Nada além de cinzas...
Muller progredira rapidamente no partido nazista. Membro da juventude hitlerista, galgou degraus até se tornar oficial de alta patente da temida SS. Ele era um dos coordenadores do campo de extermínio AW-5, um dos satélites mais eficientes do campo central de Auschwitz. Quando pensava em sua carreira, lembrava como aquele garoto pobre que convivera com os ricos e infames judeus em Berlim pudera chegar tão alto. E agora era responsável por erradicar de vez o grande mal que assolava a Alemanha, varrer da face da terra os tão odiados inimigos da raça ariana. Inseridos nas camadas dominantes da sociedade germânica, banqueiros, comerciantes, médicos, jornalistas e outros profissionais judeus parasitavam a sociedade e sangravam o pouco a que os alemães tinham direito. Agora finalmente estavam recebendo o que mereciam...
O ano, porém, era 1945. Os oficiais do campo já sabiam da iminente chegada dos soviéticos, vindos do leste. A guerra estava irremediavelmente perdida. O III Reich, que duraria mil anos, agora agonizava. As ordens eram claras: erradicar todos os judeus, ciganos, homossexuais e comunistas, não deixando nenhum rastro. Sem provas. Um trabalho conjunto das câmaras de gás e dos fornos de cremação. Nada além de cinzas...
Foi na última semana que Muller colocou as últimas etapas de seu plano em prática. Um plano que vinha tomando corpo nos últimos meses. Havia cinco oficiais restantes no campo AW-5, responsáveis por matar os últimos prisioneiros. Restavam poucos. Modéstia a parte, sua unidade era a mais destacada pela eficiência no desaparecimento definitivo daqueles vermes. O trabalho estava se tornando lento demais para a urgência que tinham. Ultimamente, não perdiam sequer tempo com o gás; como os judeus não tinham mais força para reagir, jogavam-nos direto às fossas e os cobriam com terra. Ou os fritavam, vivos mesmo, nos fornos. Os sons de sua agonia eram a segunda melhor melodia depois de Wagner...
Naquele dia, uma semana antes dos soviéticos libertarem Auschwitz, um cadavérico Muller colocou a parte final de seu plano em prática. A dieta a partir de ração de alimentos havia dado certo. Para os colegas oficiais, o camarada havia contraído tifo ou outra doença no campo, mas mesmo assim esmerava-se em executar até o fim seu dever. Era digno da admiração de seus pares. Admiração e confiança. Por isso tinha sido tão fácil matá-los a todos enquanto dormiam, na noite anterior, em seu alojamento. No campo restavam somente algumas dezenas de sobreviventes, fracos demais sequer para falarem. Foi quando raspou seu próprio cabelo, vestiu o uniforme com a estrela de David e, sem ser percebido, se alojou em um dos pavilhões junto àqueles a quem tanto odiava.
A circuncisão, que tinha realizado em si mesmo há três meses, fora a parte mais dolorosa do seu ardil. Muller queria passar por um autêntico judeu. Já tinha um nome e um passaporte, Klaus Weimann, um professor que chegara a Auschwitz contando com então 30 anos, a mesma sua idade e que pessoalmente havia incinerado. Tinha que parecer um judeu até em sua máxima intimidade, não bastavam a desnutrição e o álibi que havia forjado. Injetou em seu pênis anestésicos e cortou seu prepúcio com um bisturi afiado. Sangue, dor. Determinação. Depois, reservou antibióticos, que tomou até cicatrizar sua ferida, sua nova identidade. Aguardou com paciência, comendo a ração diária que reservara num esconderijo, a chegada dos perplexos soviéticos e seu horror quanto ao que descobriram nos campos. Foi “libertado” junto com os poucos que restavam.
Nos meses que se seguiram foi cuidado por benfeitores do pós-guerra. Ganhou peso novamente, e não tardou a encantar uma linda moça de uma família judia influente. Tinha tomado o cuidado de destruir todos os seus registros fotográficos do Reich. Os poucos e traumatizados sobreviventes de sua “missão”, que poderiam reconhecer-lhe ainda, não o fariam com a barba e os óculos de seu novo e definitivo personagem. Crescera entre os judeus em Berlim, conhecia como poucos seus costumes e crenças. Aquelas aulas de hebraico quando menino miserável, em troca de abrigo e refeições, renderiam excelentes frutos. A posição de seus sogros o permitiu seguir a carreira de guia religioso. Muller conseguira. Ou melhor, Klaus. Apagara seu passado, comprara sua liberdade e sua absolvição e agora era o modelo de retidão moral da comunidade judaica a que servia. Após o final de cada culto, numa luxuosa e inspiradora sinagoga de um bairro nobre, despedia-se de cada homem, mulher ou criança com a palavra “shalom”, que basicamente significa paz em hebraico...
Tudo ia bem. Até um dia em que, na sinagoga já vazia, um homem transtornado entrou. Órfão da antiga ordem da Alemanha, aos gritos de “morte aos judeus” e “Heill Hitler”, lançou sobre o agora guia religioso uma bomba incendiária, que tomou conta de todo o local. Ao ser devorado pelo fogo, consumido primeiro em sua pele, carne e depois carbonizado até os ossos, Muller podia ver e ouvir as milhares de almas dos mortos, sim, dos seus mortos, que clamavam por ele de um inferno longínquo. Em breve não seria nada
além de cinzas...
Conto escrito em 2013, muito antes da série "Hunters", da Amazon Prime Video. Incríveis coincidências...