... E sereis iguais a Deus
... E sereis iguais a Deus
Meu colega Nicolau Freitas, havia sido achado morto na periferia da cidade, num sítio baldio que era usado a miúdo como lixeira municipal e ás vezes como campo de pelada pelas crianças da favela próxima. Ele estava atrás do rasto de um homem argentino, de uns trinta e seis anos, de quem se sabia, era divorciado, sem filhos e sem emprego fixo, e que tinham dado por desaparecido fazia várias semanas. O homem, de nome Paulo, teria morado no Brasil por aproximadamente quinze anos e estaria agora em Córdoba, em casa dos seus pais, segundo as últimas informações. O caso é que Nicolau, jovem bastante acanhado, como todos o definiam na delegacia, seguia uma pista para saber, entre amigos e parentes do desaparecido, a razão pela qual Paulo tinha sumido tão misteriosamente a poucos dias de sua chegada a Argentina. E o detetive Freitas, havia deixado entre uns papéis da sua propriedade, encontrados no quarto alugado no bairro Alto Alberdi, tão digno de sua condição de solteiro como da sua pouca ambição, indícios do rumo da pesquisa. As anotações falavam da suspeita que ele tinha de uns moradores de uma antiga mansão localizada num povoado no interior do estado, a beira da estrada que leva a Santiago del Estero, e fica a uns oitenta quilômetros da capital, Córdoba.
28/09 - Há um casarão no centro de “Sonho Parado” onde vive uma família com o pai, a mãe e seis ou sete filhos, entre cinco e dezesseis anos. Segundo os vizinhos, têm visto no lugar um homem alto, loiro, que passeia pelo pomar da casa, pega sol ou lê um livro. Dizem que o homem fala com sotaque estrangeiro.
27/10 - Todas as vezes que estive em Sonho Parado, nunca pude vê-lo. As crianças não assistem à escola. Apenas a mãe sai da casa para ir até o super. Nada fora do comum.
29/10 - Pedi a algumas pessoas do lugar que tentem lembrar mais à respeito para informar-me quando eu voltar lá, qualquer fato que lhes pareça suspeito ou não, qualquer coisa.
05/11- Hoje vou interrogar, se puder, a alguém da casa. Tomara que consiga ver o homem.
Não sei o por quê, mas todos os cabelos da nuca ficaram em pé enquanto lia isto. Eu tenho vinte e seis anos, solteira, e entrei para o corpo da policia porque não arranjei outro emprego que me oferecesse maior estabilidade que o salário que ganho lá. Minha mãe já é uma mulher de idade avançada e eu gostaria que ela parasse de passar os dias tricotando para os outros, criando até corcunda nas suas pobres costas para arranjar um tostão que nos permita comer. Tenho a esperança de entrar numa faculdade para estudar inglês, mas por enquanto o tempo é pouco, ainda por cima, faço serão para conseguir poupar umas moedas.
Não sinto falta do Nicolau. Ele era que nem eu, mais um que pegou esse trabalho e embora a gente não gosta de pensar, nós temos um contrato pré-pago com a morte. Nossos nomes estão na loteria diária mais que o de nenhum outro. É por causa do fim do milênio dizem alguns, mas para mim o fim do milênio, o planeta, o tal de “deus”, não têm nada a ver com as burradas que os seres humanos cometemos dia após dia com a maior impunidade. Me vem á memória o que o Fidel Castro disse na Eco 92, no Rio “O homem é um animal em extinção”, e o cara tem toda a razão.
“O delegado Roldão quer ver você”. As palavras do colega me sobressaltaram. Fui até a presença do doutor. “Como você já sabe, não tem ninguém escolhido para continuar com a investigação do Freitas” disse “e agora vamos ter que resolver o caso da sua própria morte”. Escutei atentamente como adivinhando até onde chegaria.“Os superiores estão me ordenando colocar outro investigador no seu lugar, o caso do brasileiro está em suspense e acho que vou encerrar de uma vez, só que gostaria que você fosse até aquele lugar... Sonho pesado... Sonho Parado, e fizesse um relatório com o que eu possa justificar a nulidade das suspeitas do Freitas. Tenho certeza de que isso não tem jeito. Pra mim o brasileiro voltou pro Brasil. Que procurem ele lá. Quero mais é saber o que aconteceu com o nosso rapaz.”
Tive nas mãos duas passagens, ida e volta, dinheiro para três dias, e se soubesse fazer bom uso do relógio, um tempo de descanso e nenhuma obrigação de vestir o uniforme. Com certeza, Freitas tinha imaginado tudo, ou no último dos casos, estava usufruindo como eu acabava de pensar, de umas férias curtas às custas do dinheiro da investigação.
