Um dia estranho
O dia de hoje foi muito estranho. Tão estranho que eu decidi fazer esse relato por escrito, para ver se dessa forma eu entendo melhor o que se passou. Tudo começou quando eu acordei com uma pata peluda sobre o meu rosto e um miado irritado.
Achei que tinha dormido demais, afinal de contas, Tufão só me acorda quando está com fome, e isso é sempre perto da hora do almoço. Ainda zonza de sono, olhei de relance pela janela e vi que ainda estava escuro. Tão escuro que nem era possível diferenciar as árvores do parque dos outros prédios. O horário no celular confirmou a minha suspeita: eram quatro horas da manhã. A menos de seis horas atrás eu tinha posto comida para o gato. Não podia ser fome.
Eu estava deitada e enrolada no cobertor. Me levantei, deixei o cobertor sobre a cama, acendi a luz e fui até o potinho de ração dos gatos. Estava vazio. Completamente vazio. Tanto o potinho de Tufão, quanto o de Belize (que estava se refrescando no parapeito da janela). O estranho é que eu me lembrava de ter posto comida para os gatos antes de dormir. Encarei Tufão nos olhos – afinal de contas, ele é o guloso dos dois. Decidi que o gato não deveria estar mentido, e enchi ambos os potinhos. Os gatos estavam mesmo famintos, pois vieram comer na mesma hora.
Quando voltei para o quarto, outra coisa aconteceu. Eu tinha certeza que tinha deixado o coberto sobre a cama, mas apenas os travesseiros estavam sobre ela. Também não havia nada sobre o piso. Eu confesso que nessa hora eu senti o meu coração acelerar e pude ouvir o ar entrando dentro dos meus pulmões. Como as cobertas poderiam desaparecer em tão pouco tempo? Haveria alguém dentro da casa? Como alguém poderia se esconder num quarto e sala de 40 metros quadrados? Olhei desconfiada para os armários – que eu sabia estarem tão lotados de coisas que jamais permitiriam a uma pessoa se esconder. A não ser que…
Me ocorreu que eu deveria olhar embaixo da cama. Relutei por alguns minutos, mas se havia algo escondido, o lugar mais provável era lá. Peguei o telefone celular na expectativa de utilizar a lanterna (e também porque eles transmitem essa sensação de segurança de poder pedir ajuda a qualquer momento). Me preparei para o que quer que estivesse embaixo da cama. Antes que eu direcionasse a lanterna, Tufão e Belize decidiram brincar de pega-pega na sala o que resultou num barulho tão alto que me fez gritar e pular para trás. Respirei fundo e abaixei de uma vez. A lanterna iluminou uma forma disforme embaixo da cama, que me fez fechar os olhos e gritar novamente. Como nada aconteceu, abri os olhos e mais calma compreendi o que eu estava vendo. Era apenas o cobertor, embolado em si mesmo.
Se por um lado isso acalmava, por outro me preocupava. Ao levantar, eu poderia derrubar a coberta no chão sem perceber, mas jamais a chutaria para debaixo da cama sem me dar conta disso. Alguma coisa tinha puxado a coberta. E o que quer fosse, ainda podia estar lá, segurando a outra ponta do tecido. Eu precisava de uma resposta, então decidi fazer isso da forma mais rápida possível. Estendi o braço para debaixo da cama e puxei o cobertor. Nada. Apenas a coberta. Iluminei toda a parte inferior da cama. A única coisa que havia era um pouco de poeira. Num lapso de coragem, abri todos os armário e gavetas. Apenas roupas e objetos inanimados olhavam para mim. Comecei a me sentir paranoica e vulnerável.
Sentada na cama, comecei a elencar hipóteses. Talvez eu estivesse enlouquecendo. Fazendo coisas e depois esquecendo. Ou lembrando de coisas que nunca aconteceram. Eu tinha lido uma reportagem falando que era comum desenvolver esquizofrenia na casa dos trinta. Talvez fosse isso. Ou então… Censurei meu pensamento. Essas coisas não existem.
Ainda era cedo, mas se eu continuasse remoendo o problema, ele me consumiria. Então, decidi começar o meu dia. Tomei banho, me sequei rápido pois o vidro quebrado do basculante deixava entrar um vento frio, me vesti, e fui preparar o café da manhã. Acendi o fogão, fervi a água, enxaguei a garrafa térmica com água quente, peguei o pão para preparar torradas. E quando eu peguei a torradeira, percebi algo inusitado. A tomada tinha sido arrancada. Não apenas dela, mas de todos os outros eletrodomésticos que ficavam guardados no mesmo armário. A sensação de não ter o controle do que se passava na minha própria casa foi demais. Desliguei o fogo e sai.
Com exceção do fato de eu ter passado quase duas horas ouvindo rádio dentro do carro no estacionamento da empresa, o resto dia transcorreu normal, Respondi a e-mails, ri das piadas do Flávio na hora do café, reclamei da organização do arquivo de projetos, participei de uma reunião chatíssima sobre a reforma da fachada do prédio da praça da liberdade, fui almoçar com as meninas da contabilidade, passei quase um hora discutindo sobre fascismo no facebook, imprimi três ofícios para protocolar um projeto junto a prefeitura, validei uma planta no autocad. Por um momento, até tinha me esquecido dos acontecimentos do início do dia.
Na saída do trabalho, dei carona para dois estagiários que iam para uma palestra na universidade perto da minha casa. Isso me distraiu. Quando eles desceram, o problema caiu como uma bomba sobre a minha cabeça: o que quer que houvesse de errado estava na casa e não comigo. Será que… me censurei de novo, afinal de contas, fantasmas não existem.
Subi os três lances de escadas até o meu apartamento com receio. Ia em zigue-zague pelos degraus, como uma criança enrolando para chegar em casa porque sabe que vai ser castigada. Quando eu me aproximei da minha porta ouvi os gatos miarem, o que me fez entrar em pânico. Algo teria acontecido com eles? No desespero me atrapalhei com a tetra chave, o que fez os gatos apenas miarem mais alto. Abri a porta e eles se enfiaram atrás das minhas pernas em pânico. Peguei os dois no colo, não pareciam machucados. A medida que eles se acalmaram eu pude perceber que os miados estavam abafando um outro som. Um som seco, horrendo, como duas coisas sólidas batendo uma contra a outra. Agarrada a Tufão e com Belize equilibrada sobre meus ombros, eu segui o ruído. Vinha do quarto, não de debaixo da cama, ou dos armários. O som vinha de trás das cortinas. Tufão se agitou quando eu me aproximei da janela e decidi por ele e Belize no chão. Contei até três e puxei a cortina…
Ele gritou e eu gritei também. Não apenas gritei como cai sobre a cama e continuei correndo como se o horror provocado por aquela criatura fosse uma gosma que cobriria o meu corpo quanto mais tempo eu permanecesse ali. Apanhei os gatos, minha bolsa, e sentei do lado de fora do apartamento. Nisso, restam algumas perguntas:
1 – Como um guaxinim conseguiu entrar num apartamento no centro da cidade?
2 – Quanto tempo o resgate de animais vai demorar para chegar?