Sete Almas
O corpo de Kauane Isidoro jazia inerte no chão da pedreira. Os homens que a mataram davam prosseguimento a um ritual fúnebre inusitado. Um deles decepou com um facão as mãos e a cabeça da jovem. O outro despejou gasolina sobre o que sobrou e riscou um fósforo. Enquanto a fumaça preta ganhava espaço, um terceiro homem arrancava os dentes da boca da jovem. Arrancou também dois enfeites de madeira que ela possuía no lábio inferior e na orelha direita. A cabeça decepada e desdentada e as mãos foram jogadas numa represa a cento e vinte quilômetros dali. Os dentes e os enfeites permaneceram num pote de maionese; souvenir macabro. Logo as cinzas se dispersaram e nem mesmo os mais sagaz cão de caça poderia encontrar o que um dia foi Kauane.
Ela era jovem, tinha a pele avermelhada e os cabelos compridos e negros. Era professora, herdeira do legado da xamã da sua aldeia e uma das poucas pessoas que ainda falava com fluência a língua de sua tribo. Dominava também as artes do mundo de concreto. Foi a primeira indígena a se formar em direito numa universidade federal. Era referência numa ação que buscava reintegrar a posse de um conjunto de 10.000 hectares aos moradores da sua aldeia. Infelizmente, esses hectares estavam sobre um veio muito importante para uma mineradora. Só que o processo encabeçado por Kauane era muito bom. E diante da impossibilidade de chegar ao resultado desejado pela via legal, o presidente da mineradora optou por um caminho alternativo. Kaune jazia inerte no chão, e sua tribo perderia as terras as quais tinham direito.
Para a grande maioria das pessoas que habitam o mundo de concreto existe apenas um corpo e uma alma e essa união se dá antes mesmo do nascimento. Na concepção, já há alma. Na tribo de Kauane era diferente. A alma só viria a morar no corpo após o primeiro ritual de iniciação onde era colocado um enfeite no lábio inferior e um na orelha direita. Junto com ela, viriam outras seis almas. Durante o sono a alma principal sairia para passear, e as outras seis almas cuidavam do corpo. Quando a alma principal se perdia, a doença se instalava no corpo (e era fundamental contar com a ajuda das seis almas para reconduzir a alma principal para o corpo). Quando o corpo morria, a alma principal morria, mas as seis almas continuavam lá até que os espíritos da natureza viessem buscá-las. E como qualquer ser que vive, elas precisavam comer. Por isso, na aldeia de Kauane os ritos fúnebres envolviam danças e comida; dança para saudar o espírito que se foi e comida para alimentar aqueles que ficaram. As obrigações com os mortos duravam vários anos. Nos seis espíritos que ficam reside a memória de quem se foi.
Entretanto, o ritual fúnebre perpetrado pelos assassinos de Kauane em nada se parecia com o rito da aldeia. Não deixaram nada para alimentar as seis almas. Elas esperaram pacientemente na pedreira por seis dias. No sétimo, elas saíram para comer.
Quando uma família indígena não cumpre com suas obrigações fúnebres normalmente as almas voltam em forma de onça e reivindicam na aldeia a comida que não receberam. A pedreira ficava a 50km de uma cidadezinha com 5.000 habitantes que assistiu horrorizada seis onças correndo pela rua principal. Foi notícia em todos os jornais. Vídeos circularam pela internet. A agressividade das onças chamava a atenção dos especialistas. E também sua fome. Onças não costumam atacar seres humanos, mas aquelas fizeram 3 vítimas.
Os espíritos entretanto continuavam famintos. Os espíritos da floresta podem levar anos para vir buscar os que ficam. Voltam quando a memória está consolidada na aldeia; quando o legado tem um novo dono.
E famintas, as onças continuavam sua caçada. Seguiram pela floresta até uma cidade maior, onde ficava uma das subsidiárias da mineradora. E quando atacaram, acabaram sendo sendo baleadas por moradores locais. Houve festa e comemoração. Todo mundo queria tirar foto com os corpos da onças assassinas. E quando o sobrinho do prefeito foi posar para a foto, os corpos das onças começaram a se dissolver. Não eram corpos de fato, eram só espíritos em desespero.
Começou então o falatório de que as onças era sobrenaturais. Magia negra. O prefeito tinha certeza que seu adversário tinha invocado as onças já que seu adversário era da umbanda. “Ele tem pacto” disse o prefeito enquanto discursava numa igreja evangélica. Não era um homem religioso, mas sabia emular o trejeitos e vestimentas dos homens religiosos. Ao menos das religiões que rendiam votos.
Quando uma alma morre de fome ela não morre de fato. Ela não vai para o mundo dos espíritos da floresta; ela vai para o mundo subterrâneo, do qual volta para fazer o mal sempre que a noite cai. E foi o que aconteceu.
Na primeira noite sentiram tremores por toda a cidade como se gigantes estivessem batendo no chão. Na segunda noite todos os cães domésticos da cidade apareceram com ferimentos como se tivessem sido espancados. Na terceira noite, cadáveres apareceram por toda a cidade. Não apenas nos cemitérios, que tiveram seus túmulos violados, mas também em lotes vagos, matas, quintais, e qualquer outro lugar que já tivesse servido de descanso para os mortos.
Os habitantes da cidade, em pânico, exigiam ações do poder público, que estava completamente perdido com a situação. A situação repercutiu pelo mundo e especialistas das mais diversas áreas e religiões vieram para a cidade. E em paralelo a isso, muitas respostas apareceram. Porque foi necessário identificar os corpos que apareceram antes de dar fim a eles. Gente desaparecida a muito tempo foi encontrada. Muitos tiveram que se explicar, inclusive a subsidiaria da mineradora.
Na quarta noite, todas as mulheres apareceram com um corte que ia do umbigo até os seios. O corte era superficial, mas foi o suficiente para um movimento de evacuação em massa da cidade. Mesmo os que vieram para estudar os fenômenos da cidade não se atreviam em ficar nela durante a noite. E na ausência de seres para machucar, os espíritos começaram a destroçar os prédios, fazendo ruir casas e prédios. Em menos de um mês, havia apenas terra devastada.
Com tantos afazeres e problemas de imagem – sim, pois logo apareceu alguém ligando a mineração aos acontecimentos bizarros da cidade – a mineradora decidiu repensar a exploração da região. Desistiu de ocupar várias terras da região, inclusive as que eram do povo de Kauane. Mudou de nome e começou a se afastar do estado.
Quando a ação do povo de Kauane tramitou em julgado, choveu uma chuva de dias. O espírito das águas veio libertar as seis almas atormentadas e tirá-las do submundo. O legado estava entregue.