Me deparei com uma pequena cidade no meio das montanhas e no alto de um morro. A igreja era cinzenta com o estilo de todas as igrejas, vai ver era da época da colonização. Ao pé da igreja as pessoas se movimentavam constantemente como se fosse dia de festa e no entanto não era domingo. As quatro ruas em encruzilhada, eram de asfalto e muito empoeiradas, é que o asfalto cobria apenas uns cento e cinqüenta metros à partir do ponto de convergência, e as pessoas que vinham de longe traziam os calçados bastante enlameados. Os prédios mais altos que vi foram o da igreja, o do hospital, o shopping e a mansão que ocupava mais de meio quarteirão. Eu levava na mochila uns catálogos de Avon que conservara para escolher algum produto de oferta. “Faço a pesquisa e depois vou ao shopping ou passear pelos arredores... perto tem um rio... não quero parecer da policia, vou me apresentar como vendedora de cosméticos, assim talvez consiga entrar na casa ou pelo menos conversar com alguém da família... como já sei que é à toa, faço o relatório e acabo com esse rolo.
A casa não tinha portas que dessem pra rua. Bati as mãos e fui entrando pela calçada lateral que beirava o pomar. Caminhei uns vinte e cinco metros e me detive frente a uma porta aberta, entrada para o que parecia uma sala. Então saiu para me receber um homem alto, loiro, de cabelos compridos até a metade do peito. Vestia uma bata de cetim verde esmeralda. Me cumprimentou cordialmente e me convidou a entrar. Na sala, uma mulher como de cinqüenta anos que não pronunciou palavra, me observou detidamente. Três crianças e uma adolescente de pé ao seu redor, me olharam com curiosidade quase de zomba. Me apresentei ao homem e lhe ofereci os cosméticos ao azar, afinal de contas ali havia todo tipo de consumidores. Acabamos conversando sobre trivialidades. Tomei coragem, por causa do papo, para perguntar “Você trabalha? Ele piscou o olho e respondeu que sim, embora duvidei da afirmação já que era a hora da sesta e ele estava ainda em casa e vestido daquele jeito. Acho que adivinhou meus pensamentos porque tornou a piscar e fez um ademão como pedindo que não insistisse com perguntas. Depois chegou perto de mim e sussurrou “Tá tudo quase acertado, falta muito pouco para concretar o que quero, tá quase” e olhou para a mulher que parecia alheia ao nosso papo. Imaginei que o homem era amante da dona de casa e talvez pretendia viver as suas custas. Então a atenção da mulher pareceu reviver e falou comigo apresentando o marido que acabava de entrar na sala. Notei que entre ela e o jovem que falara comigo não havia nada que declarasse qualquer relação amorosa. Era como se ela não sentisse nenhum interesse pelo Paulo. O marido foi muitíssimo mais gentil tanto que me convidou a conhecer a residência enquanto as crianças seguiam a gente bem de perto fazendo bulício.
Assim, passamos a uma enorme habitação, que lembrava um salão de festa, ali não havia nada de especial, a não ser um janelão à direita o qual dava à igreja. Creio que vi também um piano de cauda no outro extremo, junto da parede da esquerda. Depois fomos até a seguinte habitação, um quarto de criança, onde uma adolescente deitada numa cama, se contorcia levemente balanceando as cadeiras como se estivesse a ponto de ter um orgasmo. Quando reagi e perguntei o que estava acontecendo, as crianças me rodearam e empurraram até outra janela. Disseram, como quem não quer nada, que estava doente. Através do vidro também vi a igreja. Finalmente chegamos ao quarto do casal onde o clima de bom humor não se perdeu ainda que certos detalhes começaram a me comover e surpreender, e mais tarde a aterrorizar-me. Apalpei a pistola e o celular da mochila. Não achei que fosse o momento de usá-los, ainda. Uma das meninas com um gesto rápido retirou um saco plástico pendurado num prego na parede. Como aqueles dos hospitais, que costumam conter plasma, mas muito maior, como de dois litros. Estava cheio de uma sustância gelatinosa, que nem clara de ovo, com fios aglutinados dentro do material. Então percebi que o lugar cheirava fortemente a secreção humana. Concretamente a cheiro de sêmen humano, e era isso o que continha aquele saco, estava cheio de sêmen. Naquele instante me dei conta de que havia outros recipientes iguais espalhados na casa toda e que eram usados com regularidade tanto pelos varões, Paulo inclusive, como pelas mulheres, que sentindo-se excitadas, se masturbavam e depositavam ali seus fluidos várias vezes ao dia.
