O Queijo ou o sabor da discórdia...
A última safra tinha sido o ponto final de uma vida inteira dedicada à terra. Dona Eulália, Seu Bento e o filho Zeca tinham agora que encarar o rumo da cidade em busca de serviço. Qualquer serviço. A praga devorara o milho até não restar nada. Dava a impressão até que, em seu voraz apetite, a praga devorara a si mesma inclusive, numa violenta autofagia. Os poucos pertences da família, em trouxas, já estavam arrumados para a partida na primeira hora da manhã. Pegariam o caminho com o carroceiro que levava as verduras à Santana. Deram três contos por cabeça por um transporte lento e judiado. Aquela janta seria a derradeira em casa, com os parcos recursos que sobraram da família. Dona Eulália chegou do mercado com dois pacotes, o habitual de farinha e outro que causou estranheza a Seu Bento: grosso, bem embalado em papel branco, amarrado com uma cordinha. Zeca também parou pra olhar, curioso do que seria. Dona Eulália se adiantou: - Trouxe a farinha pro mingau salgado. E mais uma coisa. Como é nossa última refeição aqui, trouxe um queijo. O dinheiro que sobrou deu pra um pedaço modesto, mas é do melhor. Dá uma fatia grande pra cada um. Nisso ela foi desnudando o pacote, abrindo com delicadeza a cordinha, retirando lentamente o papel. O cheiro do queijo chegou ao olfato dos três, encontrando a fome que traziam consigo, uma fome que não era de ontem somente, era de toda uma vida desvalida e aliviada tão somente no mínimo. Foi então, sem mais, que o demônio da cobiça e da discórdia se instalou entre os três. Cobiçaram aquele queijo, não uma lasca apenas, mas a sua totalidade. Naquela hora, eles quiseram o queijo com o desejo mais egoísta que se pode desejar. Eles desejaram com raiva e beligerância em seu íntimo. Fez-se porém silêncio em suas intenções; um não sabia da ameaça que o outro representava por uma porção a mais daquele manjar, que parecia ser a última fatia digna de uma vida que acabava no campo para virar algo diferente, algo pior do que já fora. Quietos, faziam planos para terem o prazer de usufruir sozinhos do deleite do queijo. Naquele momento, não importavam consequências, o que viria a seguir. Importava apenas se apropriar sozinho do manjar, saciar o desejo ardente, tão somente. O resto era o resto. Dona Eulália se achegou ao velho fogão a lenha para preparar o mingau salgado. Zeca pensava numa forma de pegar o queijo e sair dali correndo. Seu Bento procurava a arma para ameaçar o filho e a esposa enquanto comeria sozinho o pomo da discórdia. - Vamos sentar pra comer – disse Dona Eulália, servindo a porção de mingau de cada um. Os dois homens comiam lentamente, calculando o momento certo de agir para apossarem-se do queijo. Foi quando uma sensação estranha, de mal-estar, tomou conta deles: num instante estavam caídos no chão, convulsionando entre a vida e a morte. – Aquele veneno de rato viera a calhar – pensou Dona Eulália. E sentou-se diante do queijo com um ar tranquilo, apreciando aquela dádiva com todos os sentidos, lentamente. Uma refeição nobre como nunca tivera em toda sua vida. Depois tomaria também sua porção de mingau.