Dúvida

Agora era tarde. Mas ele ainda se perguntava: e se? Pergunta simples, tola, não exige nada além da capacidade de recriar: e se? Não pensar nessa pergunta era praticamente impossível.

Decidiu sentar. A cama revirada não escondia os acontecimentos de minutos atrás, exalava o desespero de alguém que se viu arrancado aos poucos pelas garras do anjo negro, aquele que faz a visita derradeira aos que vivem, bicho, planta, gente, tanto faz. É sempre igual para todos. A mente dele se desprendia com uma facilidade que parecia suplicar para que a resposta simples fosse encontrada, como uma chave que se procura para uma fechadura inviolável; e se?

Ficou olhando a palidez do rosto estendido no chão e conseguiu encontrar certa beleza, um tipo que ele não havia percebido antes, era como se o respeito que outrora deixou de existir voltasse a preencher o nada que agora habitava aquele olhar vago. O que será que ela olhava pouco antes de tudo acabar? Será que foi a luz? Agora ela sabia de tantas coisas, ou quem sabe, de tudo. Ele, continuava sem nada saber.

Verificou a hora e se surpreendeu com sua total perda de noção quanto ao tempo, parecia-lhe que horas haviam se passado mas na verdade o tempo mal seria suficiente pra que ele fugisse. Mas para onde iria? Não havia como fugir do que fizera, jamais. Assim que decidira que tudo teria que terminar da maneira como agora ele contemplava, ele já havia sido condenado.

E já não havia mais volta. Resolveu então mascarar o melhor que pudesse a cena do fim que fitava-o com seriedade. Os sons do trânsito invadiam o silêncio pela janela do quarto, a normalidade do dia-a-dia se contrastava com a distorção do fato consumado. Não havia sangue, menos mal. Começou se retirando de onde estava e começou a andar cautelosamente pelos outros cômodos da casa verificando se os mesmos estavam como sempre estiveram. Pareceu-lhe que somente o quarto seria alvo da “máscara”.

Mas quando a convicção do que fizera resolvia repousar mansamente sobre sua consciência, ele se detinha naquele olhar que parecia querer lhe dizer algo e percebia então que estava tremendamente assustado. Assombrado. E a pergunta retornava mais forte, insidiosa; e se? Mas, e se o quê?

E se não precisasse ter sido assim? E se o caminho tomado fosse outro? E se nada disso tivesse acontecido? E se tudo fosse irreal? E se?

Andando de um lado pra o outro ele agora sequer imaginava por onde começar e um bipe do seu relógio de pulso o alertou de que o tempo não seria tolerante. Não conseguia explicar por que agora parecia estar desesperado, parecia que se dera conta do que havia feito, de quem ele agora era. Sentiu a visão lhe fugir por um momento, seu corpo balançou um pouco mas ele se manteve firme, não poderia escapar. Não era algo fácil de se mascarar.

Com bastante esforço ele se recompôs. Pensou que deveria pensar nos motivos que o fizeram decidir por tudo que houvera, mas também lembrou que o outro lado o impulsionou com violência, mas não uma violência física, uma violência que machuca o eu e fere o que acreditamos ser os pilares de nossa existência. É como se a mágoa e a raiva nos fizessem acreditar que tudo se justifica se assim nos convir. Mas isso nada mais é do que a semente de todo egoísmo, algo que todos nós irrigamos um pouco em nossas vidas, mas que quando se prova do seu fruto cai-se numa armadilha que para ser desfeita exigirá inúmeros sacrifícios. No entanto, disso ele ainda não sabia... ainda não.

Parecia calmo. Aproximou-se do corpo. Nossa... como ela era linda... Ainda era linda. “Mas por que me fez desejar isso...?”, ele tentava encontrar uma saída e a pergunta lhe voltava; “e se?” “E se você não fosse tão possessivo?” ,“ E se ela não fosse tão ingrata?”. Controvérsias, ambos tinham motivos verdadeiros, os dois tinham razão, mas a força e o desejo primordial da aniquilação daquilo que nos inflige dor muitas vezes nos faz destruir o que amamos, e por muitas vezes destrói nos que nos amam o que os fez nos amar. Todos perdem, sempre.

Talvez não precisasse ter sido assim. Ah... e se... se pudesse desfazer o que não se desfaz... a morte. Pôs a mão no rosto pálido e imóvel no chão, os braços dela enroscados nos lençóis que pendiam da cama de solteiro num quarto com decoração feminina. Ela o recebera com total entrega, com confiança numa mudança, talvez ela não imaginasse que ele descobriria a verdade. Ele que tanto a amou... por anos. Mas ela escolheu esconder a verdade, de certa forma enganá-lo, decidindo que a vida dele era mais importante. Se preocupava com ele. Tudo bem, eles eram jovens quando tudo começou, mas não havia outra opção além da mentira? Algo que fosse justo para os dois? Ela, no entanto, poderia ser ingênua demais pra enxergar como ele enxergava as coisas, como ele os via. Ela talvez estivesse certa, ele não era ninguém para julgá-la, mesmo assim o fez, a condenou e a executou sob seu julgamento parcial e abusivo, apenas por descobrir que ela já não o amava, que poderia amar outro alguém. Liberdade. E ela queria amar, por isso resolvera voltar para o ninho, desejando sua vida de quando era só, livre, um quarto só dela. Voltar a ser só uma filha. Mas não teria sido tudo consequência de uma falha dele? Será que ele conseguia se enxergar? Ver o que só os outros conseguiam ver ao se olhar no espelho? Era isso que só agora ele conjecturava. Tarde. Muito tarde.