Os moradores da casa mostraram hesitação, tal vez pelo rumo que tomou meu olhar, tal vez pelo gesto que tentei disfarçar, mas fiz tudo o possível para demonstrar calma. O pai recebeu friamente o saco, verificou o conteúdo a contraluz e expressou muita satisfação pelo que conseguia ver -eu não imaginei o quê- que estava tudo certo para servir aos seus propósitos -também não imaginei quais. O rosto de todos os presentes demonstraram alegria e entusiasmo. Então o doutor Júlio, nome que ele me deu e pediu que assim o chamasse, estendeu uma maquete de papelão sobre a cama de casal, na que estava representada um bairro com casas, ruas e arvores, e uma pracinha com jogos infantis. Os moradores da maquete eram pequenos vermes de cor marrom que se contorciam dentro dessas construções de brinquedo. Foi então que a mulher reclamou da irresponsabilidade do marido por ter me mostrado, sem nenhuma prudência, o seu passatempo. O rosto feminino ficou tenso, carrancudo, com as sobrancelhas baixas, mas seu cônjuge não lhe deu atenção e continuou com a demonstração e os comentários. Eu fingia que elogiava a lavor com bastante hipocrisia, na verdade sentia-me tão enjoada com tudo, a situação, a casa, as pessoas. Pensava em Paulo, seu propósito parecia tão ingênuo. Também estaria sendo usado como semental? E depois disso o que aconteceria com ele?
Quando saímos do quarto escutei que a mulher me elogiava “Ela é muito agradável” dizia “merece ser nossa hospede, ela pode vir a nossa casa sempre que quiser que será bem recebida”. As crianças concordaram com ela. Eu, pelo contrario, senti que uma vez que pudesse sair dali nunca mais me arriscaria a voltar, e fosse qual fosse a sorte de Paulo, eu não quereria saber. Senti desprezo pela sua soberba de supor ser tão astuto. Tinha certeza de que estava correndo um grave perigo.
Já voltando, a caminho da sala, passamos pelo quarto de crianças. A adolescente continuava lá, deitada, tentando ter seu orgasmo ou pelo menos era isso que eu tinha imaginado; e parecia estar custando-lhe muito. Cheguei perto dela e me olhou como pedindo ajuda. Senti pena. Estiquei a mão numa caricia e senti seus músculos tensos e sua pele suada.
Um dos meninos, o de sete anos, trouxe um gatinho peludo de pelos cor de mel, que deixou encima da cama perto da cabeça da moça. Também afaguei o corpo do bichinho. O animal fez um gesto de complacência, como os gatos fazem, fechou os olhos e empurrou a cabeça contra a palma da minha mão. Então vi o sorriso que repuxou os lábios e os bigodes. Continuei a caricia pelo seu lombo e os dedos descobriram a forma de um corpo de criança sob a abundante pelagem. Pude sentir a coluna e as costelas, e me dei conta, ainda com mais terror, que um embrião humano havia sido ultrajado numa hibridação. Tinha á minha frente o produto dessa ação, a mistura de um humano com um felino.
O tempo corria com velocidade e a iminência de começar qualquer ação era muito mais importante que as reflexões que pudessem me assaltar naquela hora. Quis acelerar a partida, mas umas mãos me detiveram num ato carregado de perversão, sujeitando-me pelo pescoço e pela cintura. Alguém me desfez, de um puxão, da mochila e da roupa interior. Fui obrigada a deitar encima da adolescente, que começou a se mexer, ainda mais, roçando seu púbis contra o meu, fato que aligeirou sua excitação. Então, fechou os olhos e conseguiu atingir o orgasmo. Depois me beijou as faces, as pálpebras, enquanto eu permanecia imobilizada por trás. Me olhou, desta vez com agradecimento.
A última coisa que pensei, antes de cair na inconsciência por causa do cheiro de éter, foi que sobre a sua vulva tinham ficado restos do meu fluxo vaginal, e imaginei, por um momento, o destino que essas células iriam ter quando manipuladas no hospital do outro lado da parede. Temi vir a saber algum dia, que um filho meu existia no corpo de um animal, e que irônico seria isso já que não posso conceber, e no caso o único gerado seria assim um monstro.
“Aí cara, vê onde você jogou a bola, vai procurar agora” Escutando aquela voz infantil fui voltando ao ajuste da consciência à vigília. Minha cabeça doía, senti a língua amarga, os lábios ardiam. “Aqui tem dois cadáver, aqui em dois cadáver” Repetiu a voz com angustia enquanto se afastava com as passadas ofegantes da criança. Eu não estava morta, e isso era evidente. Ainda que muito maltratada consegui erguer metade do corpo até ver o rosto belo, porém amarelado, de Paulo, emoldurado no cabelo loiro e ondeado. Seu corpo estava jogado a um metro de mim. Ouvi a sirene e agradeci que desta vez meu número não tivesse sido sorteado na loteria do dia. Só não sei por que aquelas palavras do Gênese ressoavam no meu pensamento “... e sereis iguais a Deus”.
(Gênese 3:5. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal)