Home Office
por @andreaagnus
Olhava por entre os vitrais coloridos da janela. Ela morava em um flete aconchegante, com plantinhas em prateleiras de parede e um espaço iluminado para suas práticas de yoga. A cozinha era ligada à pequena sala por um corredor que sempre tinha uma rede armada, local de suas leituras da madrugada ou uma cesta de domingo. Suas folgas tão repletas de paz, tinham caído por terra por conta daquele acontecimento.
Por volta das cinco horas da tarde de uma quarta-feira, foi decretado que todos iriam para casa. Poderiam levar seus notebooks e mais o que acreditassem necessário para o exercício do seu trabalho. Uma empresa com mais de trezentos colaboradores, uma cidade com mais de dois milhões de habitantes, um país inteiro, todos (a exceção de serviços considerados essenciais) iam entrar em regime de quarentena.
O motivo agora, pouco importa. O que a fazia entrar em parafuso eram os cachorros latindo, o calor sufocante do meio dia e suas louças empilhadas as dezenas. A casa inteira tinha virado de pernas pro ar. Mas, se ela estava guardada e protegida no local que mais amava, então o que havia de errado?
Era a mesa. O pseudoambiente criado para ser a projeção de seu escritório que confrontava o seu quarto, os seus livros nas estantes e todos os seus materiais de estudos. Eram as vídeochamadas depois das 18:00. Se estivesse no trabalho bateria o ponto e sumiria. Para onde? Óbvio: sua casa. Mas, em regime semifechado o laptop de última geração da empresa ria às gargalhadas de seu computador de cinco anos atrás abandonado às traças e sem a nutrição de seus contos e poesias. As chamadas das oito as dez da noite era o pior de tudo. Onde poderia estar senão em casa. Todas as desculpas para manter sua vida dissociada do ambiente empresarial já não funcionava mais. Mas como nem tudo eram trevas, existia uma vantagem para ela: as desculpas do não posso atender estou em reunião dos clientes para os quais ligava já não tinham sentido. Em contrapartida, se não havia mais reunião, tinha o bebê a chorar, ou a esposa a chamar para o almoço ou simplesmente um vou dormir um pouco. Mas, ela não. Não dormia mais.
Foi em pleno sábado que aconteceu. O coordenador do seu setor, um homem mentalmente programado para dedicar sua vida à distopia que era aquela empresa, comunicou a todos através de uma lista de transmissão: “Vamos fazer plantão de vendas após as dez da noite”. As redes de mensagens dispararam. Foi determinação do presidente da empresa, afinal todos poderiam se dedicar à missão da companhia e o mundo inteiro estava em casa mesmo, presos no celular provavelmente. Foi em pleno sábado à noite. A casa começou a devorar seu espaço de trabalho de fora para dentro. Os quadros distorciam nas paredes, suas imagens gritavam como uma pintura de Edvard Munch e as plantas dançavam ao vento anunciando a tempestade que se aproximava. Ela estava a postos para receber as ligações das pessoas que iriam aproveitar a grande promoção: “uma oportunidade imperdível com poucas vagas”. Era sábado quando ela, em um grito há tanto tempo sufocado e cheio de cólera, arremessou o Dell Core I7 da janela estraçalhando os seus vitrais coloridos. Havia decidido: pediria demissão no dia seguinte e iria aproveitar aquele momento como a grande maioria: Netflix com pipoca, animalzinho de estimação, exercício no Instagram de apenas 10 minutos pra justificar uma live e leituras após preparar o jantar.
No dia seguinte, ligou para acertar seus papeis com o pessoal dos recursos humanos, sem sucesso. Estes foram os únicos que foram dispensados das suas rotinas, afinal o quadro inteiro da empresa tinha sido mantido em home office apoiados pela medida provisória mais recente do governo federal para manutenção de empregos e, por isso, tinha que voltar a trabalhar: agora do seu velho note, apenas com o intuito de pagar à empresa o outro que havia quebrado.
28 de março de 2020.