Alguém passou correndo pelo corredor do prédio. Eram crianças que brincavam. A vida lá fora continuava. Ele então se lembrou de que o tempo estava se esgotando, de que precisava fugir e tentar esconder suas pegadas. Seria como um bicho que precisa ser caçado a partir de agora, não seria um homem comum. Ele a matara. Com as mãos. E se não a tivesse matado? Como seria? E se? Vamos, e se? A pergunta voltou como um disparo em sua cabeça e ele sentiu que o desespero retornava com ainda mais força. Ele destruíra o que mais amava por impulso, prepotência. A dor foi como um disparo...

A arma! Sim!

Lembrou-se da arma. Ele havia conseguido a arma mas usara as mãos. Sua fúria inumana pediu pra que fosse feito dessa maneira. Ele era como um animal, um leão que precisou matar pra se impor, mas parecia ter errado o alvo. Ela não era sua rival. Ele, o outro, era seu real objetivo. Ainda desejava procurá-lo, mesmo sem saber ao certo quem ele era, o outro, ou até mesmo se ele existia, quem sabe o outro fosse apenas uma criação do seu ego destrutivo.

Enquanto pensava que as coisas não deveriam ter sido assim, que talvez houvesse se enganado irreversivelmente, percebeu que segurava a mão dela. A arma estava em cima da cama e ele a pegou com a outra mão. O brilho do artefato criado com o único intuito de matar trouxe algo de esperançoso para o aflito coração dele. Ela era tão nova... brilhante... Não a arma, ela, a dona daquele olhar vazio, aquela que apenas quis ser feliz e que não soube o que fazer. E escolheu mal. E se ela não tivesse escolhido mal? Será que eles seriam pra sempre dois? Será que seriam verdadeiros? E se? E se não fossem?

Uma chave encontra uma fechadura. O som de vozes conversando é impelido apenas por uma porta, mas as vozes são inconfundíveis, ele as ouvira por anos a fio, não havia mais tempo. Ele seria pego. Não podia piorar as coisas, ninguém mais precisaria morrer... Será? Repousou a arma no tapete onde agora todos estavam e com suas duas mãos tomou a mão da mulher que mantinha um olhar no nada, era o olhar dos mortos. Ela não conseguiu fechar os olhos. As mãos enormes dele deixaram marcas funestas no pescoço branco daquela linda mulher, um colar arroxeado que seria o único que ela ganharia em toda a vida. Uma profusão de pensamentos o invadiu e ele foi tomado por um desgosto profundo por não ter visto a verdade. Não era aquilo que ele queria, a certeza que o levou até ali talvez fosse apenas uma... dúvida.

As lágrimas escorreram pelo rosto do homem. Ele pediu desculpas à morta, de olhos fechados sussurrou que sentia muito por ter feito aquilo, que se arrependia com sua alma por ter encerrado a existência dela. “Perdoe-me...”, ele repetiu várias vezes. A porta do apartamento se abriu e as vozes familiares foram ouvidas. Conversavam animadamente, mas como que por intuição se calaram ao entrarem como se sentissem no ar o cheiro da perda. Seria inevitável. Tinha de haver uma saída. E se? E se não houvesse?

Ele então abriu os olhos e seu coração disparou ao perceber lágrimas que escorriam dos olhos dela... da morta... e como num sonho que acontece conforme o desejo de quem o projeta, ele vislumbrou o esboço de um sorriso... um sorriso de quem aceita o pedido de perdão... ela parecia o olhar. Não. Ela o olhava...

Quando a mãe e a irmã dela se aproximaram do quarto, um disparo foi ouvido. Ao entrarem desnorteadas e assustadas e perceberem que a cena de terror não havia sido mascarada e sim salpicada de vermelho, não pareceram se assustar, a dor se igualou à um golpe que ceifa sem que haja tempo de se sentir, pois foi como se ambas imaginassem possíveis fins, como se o coração delas já se preparasse há anos pra o pior, porque elas nunca acreditaram que o fim deles pudesse ser bom. Ela, a mãe, sempre alertara a filha. Mas agora era tarde. Havia acontecido. Não havia como mudar o feito...

Então só restaram perguntas, pra os que ficaram, como sempre, os mortos não respondem mais. E em todas elas, com máscaras ou sem elas, aquelas palavras sempre ecoavam, exigindo que recriemos o que jamais poderá ser recriado; e se? E se tudo fosse diferente? E se o fim não fosse suficiente?

E se a máscara que nos protege do que realmente somos fosse deixada de lado? E se fossemos nós sempre? Quem poderá saber? Por isso pense, pense sempre antes de fazer. Nem sempre nos é permitido desfazer...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 01/04/2021
Código do texto: T7220926
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