A proposta
...
O noticiário na televisão repetia a ladainha: - Pela segunda semana consecutiva, o número de mortos se eleva. Autoridades, por todo o país, alertam sobre o risco de colapso no setor hospitalar.
Sentados diante do aparelho, dona Tilda e seu marido, Gonzales, arregalaram os olhos mais uma vez diante da narração do belo apresentador com sua postura muita séria e preocupada.
- Ai, Gonzalinho, o que vamos fazer com essa praga? Todo dia tá morrendo gente, logo, vai chegar aqui em nóis - perguntou dª Tilda ao companheiro.
- Sossega, mulher. Se a gente pegar, vamos direto pro postinho da Vila Iracema, lá eles nos dão o remédio, a gente se tranca aqui e espera - respondeu fazendo voz firme, o homem da casa.
- Vai no postinho, vai no postinho ... você é muito besta, homi. Num tá ouvino que tem risco de faltar vaga? E esperar o quê, morrer?
Gonzales nem quis dar trela para essa conversa. Já haviam discutido isso e sempre terminava com choro. Então se calou. Dª Tilda foi esquentar a janta, aquilo que tinha sobrado do almoço: galinhada, feijão e creme de abóbora. Gonzales ficou pensando na conversa que tiveram com dr. Arminho, lá na obra. O sujeito era inteligente, sabia das coisas, era rico. Por certo, não teria dito aquilo se não tivesse certeza, claro que não. Ele não iria sacanear os próprios funcionários.
- Pois então, é o que lhes digo, meus amigos - falou dr. Arminho em meio a uma dúzia de operários de sua mais nova construção na cidade - se vocês não acreditarem nessa porcaria de doença, ela não vai te contaminar, é simples.
Todos ficaram boquiabertos ao ouvirem essas palavras, pois era exatamente o contrário de tudo que saía nos jornais, nos rádios, na TV, nas fofocas, nos hospitais, no nhambú a quatro. Dr. Arminho só podia ter-se malucado.
- Não me olhem assim - continuou o médico que também era engenheiro, porque construir e curar é a mesma coisa, dizia ele - podem acreditar em mim e desacreditem da contaminação que esse povo está querendo enfiar na cabeça de vocês - afirmou com o melhor semblante.
- Mas, doutor ... - falou o Candinho, o bicho era servente ainda, mas pensa num cabra carudo - mas, doutor... minha tia, coitada, que nunca tinha ouvido falar dessa encrenca, porque morava lá no meio do mato, veio aqui pra cidade um dia, foi na venda do "seo" Cartona comprar rapadura, voltou pro mato, e duas semanas depois foi encontrada morta. Os documentos lá do hospital disseram que foi a porqueira desgracenta que matou ela - ele encarou todos só para saber se não estava sendo desrespeitoso demais com o patrão e foi em frente - se é questão de acreditar, ela não acreditava, porque nem sabia ou tinha ouvido falar, como ela pegou isso?
Dr. Arminho, se sentiu a estocada, fez de conta que não, e respondeu:
- Ora, é muito simples, amigo - ele não conhecia o Candinho - de duas, uma: ou ela ouviu alguma coisa nesse intervalo que esteve aqui na cidade e ouvindo, acreditou de imediato, e é bem possível porque todos só falam disso, ou ... - os peões se aproximaram para entender e ouvir bem esse outro "ou" - ou ela morreu de outra coisa.
Ahhhh.... foi a expressão de decepção que sobressaiu depois dessas conjeturas. O povo adora uma conspiração. Mas o doutor estava inflamado e não seria derrotado por um simples Ahhhh....
- É isso mesmo, ninguém pode provar o contrário. Ela ouviu, acreditou. Ou foi morte diferente.
- Tá bom, doutor, fica assim, então - tentou encerrar o assunto o chefe de obras, Jamil, funcionário antigo e que tinha mais liberdade com o médico.
Os demais foram se afastando, sem querer rir na frente do chefe, mas todos pensando a mesma coisa: o bicho tá gozando com a nossa cara.
- Esperem, esperem - falou alto, dr. Arminho - vou fazer uma proposta só para provar que estou certo.
Novamente, a atenção das pessoas ali foi conquistada e voltaram se reunir em torno do homem.
- Diga lá, doutor. Que proposta é essa?
O médico e engenheiro abriu o colete zipado, tirou o chapéu branco que gostava de usar no terreno de suas obras e disse:
- Eu vou pegar uma amostra de sangue de alguém contaminado, provado por exames, e injetarei em mim mesmo. Eu não acredito nessa doença. Se, depois de alguns poucos dias, meus exames derem positivo, estou errado, se não der nada, estou certo.
Os homens se entreolharam como se buscando alguma explicação ou coragem de falar. Ao fundo se ouvia a betoneira ruminando areia e cimento e água.
- Doutor, o senhor não precisa fazer isso - novamente, o mais antigo empregado falou - não precisa provar nada, é muito perigoso, se o senhor estiver errado, pode morrer.
- Eu sei, Jamil, eu sei disso, por isso mesmo é que quero fazer - havia certa vaidade na decisão - sou um homem de princípios e se não fizer o que prego, de que adianta pregar alguma coisa?
