Morte é Brinde
...
Não era outro senão aquele homenzinho horrível que esteve na loja antes. O mesmo paletó amarelo-bege, sapatos sujos que já foram pretos um dia, o cabelo oleoso caindo sobre o rosto de modo a esconder um dos olhos que, muito provavelmente, era tão vazio e purulento como o outro à vista de todos. Sujeito esquisito. E agora aqui novamente. Duas vezes em uma semana. Hoje é sexta-feira.
Não gostei nenhum pouco da primeira vez que o vi. Ficou por ali, perto das revistas adultas admirando as capas dentro do plástico. Parecia querer abri-las. Até olhou para mim, certamente para se certificar de que não estaria sendo vigiado. Mas estava, canalha. Chamou-me a atenção no instante que entrou. Comportamento furtivo, olhando para todos os lados, para cima, para baixo, para trás. Não me enganou nem por um segundo. Ficou lá bem uns quinze minutos mexendo e fingindo ler as capas. Estava era devorando as mulheres seminuas expostas. Depois que se cansou daquilo deu uma volta pela loja. Tocou alguns produtos, olhou o preço de outros. Cheirou dois cadernos. Por um momento me distraí atendendo outro cliente e ele fugiu. Foi embora sem comprar nada, sem dizer nada. Agora está aqui outra vez e dessa vez não vai sair sem me dizer o que quer. Ah! Não vai mesmo.
Olha lá, está indo para a estante dos vídeos e magazines pornográficos. Safado. Espera. Ele abriu a revista? Aí não, aí é demais.
- Senhor, senhor? - disse e me encaminhei em sua direção, saindo detrás do balcão.
Ele apenas me olhou com o olho descoberto. A prova do crime em suas mãos, aberta numa foto bastante explícita da moça.
- Não pode manusear as revistas, principalmente antes de pagar - comuniquei de forma bastante direta.
Quando estava de frente a ele, notei a pele porosa e sem viço. O cabelo que lhe cobria o outro olho estava bastante grudado e brilhante. Saía dele um odor semelhante a fritura velha de batata frita. Meu estômago respondeu com veemência.
- Por favor, devolva a revista à prateleira ou pague por ela e saia.
Por rápido momento, pareceu-me que uma rusga no canto esquerdo de sua boca se vincou em sorriso, mas talvez seja apenas impressão. De qualquer maneira, ele nada disse. Num movimento muito lento a revista foi colocada no lugar. O invólucro rasgado não fez questão de se esconder e ficou acenando para mim como prova da violação exigindo uma atitude minha? Esperando que eu cobrasse uma resposta do homem? Não sei, ele se afastou em silêncio e foi mexer em outras coisas. Segui-o.
Havia mais três ou quatro fregueses escolhendo suas mercadorias, mas eles não pareciam interessados na disputa. Somente nos olhavam caminhando pelo local, mas nada perguntavam. A música ambiente tocava uma velha canção dos Beatles. Argh! Beatles...
Após breve pausa na sessão de frutas, o intruso mordeu uma maça afrontosamente diante mim. O cúmulo da ousadia se instalou. Quando ele terminou a mordida e baixou a maçã, vi que na parte branca da fruta, ficaram sinais de sangue onde os dentes se cravaram. Mas o que é isso?
- Senhor, não é permitido consumir nada nas dependências da loja. Por favor, dirija-se ao Caixa e saia.
Ele me olhou mais calmamente ainda. Embrulhou a maçã num lenço de linho que lhe saltou do bolso da calça e a guardou no interior do paletó. Então dirigiu-se à saída. Não fez menção de pagar nada. Simplesmente se encaminhou para a saída.
Estava com a mão na porta para empurrá-la quando recebeu o primeiro impacto da bala que lhe enviei nas costas. O segundo tiro atingiu-lhe o ombro e o fez girar sobre si caindo na calçada. Ao me aproximar com a arma em punho mirei o olho debaixo do cabelo e puxei o gatilho três vezes. Com os solavancos do corpo, a maçã escapou do seu bolso e rolou para longe se desenrolando do lenço que a protegia. A carne branca da fruta trazia os veios de sangue da gengiva do outro. Nojento.
A polícia chegou rapidamente. Não me defendi. Por natureza sou bastante calmo. Calmo o bastante para, depois de tantos anos nessa cela, ainda pensar se aquela maçã já estava com aquele homem antes de entrar ou se ele a pegou na banca de frutas. Os advogados disseram que ele havia comprado a fruta em outra loja. Homenzinho horrível aquele.