E AGORA, JOSÉ?

E AGORA, JOSÉ?

Morava sozinho com o gato e o papagaio, o último escapou, em várias oportunidades, de ser assassinado pelo bichano. José, gastava pouco com a estimação, dividia com ambos almoço e jantar e os acostumara à elipse do café da manhã. As primeiras horas do dia são propícias para a produção intelectual. Acordar cedo, ir ao escritório a duas quadras, passar às onze e quarenta e cinco na viandeira, almoçar rápido, tirar um cochilo de meia hora e fazer a tarde passar conforme a rotina diária. Vida repleta de poucas emoções!

O gordo da padaria recebe-o sorridente como sempre. Coloca na sacola os dois pãezinhos e a caixinha de leite integral. Pergunta se não falta nem presunto ou queijo, acrescenta o catchup, recebe e guarda a paga desejando uma boa noite. Em verdade, o gordo sabe todos os desejos dos invariáveis clientes. José observa-o de esguelha, emite um risinho pelo canto da boca e sai, quando pára um carro da polícia. À ordem de “mãos ao alto”, ele larga as compras sobre uma mesa ao lado da porta e imediatamente é revistado sem saber o motivo e sem protestar. Recebe a ordem de embarcar na viatura da Brigada e, sem poder levar as compras, é conduzido à delegacia. Querem saber onde esteve à noite passada, que horas chegou em casa, por que não desligou a luz nem de madrugada, onde está a arma do crime. José nega-se a responder sem que lhe digam de que crime é suspeito. O delegado insiste que será informado disso tão logo responda e diz-lhe que, se quiser, pode pedir um advogado. Caso não o peça terá duas opções: responder ou se calar por completo, que esta é uma diligência. Optando pela segunda alternativa ficará preso até o esclarecimento do crime.

A sessão dura uma eternidade. Resolve responder para ver no quê vai dar essa história absurda. Então, um pacato despachante é suspeito de um crime de estupro seguido de morte? Como a polícia chegou a ele parece-lhe algo indefinível. Para o bem das investigações não lhe responderão à pergunta. Também precisa ser mantido em sigilo o denunciante e preservada a integridade de eventuais testemunhas, conforme a lei.

Após três horas e meia, é liberado. A viatura deixa-o em frente de sua casa. A padaria está fechada. A fome bate forte. O gato mia na almofada e o papagaio tem um ataque de risos, bem escondido nas folhas do pé de manga. José senta no sofá e pensa em todo o acontecido. Vai à geladeira, pega um pouco de presunto e de queijo para comer, assim, sem pão. Joga um pouco ao gato que, sentado a sua frente, o fita, com seus olhos faiscantes, comendo. Chama o Ricco que continua na mangueira. Ele não aparece, pode ser medo do gato, em quem ele nunca mais confiou depois que o safado arrancou-lhe duas penas da asa direita, e que o impediu, por dias, em subir na mangueira.

Cansado estica-se no sofá. A história mal contada intriga-o sempre mais. Quem será que quis jogar nele a responsabilidade daquele crime hediondo do qual somente ficou sabendo na delegacia, durante o incômodo inquérito? Ou será um engano dos homens da lei? Com o pouco que consegue ganhar nos serviços do escritório, não se acha em condições de contratar um advogado para mover um processo difamatório. Ah! É isso! O novo concorrente! Só pode ser que esteja tentando jogá-lo na lama para tirar-lhe a pouca freguesia que, a custo de muitos descontos, consegue manter. As alterações nas leis de registro e licenciamento de carros alijou sua classe. Para intermediar a obtenção de alguma documentação precisa prestar um serviço de primeira. Há tempos não sabe o que é uma festa, uma saída à noite com alguma garota. De vagabundas não quer saber, é muito risco, e as mais decentes são muito exigentes em matéria de requinte dos locais a freqüentar. Então, o jeito é ficar em casa, curtir algum filme na TV. Ser denunciado como suspeito num crime é, no mínimo, maldade além dos limites!

Não consegue dormir e resolve sair para a rua sentir a brisa. A noite calada, na pacata cidade, parece nada propícia a estupros seguidos de morte. Porém, aquele acontecido na noite passada é o terceiro em duas semanas. E não conseguem agarrar o criminoso, pela semelhança das ações, a mesma pessoa. Deveria nem se preocupar com o fato de o inquirirem, afinal, é inocente. A idéia parece-lhe sossegadora. Engano. Sabe que é alguma perseguição. Neste momento todos, na redondeza, já devem saber de tudo e certamente vão olhá-lo diferente de amanhã em diante. Um estuprador, um assassino! Como não está na cadeia?! Os poucos clientes fugir-lhe-ão e, então, viverá de quê? Na cidade as poucas empresas estão demitindo e, raramente, fica-se sabendo de alguém que conseguiu emprego novo. Irá mudar-se para a região metropolitana para afundar por lá, como tantos amigos e também colegas de escola, dos quais, nunca mais, nada soube? As dúvidas atormentam. O delegado recém chegado à cidade ainda não o conhece. Não sabe que ele, nos bons tempos, quando a delegacia realizava os serviços de registro e transferência de veículos, era amigo dos funcionários e, não raras vezes, patrocinava um café para todos os que trabalhavam na repartição, que seu trabalho era facilitador das tarefas da entidade e tinha a máxima seriedade e qualidade. Como dói na alma uma situação dessas! Ser inquirido como um criminoso da pior laia e, por cima, ignorado, até mesmo, pelas pessoas que o conhecem!

A brisa esfria e ele resolve voltar. Deita na cama e, finalmente, consegue adormecer. No sonho ouve o papagaio gritar de dentro da mangueira: “foi o José, foi o José”! Viu-se pegar suas roupas e fugir. Banhado num frio suor, acorda e ouve o Ricco, agora ao vivo mesmo: “foi o José, foi o José”! Num átimo, parece-lhe tudo claro. O inocente bichinho era o denunciante e alguém deve tê-lo levado a sério. E agora José?, pensa antes de apertar o gatilho, que faz um tiro ecoar embaixo da mangueira.

Obs.: Este contato está publicado na Coletânea “Lonjuras” da Assoc. Santa-rosense de Escritores – ASES – 2005.