- Amanhã mesmo, trarei o sangue. Amanhã, às nove horas tiraremos a prova dessa loucura toda - finalizou, ofereceu adeus a todos e foi embora, todo satisfeito.
Agora Gonzales pensava nisso e não conseguia dormir. O dia estava quase nascendo. Todo mundo sabia que uma vez infectado, restava contar com a graça de Deus, Nosso Senhor, mas de tanto cansaço, Gonzales acabou resvalando para o sono. Acordou com a mulher lhe cutucando os flancos: - levante, homi, tá doente?
Gonzales bateu o café com pão na boca e disparou para a obra. Eram quase nove horas da manhã e, de longe, já percebeu o tumulto formado na entrada da construção. Apressou pé.
A notícia da estranha proposta havia alcançado mundo em tão pouco tempo. Ninguém sabia dizer como, o fato é que havia duas ou três emissoras importantes de televisão, uma dezena de homenzinhos de paletó e gravata. Jornalistas, diziam eles a quem muito lhes observasse os trejeitos. Metade da cidade também fazia peso ali. Nem precisa falar dos carros da polícia, havia um monte. Até padre Alberto, o padre mais medroso desse mundo, estava presente. Chegando por último, o prefeito da cidade deu o ar da pança, acompanhado por seis, talvez doze auxiliares dos mais imprescindíveis e outros políticos de graúdo colarinho.
Uma espécie de palco elevado a dois metros do solo se erguia diante da multidão. Em cima dele, sozinho e bem vestido, doutor Arminho era só sorrisos e acenos. Ao lado dele, pequena plataforma continha uma maleta preta e uma caixa de isopor branco. Ele levantou as mãos pedindo silêncio, no que foi prontamente atendido.
- Ora, ora ... não sabia que ia dar esse rebuliço todo, minha simples proposta - dr. Arminho iniciou, piscando um olho para os mais próximos - mas é bom que seja assim, quem sabe não sejamos nós, humildes moradores do interior que ensinaremos ao mundo como se livrar dessa imundície toda.
Os repórteres ficaram loucos e principiaram gritar para o médico algo que parecia com perguntas, mas eram tantas e ditas por tantos ao mesmo tempo que ninguém entendia nada.
- Tá parecendo briga de porco por causa da lavagem - afirmou alguém e riram daquele desespero.
- Calma, gente - dr. Arminho pediu - calma. Não vou responder pergunta nenhuma, até porquê grande culpa tem vocês nessa infelicidade toda - e ele olhou de cima para baixo aqueles homens e mulheres com seus microfones a postos, como armas apontadas - Diremos o que pretendo fazer e depois veremos como fica e é só.
Então o médico chamou para subir no palco improvisado, seu advogado e este, por sua vez, repetiu os termos do experimento para todos e para as câmeras.
A grita foi geral novamente. Os jornalistas pareceram terem criado asas, asas de urubu, seja dito, tamanha a vontade de enfiar suas garras microfônicas na boca do médico. Tudo em vão. Nesse espaço de tempo, doutor Arminho, abriu a caixa de isopor, retirou lá de dentro uma seringa contendo sangue ou algo bastante parecido e se injetou rapidamente com a experiência dos longos anos da carreira. O advogado sacou da maleta preta, e distribuiu dezenas de cópias de um documento atestando que o sangue possuía a cepa maligna ceifadora de vidas.
- ESTÁ FEITO - gritou o médico - EU NÃO ACREDITO E POR NÃO ACREDITAR NÃO FICAREI DOENTE - foi apenas o que disse e partiu cercado por alguns de seus funcionários.
O prefeito quis discursar, mas a turma logo o convenceu a ir embora. O ambiente não estava propício. A imprensa se foi, a polícia também. Voltamos ao trabalho e aguardamos os dias.
A vida seguiu seu curso, embora a ansiedade fosse materialmente palpável. O primeiro dia de espera levou um tempo horrível para terminar, e o segundo dia foi pior, o terceiro, então, parecia não acabar nunca. No quarto dia, uma multidão se reuniu na frente da casa do dr. Arminho. Queriam respostas. Mas ninguém atendia. Ninguém saía para dar notícia. A cidade quase toda passou a se encontrar diante a residência do médico. Muita gente ficava até tarde da noite. Muitas pessoas que não se viam há meses estavam se reencontrando e colocando o assunto em dia. havia crianças brincando na rua e jovens casais voltaram a dar os braços. Os mais sagazes abriram barracas de lanche. Pipoqueiros, doceiros, e vendedores de brinquedos estavam por ali à disposição. As autoridades vigiavam de longe. A grande mídia também fazia parte do circo. Ao decorrer de um mês de espera, sem resposta do médico, sem notícias, sem nada, a coisa foi se arrefecendo e os moradores pararam de ir ao local. Cada um tinha sua vida para cuidar. Seis meses depois, quase ninguém tocava no assunto.
Gonzales e dona Tilda continuaram a assistir o noticiário da televisão que não mais informava aumento dos casos da doença ou do número de mortos. Aliás, há meses não havia nada disso. Doutor Arminho continuava desaparecido, ninguém sabia o resultado da experiência, talvez fosse melhor não saber.
FIm