DE GATOS E SAPATOS

Todos os dias da sua infância na Vila São Francisco, nos cafundós das Alagoas, Avelar viu a alma do gato que ele matou assombrar as suas inquietudes noturnas, solidificando a transfiguração luminosa do felino que depois se desvanecia em miados de lamentos e de dor.

Sonsamente eximiu-se da culpa do crime ao relatar à sua mãe ter sido um infeliz acidente, provocado pelo próprio gato, que pulou para pegar uma lagartixa no exato instante em que ele disparava o seu estilingue em mira certeira na sardanita. A pedra atravessou as sete vidas do bichano fazendo um grande estrago, como se fosse bala perdida de revólver.

Sua mãe não ligou a mínima para a sorte funesta do felídeo porque, naqueles tempos, gato e sapato eram feitos para se pisar. Nem levou a sério as sombrações felinas que vinham assustar seu pirralho na calada da noite. Acreditava piamente que gato não tinha alma. Morto, não fazia medo a ninguém. Tampouco prestou atenção ao que o filho falava, pois, naqueles tempos, menino era como tamanco, ficava debaixo do banco e raramente os adultos davam importância à conversa de criança.

– Sossegue. Isso é apenas a sua consciência ecológica cobrando suas atitudes. Se não fosse o gato, seria a lagartixa que você veria – disse e se retirou para seus afazeres de mãe com outros pesos mais importantes na consciência.

***

Depois de enterrar três bichinhos virtuais, aqueles inventos japoneses que mais parecem miniatura de game, o meu filho Vinícius esperneou por um animal de verdade. Qualquer um, desde que fosse de verdade, carne, osso e pêlo para causar alergia. Uma colega de sua mãe, sabedora do seu desejo, lhe presenteou um gato siamês, que ele o batizou de Mendonça, justificando ser o nome de uma onça camarada de um desenho animado que passava na televisão.

Mendonça era um gato manso, carinhoso, preguiçoso e se deixava afagar por todas as crianças da vizinhança, a maioria cheia de bichinhos virtuais e de vídeos-games com imagens tridimensionais. Uma delas perguntou inocentemente como se trocava as pilhas dele.

Quando Mendonça era filhotinho, pequenininho, fez amizade com uma lagartixa ingênua que vinha todos os dias brincar com ele na varanda do apartamento, achando que seria possível mudar o comportamento natural dos bichos. No início ela teve medo, titubeou, vacilou, mas, com o passar do tempo, ganhou confiança, acreditou na amizade, se tornaram amigos confidentes e ela contou toda a sua vida para ele que ouvia atentamente. De vez em quando lhe dava umas estocadas com as patas dianteiras, sem feri-la. Era como gente dando tapinhas nas costas de gente em consolo de amigo.

Um dia Mendonça despertou, se olhou no espelho e se viu um lindo gato, de pelugem lanosa e garras potentes. Quando a sua amiga lagartixa desceu a parede para confabular, ele se eriçou, curvou a coluna em sinal de ataque, se aproximou finório, manhoso, traidor. Ela, sem desconfiar de nada, correu exultante para abraçar o amigo.

Tardiamente compreendeu que os gatos são como os seres humanos: usam e abusam dos amigos a seu bel-prazer, fazendo-os de gato e sapato, cativando suas amizades, aprisionando suas almas até o despertar dos seus instintos selvagens que os levarão a engolir os seus melhores amigos.

Basta, para isso, ser crédulo e confiar em demasia.

Tom Torres
Enviado por Tom Torres em 02/01/2021
Código do texto: T7150182
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