.- Ele é meu filho e está assim por minha culpa! – deixou subentendido o desejo de cuidar sozinho do filho.
- Entenda! Foi uma tragédia e tragédias acontecem!- o rapaz insistiu.- Podia ter sido pior: ele podia ter morrido!
“ Talvez tivesse sido melhor.” Pensou não querendo pensar, os pensamentos doendo mais que o olhar do filho.
Em casa, de volta do hospital, o menino dormindo com sedativos, os pensamentos insidiosos voltaram com mais força e novamente ele os afugentou.
E dormiu, sentado na cadeira, espiando o sono dele.
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A estrada molhada. A chuva caindo. O sono. A vontade de fumar.
Terminada a curva, o retão. Por precaução para o carro no acostamento.
A mulher levanta a cabeça do ombro da filha e boceja antes de perguntar se falta muito. A menina , por sua vez ajeita-se no ombro da mãe.
O filho, que foi aprovado – e bem – no vestibular para Medicina, continua dormindo no banco da frente. O sorriso nos lábios é um prenúncio de bons sonhos.
- Vou tirar uma soneca. – diz para a esposa e depois de um beijinho torto:- Daqui uma hora continuamos.
Enquanto fuma conversa com a mulher sonolenta. E fala da felicidade de possuírem filhos tão adoráveis. Do passeio de escuna , agendado para à tarde. Inconscientemente acaricia os cabelos do rapaz , que serão raspados à zero na próxima semana.
Acabado o cigarro abre o vidro do carro e joga a bituca longe.
O carro vindo em sentido contrário joga os faróis em cima dele , invade a pista e bate com tudo, num estrondo de vidro quebrado e metal retorcido.
Abre os olhos. O médico , cara de menino, dá a notícia fria e dura como gelo:
- Apenas seu filho sobreviveu.
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A imaginação tudo pode.
Pode reajeitar os fatos.
Faze-lo parar antes.
Transmudar as cervejas em refrigerantes.
Transformar o carro numa miragem.
Trocar os lugares onde as pessoas estão.
Pode até impedi-lo de sair de casa naquela tarde.
Ou mudar a noite em dia.
Só não pode evitar as mortes de sua esposa e sua filha. Nem tornar seu filho novamente num rapaz normal. Com sonhos. Desejos. E vontades.
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A cabeça dói.
Nunca acreditou em milagres, agora espera ansiosamente por um todos os instantes de sua vida.
Nunca rezou antes, agora faz novenas para todos os santos, conhecidos e desconhecidos.
Sempre achou que curandeiros eram apenas pilantras querendo o dinheiro dos trouxas, agora procura cada um deles, assim que os descobre.
Sabe-se culpado e gostaria de ouvir sua culpa explodida na boca dele, recebe apenas a serenidade fugidia e dolorida do rosto do filho.
“ A esperança é a melhor aliada do milagre.”
A imobilidade do filho intranqüiliza-o . Aproxima-se e tenta ouvir a respiração. Está fraca, quase nula.
O médico havia alertado:- Não tenha muitas esperanças! Hoje ele está bem, porém de uma hora para outra pode ir. – e continuou:- Ou pode durar muito. Só Deus sabe!.
As lágrimas vieram. Não importava quanto trabalho tivesse. Ou por quanto tempo mais. Não importava o quanto gastasse, queria-o vivo.
“ E quando eu morrer? Quem cuidará dele?” O pensamento doído já aparecera diversas vezes. Com palavras diferentes. Conotações variadas. Maneiras diferentes de se manifestar. A solução ainda não.
“ Se ela estivesse aqui. . .”
Ela é a esposa morta no acidente. Com certeza saberia lidar com a situação melhor que ele. Sempre admirou a tranqüilidade dela em administrar as piores adversidades. Se pudesse fazer o tempo voltar. . .
“Bem – pensou – se pudesse fazer o tempo voltar não teríamos saído de casa aquela tarde e nada teria acontecido.”
Toca de leve a testa do rapaz. Está quente.
A toalha molhada acalmará a febre.
Ao contato, o menino abre os olhos e sorri, enquanto murmura quase inaudível:
- Sonhei com o Rex. Sonhei que eu era o Rex.
Por um instante microscópico lê o pedido nas pupilas claras.
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Tinha treze anos quando Réx foi atropelado por um motorista bêbado. Que invadiu a calçada e passou com o pneu dianteiro na barriga do animal.
O menino largou a bola que o amigo ia pegar e com o corpo ensangüentado entrou aos gritos dentro de casa.
O pai atirou o jornal longe para ver o que estava acontecendo..
Primeiro viu o estado lastimável do ferimento. A barriga aberta, as vísceras saindo, o olhar esgazeado pedindo ajuda, o ganir quase inaudível, o respirar ofegante. . . e o desespero do filho pelo sofrimento do amigo de todas as horas.
Domingo, nenhum veterinário encontrado, sem saber o que podia fazer, entupiu o animal de analgésicos, um curativo apertando o ferimento , aguardando um milagre, que sabia, difícil.
Quando a noite chegou, o cão sofrendo dores horríveis, ganidos aumentando e nada mais podendo fazer, o pai chorou.
Sem outra alternativa, carregou o animal para o quintal com o máximo de carinho e quase que sem hesitação nenhuma aplicou o veneno.
A agulha enterrando na carne de Rex doeu mais nele, quando o cão o olhou terno e sereno nos olhos, como se agradecesse e morreu.
A lua foi a única testemunha do soluço angustiado no peito e das lágrimas que molhando seu rosto perderam-se no chão.